Adrien era mesmo
um idiota, foi a conclusão que Arely chegou assim que trancou o portão e
caminhou na direção da porta, se esforçando para manter as vozes afastada e permanecer
lúcida. Ele fora contra o que tanto Ruby como Allan tinham sugerido: que ela continuasse
na sede do clã Carvalho, por causa do risco que os pais dela corriam caso ela
mergulhasse na insanidade. Ele apenas alegara que estar perto dos pais deveria
era facilitar que ela permanecesse lúcida e capaz de descobrir seu pior medo.
Idiota. Sem
dúvida alguma. Cada coisa que as vozes e as visões contavam e mostravam sobre
ele aumentavam o quão idiota ela o achava. Inferno de maldição que a fazia,
apesar disso, ainda amá-lo.
Abriu a porta da
sala de cabeça baixa, empurrando-a com uma das mãos. Algo pinicava em sua
mente, as vozes agitadas, loucas para arrastá-la. Havia muito silêncio na casa.
Nunca se acostumaria com a ausência de Kyara e Tigrinho, mas ainda estava muito
silencioso.
Ergueu a cabeça
e encarou com desconfiança a mesa onde sua mãe fazia-os sentar para comer ao
menos nos fins de semana; deixou a bolsa com suas coisas cair perto da porta
antes de se aproximar. Viu uma panela com macarrão à bolonhesa até a metade, no
centro da mesa, uma vasilha com salada de alface e tomate, e pratos com a
macarronada, meio comidos, os garfos apoiados no vidro. Tocou com cuidado a
comida, confirmando que estava fria.
Um arrepio de
pavor subiu por sua coluna. Percorreu rapidamente o térreo, vendo as portas
para os fundos com os cadeados trancados, antes de parar ao pé da escada.
- Pai?! Mãe?! –
a voz tremeu quando os chamou. Sentiu os olhos começarem a marejar quando
passou-se um minuto sem resposta. Os chamou de novo, mais alto, e de novo
apenas o silêncio a cumprimentou.
Subiu correndo
os degraus e, apesar de ter percorrido aquela escadaria incontáveis vezes nos
últimos dois anos, conseguiu tropeçar duas vezes; só não quebrou a cabeça nos
ângulos agudos por ter conseguido se segurar no corrimão, o ombro reclamando
pelo esforço.
As portas
estavam todas abertas. Verificou a mini-biblioteca e o próprio quarto antes de
entrar no dos pais.
A cama estava
impecável. A porta do banheiro, disfarçada para parecer uma porta do armário
embutido, também. Tentou chama-los uma última vez, de novo sem sucesso.
O carro estava
na garagem. E a comida tinha sido abandonada na metade. Aquilo não fazia
sentido. Algo acontecera com seus pais. Sentiu a garganta começar a apertar conforme
a vontade de chorar de desespero aumentava.
Virou-se,
prestes sair do quarto e a correr para baixo, pegar o celular na bolsa e ligar
para Allan, mas alguém barrava seu caminho.
O cabelo era
preto num corte militar, deixando-a ver todo o rosto de pele escura de sol de
expressão sonolenta. Mas os olhos eram de um azul claro leitoso que expunham tudo,
menos sono. Uma inteligência astuta e perversa. Não se deixou enganar pela pose
relaxada do corpo magrelo. Havia algo na forma como os braços estavam soltos ao
longo do corpo que lhe dizia que ele era capaz de mata-la com um estalar de
dedos.
- Você demorou.
Louis já ligou umas duas vezes perguntando de você. – ele bocejou, sem se
preocupar em cobrir a boca. – Sou Jabez, aliás. – Jabez. O segundo Bruxo. Um
Mensageiro que matou e aceitou parte de um Demônio no lugar. O primeiro a
fazê-lo. – Vamos. Louis vai acabar matando seus pais só por diversão se
demorarmos muito.
Sentiu seu
coração gelar. Molhou os lábios devagar, abrindo e fechando as mãos.
Controlou-se para não avançar e tentar atingir o rosto do Bruxo. Mesmo as vozes
tinham se calado, como se aquele momento fosse tão crítico que precisavam dela
lúcida.
Ela vira Allan
ligar para Matheus e perguntar se estava tudo bem, antes que a deixassem em
casa. Como tinham furado a segurança em torno do lugar e levado seus pais em
tão pouco tempo?
Não. Fazia
tempo. A comida tinha esfriado. Como tinham feito isso sem alertar os Lycans?
- Como
conseguiram leva-los? – a voz saiu num sussurro. Jabez deu de ombros.
- Demos um jeito
nos Lycans cuidando da segurança do lugar usando demônios e espíritos
atormentados de novo. E peguei o celular do próximo Beta, antes que pergunte
como que o ruivinho conseguiu confirmação de que estava tudo ok. – o Bruxo
tirou um celular do bolso, balançando-o. – É incrivelmente fácil imitar a voz
de alguém usando magia. Agora vamos.
Sem aviso, ele
segurou seu braço com força, perto do punho, e começou a puxá-la para fora do
quarto.
Ela não tinha
ideia de em qual lugar de Goiânia estava. Jabez a enfiara num carro comum, que
não chamava muita atenção, com um homem ao volante que tinha porte de motorista
profissional. Tinham corrido por ruas e avenidas que ela reconhecia cada vez
menos, até entrarem num condomínio fechado que, de fora, parecia imenso;
percorreram outras ruas, em meio a casas únicas terminadas e outras em
construção e terrenos vazios. Quando estacionaram na frente da casa mais
distante, já tinha anoitecido.
Jabez e o
motorista a fizeram contornar a casa, chegando a um jardim nos fundos que
parecia saído direto de uma revista de decoração, com uma piscina não muito
grande que mais parecia um lago natural de longe, em meio às plantas
ornamentais exóticas.
Seus pais
estavam sentados num banco de metal formado por arabescos, fortemente
abraçados. O rosto de Maria Paula estava oculto no pescoço de Isaque, não
deixando Arely ver como ela estava, mas o do pai estava erguido. Mostrava medo,
mas também determinação. Do outro lado de uma mesa também de metal em
arabescos, estava Louis, numa cadeira seguindo o mesmo modelo – era impossível
confundir o cabelo claro do Vampiro. Viu a determinação ser substituída por
mais medo quando ele a notou.
Tentou correr
para eles, falar que tudo ficaria bem – mesmo que uma voz ao fundo tivesse
passado a murmurar que nunca as coisas ficariam bem de novo –, mas Jabez
agarrou a parte de trás de seu casaco e a manteve no lugar.
O motorista
avançou, parando atrás do banco de seus pais, junto a um homem magro de
aparência ligeiramente doente. Arely então viu Louis se levantar de um pulo e
virar, avançando em sua direção com algo como um sorriso no rosto pálido. O
Vampiro parou diante dela, os braços cruzados diante do peito magro, exposto
por uma camisa de botões totalmente aberta. O cabelo estava mais longo e
bagunçado do que ela se lembrava. Os olhos azul-claro possuíam gotas de
vinho-tinto.
- Finalmente nos
vemos de novo. – Arely semicerrou os olhos castanho-chocolate para o Vampiro de
forma ameaçadora. Ele estava perto demais. – Você realmente não sabe como esse
seu olhar de raiva te deixa bonita? – mal teve tempo para se surpreender antes
que uma das mãos de Louis segurasse sua mandíbula, mantendo-a no lugar, e os
lábios, frios em comparação à sua própria temperatura corporal, tocassem os
seus, prendendo o lábio inferior entre eles.
Apoiou as mãos
no peito do Vampiro e tentou empurrá-lo, sem sucesso. Sentiu os caninos pontudos
morderem de leve o lábio, sem tirar sangue. O cheiro de metálico sangue que o
rodeava invadia suas narinas, deixando-a zonza.
Imediatamente lembrou
do pesadelo em que ele a mordia, e entendeu. Não era um pesadelo. Era uma
visão. Lembrava claramente de como tivera a sensação, na visão, de que não era
a primeira vez que Louis a beijava. Aquele era o primeiro. Logo viria o
segundo.
Na visão, ela
estava passiva enquanto ele a mordia e fazia entrar em contato com o sangue
contaminado. Ele a convencia a aceitar aquilo, à contra gosto. Nunca pensara
que aquilo fosse uma visão porque, para Arely, era incapaz que ele a
convencesse. Mas agora não. Ele tinha seus pais. Ela faria qualquer coisa para mantê-los seguros.
Ele finalmente
se afastou, um sorriso satisfeito no rosto, e impediu-a de se afastar ainda
mais ao jogar um braço em torno de seu pescoço. Jabez passou ao seu lado,
alcançando o homem de aparência doentia e o cumprimentando.
- O que você
quer? – a Mensageira tentou se soltar do braço, mas só conseguiu que Louis a
puxasse mais contra ele.
- Ah, muito
simples... Você vai deixar eu te transformar numa Bruxa. Em troca, seus pais
ficam vivos e bem e por muito tempo e ninguém mais atormenta eles. Para garantir
que não fiquem preocupados com você, Jabez e Sandman vão apagar você da vida
deles usando magia. Será como se nunca tivesse existido. – ele respondeu quando
já estavam próximos de Maria Paula e Isaque.
Engoliu em seco.
Podia confiar de que eles ficariam seguros se deixasse Louis ir em frente? As
vozes diziam que sim. Que o Vampiro não quebrava promessas feitas para conseguir
alguém para sua “causa”. Mas lutaria contra Ruby e Allan e provavelmente os mataria.
Mas seus pais estariam bem e seguros, mesmo que não se lembrassem
mais dela.
- E se eu falar
não? – as vozes já lhe diziam o que aconteceria, mas queria ter certeza.
- Mato eles na
sua frente e te transformo de todo jeito. – sentiu Louis dar de ombros, mas
notou uma inflexão estranha em sua voz... Algo de tensão. Ele não queria
transformá-la à força.
Adrien lhe
contara como a transformação de um Mensageiro em Bruxo devido ao contato com
sangue de Vampiro doía, e que se fosse algo contra a vontade do Mensageiro, era
capaz de apagar memórias e mudar completamente a pessoa de formas
inimagináveis.
Induzida pelo
que as vozes sussurravam ao se enroscar em sua mente, acreditou que Louis, por
alguma razão, não queria que ela mudasse nem tivesse suas memórias alteradas. A
queria do jeito que era.
Voltou a engolir
em seco.
As vozes não
berravam o que devia fazer, mas continuavam falando, ininterruptamente. Não
conseguia entender tudo, mas era capaz de ouvir algumas falando sobre
livre-arbítrio. Não sabia por que.
- Posso me
despedir deles antes? – perguntou com a voz fraca, virando o pescoço para olhar
Louis nos olhos. Um sorriso mostrando os caninos pontiagudos se abriu no rosto
do Vampiro; Arely enxergou alívio e alguma outra coisa que ela não conseguiu
identificar no momento.
- Claro que
pode. Cinco minutos, ok? – balançou a cabeça devagar em afirmativa. Era melhor
não abusar.
O braço saiu de
seu pescoço, libertando-a. Viu Louis acenar para os dois Bruxos e para o
motorista, que se afastaram alguns passos junto dele. Imediatamente correu,
parando se ajoelhando diante de seus pais.
Isaque cutucou o
ombro de Maria; sua mãe ergueu o rosto, molhado com lágrimas. Apesar disso, os
olhos brilhavam para Arely. A garota estendeu as mãos e segurou com firmeza as
dos pais entre as próprias.
- Amo vocês. –
resmungou, a garganta apertada com a força que fazia para segurar as lágrimas.
Ambos sorriram.
- Também te
amamos. – Maria sussurrou, puxando a mão de Arely que segurava a própria até
colocar um beijo nas costas e apoiá-la contra a bochecha.
- Ele... Falou
muita coisa, Ly. De uma forma como se não estivéssemos aqui. – Isaque começou,
apertando com força a mão da filha. – Não sabemos por que nem o quê, exatamente,
ele quer de você, mas sabemos quando algo é errado e ruim. – se inclinou para
frente, sinalizando com a outra mão para Arely se aproximar. – Quando algo nos
tira o livre arbítrio que Deus nos deu de fazer o mal e o bem da forma que
quisermos... Isso impede que Deus trabalhe em nós. Deturpa quem somos. – Isaque
soltou a mão da dela e colocou a mão em concha em seu rosto. – Lembra do que te
ensinei? Aquela frase de C. S. Lewis?
A frase brotou
facilmente nos lábios de Arely, algo que ela guardara com cuidado ainda
pequena, por ter sido ensinado pelo seu eterno herói.
- Deus não nos
ama porque somos bons; Deus nos faz bons porque nos ama. – sussurrou, e viu o
pai sorrir.
- Deus não pode
nos fazer bons se estamos sem o livre-arbítrio de seguir nossos próprios
caminhos, mas permitindo que Ele atue em nossas vidas. E o que esse rapaz pede
de você, Ly... Posso ver, claro como o sol: é o assassinato de seu
livre-arbítrio. Não quero ver esse direito básico arrancado de minha filha. Não
aceite o que ele oferece. – Arely fechou os olhos quando sentiu um beijo suave
em sua testa, como quando ainda era uma garotinha e tinha um pesadelo.
- E... Flor de
Maracujá? – o apelido antigo fez um sorriso brotar nos lábios de Arely a
contragosto, enquanto se voltava para a mãe. O rosto dela estava sério,
enquanto envolvia seu queixo com ambas as mãos. – Preferimos morrer a esquecer
da melhor coisa que já nos aconteceu: você. – e como Isaque tinha feito, Maria
beijou sua testa.
Arely sentiu seu
coração desmoronar e a fogueira que era seu espírito murchar até ser apenas a
luz de uma vela quando finalmente entendeu, com aquela simples frase, qual era
seu maior medo que ela sequer sabia: abandonar os pais à própria sorte.
Deixá-los morrer. Louis sabia disso, de algum jeito, e usava isso contra ela.
Ele conhecia Arely melhor do que ela imaginava, porque sabia que seus pais e a
segurança deles eram tudo que realmente importavam, tudo que realmente tinham
feito ela seguir tudo que Adrien dissera desde o começo.
Entendeu porque
as vozes falavam sobre livre arbítrio. Entendeu porque seu pai falara sobre
isso.
Porque salvá-los
e se tornar uma algoz do mundo ou deixá-los morrer e cumprir o papel de
Mensageira que lhe fora imposto era um exercício de seu livre-arbítrio. Um exercício
ingrato e injusto. Mas ainda era sua escolha e de mais ninguém.
Abraçou os pais
pelos pescoços, desequilibrando-os por um momento; logo eles apoiavam as mãos
em suas costas e a esfregavam, trazendo de volta um pouco do calor que se
perdera ao entender a decisão diante dela. De enfrentar ou não seu mais
pavoroso medo.
- Sempre tivemos
orgulho de você, e sempre vamos ter. – Maria sussurrou em sua orelha, antes de
beijar sua têmpora.
Arely sentiu as
lágrimas escorrerem sem controle por seu rosto. Não podia escolher o que
deveria escolher. Não conseguia. Se sacrificar pelo mundo era uma coisa, e isso
ela conseguia. Sacrificar outros, pessoas inocentes e que ela amava, era algo
completamente diferente.
Implorou a Deus
que existisse outra alternativa. Que algo acontecesse e a impedisse de tomar
aquela decisão. De ter de deixar seus próprios pais para morrer.
A única coisa
que aconteceu foi a voz de Louis perfurando a névoa de angústia em sua mente,
falando que os cinco minutos tinham passado. O “não” tácito exposto na ausência
de qualquer coisa.
Beijou as bochechas
dos pais, se desenroscou de seus braços e então se levantou. Estava preparada
para virar e encontrar Louis no meio do caminho. E a sua própria voz,
tristonha, se impôs em sua mente como tantas vezes antes.
“Jesus sabia pelo que passaria e pediu: ‘Pai, se
queres, passa de mim esse cálice’, e a resposta que recebeu foi não. Jesus
bebeu do cálice da crucificação até o fim em nome dos pecados da humanidade. E
eu devo beber o cálice de escolher a vida e o livre-arbítrio do mundo acima
daqueles que amo até o fim, mesmo que isso signifique deixá-los à morte.”
As lágrimas
escorreram com mais abundância, e finalmente entendeu a tristeza infinita
naquela sua própria voz: era a voz de alguém que fazia o que tinha de ser feito
e que morria pouco a pouco a cada escolha impossível e pessoa amada morta. E
entendia também porque tinha o seu próprio timbre. Sua mãe uma vez dissera que
ela, Arely, fazia o que tinha de ser feito, mesmo que doesse. Nunca antes tinha
sido uma decisão tão amarga.
Os olhos
castanho-chocolate encararam a piscina disfarçada de lago natural, e mal
percebeu quando seus pés começaram a correr em sua direção.
Tinha estado
mais lúcida desde o afogamento mais cedo. Desconfiava que se afogar era sim um
grande pavor, equiparado ao de abandonar os pais. As vozes a empurravam em
direção à água. Não bastava enfrentar um medo terrível. Precisava enfrentar
dois, ao mesmo tempo.
De alguma forma,
alcançou a água. Esperava sentir Louis segurá-la antes, mas não.
Sem pensar duas
vezes nem parar, as lágrimas ainda escorrendo pelo rosto, pulou dentro da
piscina.
O Vampiro demorou
cinco segundos para processar que Arely corria na direção contrária a ele, na
direção da piscina, e finalmente começar a correr na direção dela.
Era como se algo
o barrasse e a ajudasse, porque tropeçou e perdeu velocidade e equilíbrio duas
vezes, e quando quase era capaz de agarrar os cabelos compridos e puxá-la, ela
pulou na água e sumiu diante de seus olhos.
Encarou a
piscina vazia por poucos minutos, os dedos das mãos tendo espasmos de raiva
contida. Os olhos foram completamente tomados pelo vinho tinto e os dentes
doíam com a vontade de estraçalhar pescoços e se embebedar de sangue.
Lentamente,
virou-se e encarou os dois humanos, ainda sentados, ainda encolhidos, mas com
os rostos desafiadores de quem conseguiu o que queria. Eles tinham falado algo.
Tinham feito Arely mudar de ideia e fazer o que ele acreditava que ela nunca
seria capaz. De fazer o que ele não fora capaz: as ações de Louis tinham
garantido que Felippa fosse transformada, apesar de, na época, ela berrar que
preferia morrer a se transformar num “monstro chupador de sangue”, nas palavras
dela.
Os dois iam
pagar por afastá-la dele.
Água cercava
Arely de todos os lados. Não tinha ideia do que era cima, baixo, esquerda ou
direita; era um turbilhão que a sugava. Aquilo a fazia sentir desespero,
embora, de alguma forma, fosse capaz de respirar.
Algo a empurrou,
e quando estendeu os braços, suas mãos sentiram algo com a textura de pedras
cobertas de algas. Aquilo se tornou sua referência por alguns segundos, antes
de sentir a água parar de oprimi-la, baixando lentamente, com a gravidade
passando a agir sobre ela: repentinamente estava ajoelhada numa margem
pedregosa que entrava na água num ângulo suave, as mãos mergulhadas até os
cotovelos.
Aquilo não fazia
lógica, porque a água teria que ter alagado aquele lugar anteriormente, e pelo
que viu, não parecia ser o caso. Era como se algo que antes era vertical tivesse
se erguido até estar quase horizontal apenas para tirá-la da água.
Se arrastou para
fora daquele lago, as lágrimas voltando a escorrer por seu rosto ao perceber
que realmente deixara os pais para morrerem nas mãos de Louis. Quase em terra
firme e seca – pedras com baixos-relevos esculpidos, gastas e quebradas, com
plantas brotando por entre elas – sentiu uma pedra se soltar em suas mãos.
Quase ausente, ergueu-a para fora da água. Era escura como a noite; o lado
contra sua mão estava coberto de algas roxas, mas o outro era multifacetado
como se a pedra tivesse sido lapidada por um cuidadoso ourives.
Deu de ombros e
continuou a se arrastar; inconscientemente continuou segurando a pedra.
No seco, sentiu
qualquer força que a fizera sair da água abandoná-la. Caiu de lado, se encolheu
em posição fetal e começou a chorar e a soluçar sem abandono. Arely achava que
talvez gritasse também, mas não tinha certeza. Tudo se resumia à culpa
corroendo suas entranhas, à tristeza entorpecendo sua mente e sentidos e à
vontade de morrer lenta e dolorosamente, como Louis devia estar fazendo com
eles.
Ela não devia
ter feito aquilo. Não devia. Não podia. Como tinha sido capaz de
abandonar seus pais? Com Louis?
Ela devia
voltar. Mas eles já deviam estar mortos.
Como ela era capaz?
Allan estava
perdido. Pela terceira vez nas poucas horas desde que Adrien o levara para a
Catedral.
O Observador
avisara, é claro, sobre como o lugar mudava constantemente e que levava-os para
onde queria, mas o Lycan não acreditara até perceber isso com os próprios
olhos.
As paredes altas
demais, de pedras cheias de baixos altos relevos e mosaicos gastos, o teto que
mostrava um céu arroxeado por entre buracos imensos e sustentado por colunas
intrincadamente esculpidas, as árvores e trepadeiras e arbustos que saíam por
entre cada fresta nas pedras das paredes e chão e cipós descendo desde o teto,
os lagos e rios e portas que surgiam aleatoriamente, os aromas de milhares de
plantas e flores e terras invadindo suas narinas ao mesmo tempo... Tudo o
confundia. Tudo parecia muito igual, e ao mesmo tempo, muito diferente.
E agora, mais do
que nas outras duas vezes, tinha a sensação de que estava sendo guiado, porque parecia
não importar o quanto tentasse seguir os pontos de referência que Adrien lhe
passara para encontrar o que chamavam de Terra de Ninguém, onde as batalhas
contra os Vampiros, Bruxos e Demônios ocorriam – o Observador queria lhe
mostrar o lugar e explicar como ele mudava a cada hora, para que Allan fosse
capaz de guiar o seu clã –, ele continuava sem saber onde estava. Os outros
Alfas e herdeiros de Alfas que Adrien levara sem dúvida já estavam lá, e ele
ali, perdido pela vontade da Catedral.
Notou algo
começar a mudar lentamente. As plantas. Não pareciam mais tão vivas quanto
minutos antes. Com as sobrancelhas franzidas, segurou um lírio com cuidado. Em
segundos, a flor, antes vistosa e de um branco que doía os olhos, murchou, as
pétalas caindo ao sabor de uma brisa sempre presente cuja fonte ele desconhecia.
Adrien e Ruby
tinham falado sobre isso. Mas ele não conseguia lembrar o quê. Algo em sua
mente dizia que era importante, mas... Por quê?
Com a
preocupação bicando seu cérebro, Allan acelerou o passo, determinado a encontrar
o Observador, mas parou numa bifurcação quando sua audição captou um som estranho.
Um grito. Dolorido. De agonia. E então, soluços.
A fera
enlouqueceu no fundo de sua mente. Sem nem perceber, seguiu a direção do grito,
e teve a sensação de que era aquilo que a Catedral queria o tempo todo: que ele
o ouvisse.
Havia alguém
deitado de costas para ele em meio a colunas caídas e perto de um lago límpido,
num lugar que provavelmente fora um belo salão um dia. Os gritos, soluços e
choro, desesperados e doloridos, vinham dessa pessoa. Tentou diferenciar o
cheiro que a pessoa exalava, mas as plantas murchando e espalhando o cheiro de
podridão e morte se sobrepunham de uma forma que ele nunca vira antes, tornando
seu olfato praticamente inútil.
Observou com
cuidado, se aproximando com passos cuidadosos, evitando as pedras que pareciam
mais soltas e as raízes que se espalhavam por entre o chão. E sentiu a garganta
fechar e o coração disparar quando reconheceu o conjunto de moletom cinza e
vermelho, os tênis verdes da Reebok de Ruby, e o longo cabelo castanho e
molhado grudado ao tecido.
Arely.
Como ela chegara ali?
Allan correu até
a garota encolhida em posição fetal e se ajoelhou ao lado da Mensageira. Com
cuidado, a puxou até que ela estava entre seus braços, encolhida contra seu
peito e continuando com seu choro que ele não sabia o motivo, cheio de uma dor
que ele não entendia.
Apertou o abraço
em torno dela e beijou o cabelo molhado diversas vezes, mas ela permaneceu
presa no que quer que a fazia chorar. Com uma das mãos, Allan segurou seu
rosto, frio por causa da água, beijou sua têmpora e então, forçou-a a deitar a
cabeça em seu ombro antes de voltar a abraça-la. Estava se sentindo se opções
quanto ao que fazer para tentar acalmar Arely e descobrir o que acontecera.
Mal se percebeu
a começar a cantarolar – Ruby sempre dissera que ele tinha uma boa voz, mas
Allan nunca tivera muito o costume de cantar. Estava mais ocupado ajudando o
pai com assuntos do clã, estudando e sendo um Lycan.
- L'inverno sai
finirà, E come è arrivato se ne andrà, E scioglierà il dolore, Come la neve al
sole... E le ferite che hai, Lo sai
guariranno prima o poi, Dopo la notte l'aurora, Ancora verrà si perchè...¹ –
os gritos diminuíram, substituídos quase totalmente por soluçoes. Allan teve a sensação de que
fora para conseguir ouvir melhor. Acariciando um dos braços e as costas de
Arely, cantou mais uma estrofe. – Torna
alla vita più serena, Che rifiorisce come primavera, La vita grida a voce
piena, Dentro te...² – Arely ainda chorava copiosamente contra ele, mas... Estava
um pouco mais calma, de algum jeito.
- Il Divo,
Allan? – a voz dela saiu sufocada e cortada por soluços, uma fraca tentativa de
uma piada. O Lycan se permitiu um suspiro aliviado.
- Não enche,
Arely. – ele resmungou, abraçando-a mais forte. – O que aconteceu? – deu alguns
segundos antes de fazer a pergunta. Sentiu o corpo dela saltar com soluços mais
intensos e frequentes e o peito se encher de ar, como se estivesse se
preparando.
- Meus pais,
Allan... Meu maior pavor... – O Lycan sentiu o próprio corpo travar com aquele
começo. Algo acontecera com os pais de Arely. E se acontecera, era porque seu
clã falhara em protegê-los. – Era abandoná-los à morte... Louis sabia, de algum
jeito o desgraçado sabia... Era me tornar uma Bruxa... Ou deixá-los lá, com
ele... Deus, eu quero morrer.
Ela não falou
mais. Continuou chorando, o corpo sacudindo com os soluços. Allan sentia como
se aquilo fosse uma piada de mau gosto. Algo terrível acontecera com os pais de
Arely, e ela fora forçada a escolher entre tudo aquilo – ser uma Mensageira,
lutar pelo mundo, iaha – e quem lhe criara.
Ele não tinha
ilusões. Isaque e Maria estavam mortos, provavelmente de forma dolorosa como
vingança. Louis não teria piedade.
O sacrifício que
Arely fizera em nome de ser o que nascera para ser e para manter a própria
sanidade era grande demais, cruel demais, amargo demais.
Afastou-a um
pouco e prendeu o rosto dela entre suas mãos, afastando como dava as lágrimas
que escorriam com o polegar, e encostou a testa na dela. Os olhos dela estavam
firmemente fechados, a boca torcida de um jeito estranho, como se ela tentasse
lutar contra si mesma.
- Ritroverai anche
tu, La forza che ora non hai più, E quella voglia di vivere, Che ancor non c'è
tornerà...³ – cantarolou, e ela lentamente abriu os olhos nublados e o
encarou.
- Não sei se vou
encontrar essa força e vontade de viver não, Allan... – ela espremeu em meio
aos soluços. Allan ergueu uma sobrancelha, um pouco curioso para saber como ela
sabia o que aquela parte da canção dizia. Um sorriso pequeno apareceu nos
lábios dela, mas logo sumiu. – As vozes... É como se agora eu pudesse falar e
entender qualquer língua... – mal falou, as lágrimas voltaram a escorrer com
força total.
- Então, eu vou
ser a sua força enquanto ela não volta. – sorriu para ela e beijou sua testa,
antes de voltar a envolver os braços em torno de Arely. Dessa vez, ela se
contorceu até conseguir abraçá-lo de volta e apoiar a cabeça confortavelmente
em seu ombro, o nariz cutucando o pescoço do Lycan.
- Eu não te
mereço... – ela resmungou, e Allan a cortou antes que ela pudesse continuar.
- Não começa de
novo com essa história.
A Catedral
estava passando a perna nele, definitivamente.
No momento que
percebera a vida selvagem na Catedral murchando e morrendo, Adrien soube que
Arely estava ali e sentimentalmente destroçada. Apenas Mensageiros eram capazes
de afetar aquele lugar entre dimensões de forma tão intensa, de fazer a Catedral
se moldar ao redor deles.
E desde
Elizabeth que a Catedral não o fazia se perder. O lugar não queria que ele
encontrasse Arely, não tão já. Lhe pregava peças, fazia paredes aparecerem onde
elas não existiam antes, guiando-o pelo que com certeza era o caminho mais
longo. Ruby, alguns passos atrás, estava definitivamente irritada com aquela
demora.
Finalmente,
sentiu-se num lugar que reconhecia, e notou a forma como a Catedral passou a
sinalizar o caminho até Arely – flores vermelhas e amarelas que pareciam fogo e
que ele nunca vira ali, crescendo em trepadeiras, indicando quando virar e
quando continuar reto.
Afinal, viu-se
diante de uma porta que nunca vira antes, que parecia nova, feita de uma
madeira escura e coberta de entalhes que falavam sobre chamas e tristeza e
responsabilidade, com as flores vermelhas e amarelas cercando-a em arco.
Estava prestes a
empurrar a porta, apenas encostada, uma fresta muito fina entre ela e o
batente, quando a prancha de madeira se afastou repentinamente e deixou Allan à
vista. O Lycan franziu as sobrancelhas para eles, e fechou a porta atrás de si;
a Catedral trancou o lugar por vontade própria, trepadeiras e gavinhas travando
a porta. Adrien conseguiu apenas ver a cabeça coberta de cabelos castanhos de
Arely em meio a um cobertor grosso de algodão antes de sua visão ser obstruída.
- O que
aconteceu? – seguiu Allan através do corredor; não adiantava tentar forçar a
porta. A Catedral não o queria ali naquele momento.
- Aconteceu que
o maior medo de Arely era abandonar os pais à morte e Louis sabia disso. – o
Lycan resmungou entre dentes; os olhos brilhavam perigosamente em azul, deixando
o Observador ciente do quão irritada estava a fera de Allan e o próprio.
- Ah, Deus... –
ouviu Ruby murmurar com tom assombrado, enquanto sentia o estômago afundar. Não
se lembrava de conhecer algum Mensageiro com medo semelhante que realmente
tivera de fazer tal sacrifício, uma vez que os Observadores sempre encontravam
um modo de fazer parecer que tal coisa acontecera de forma que o Mensageiro
acreditasse nisso e assim, enfrentasse seu medo, mas sem realmente machucar
alguém.
Não era a toa
que a Catedral estava protegendo Arely.
- Demorou muito
para conseguir fazê-la se acalmar e dormir... – ouviu Allan murmurar, seguido
então de um riso curto e com uma nota de amargura. – E ainda assim, ela
insistiu em me obrigar a voltar e resgatar os Lycans que cuidavam da segurança
dos pais dela, que ainda tem tempo...
- Vá com ele,
Ruby. – Adrien não hesitou em dar a ordem, e ficou parado no corredor enquanto
os dois irmãos avançavam por entre a Catedral.
A flor de uma
mandrágora acabara de brotar perto dele, e apenas isso o impediu de acompanhar
os ruivos. Conhecia o sinal. O Guardião – ou melhor, Guardiã – acabara de
passar pelo próprio teste.
Hayato logo
também estaria ali.
Acariciou as
pétalas aveludadas e escuras da flor com cuidado.
- Hayato vai
saber o que falar pra Arely. Ele sempre sabe o que falar pra qualquer um. –
resmungou consigo mesmo, antes de começar a seguir a trilha de mandrágoras que
a Catedral fizera crescer.
¹: “O inverno, sabe,
acabará, E como chegou, irá, E acabará a dor, Como a neve ao sol... E as
feridas que existem, Você sabe, sararão antes ou depois, Após a noite, Aurora
ainda virá, sim, porque...” – Primeira e Segunda estrofe de “Come Primavera”,
Il Divo
²: “A vida
volta a ser mais serena, E refloresce como a primavera, A vida grita, à voz
plena, Dentro de você” – Refrão de “Come Primavera”, Il Divo
³:
“Você também encontrará, A força que agora não tem mais, E aquela vontade de
viver, Que ainda não retornou” – Quarta estrofe de “Come Primavera”, Il Divo
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Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬