O Vectra vermelho-acerola
estacionou com cuidado na vaga preferencial do estacionamento subterrâneo de um
entre centenas de prédios que formavam a paisagem da cidade. A garagem estava
cheia, e ambos reconheceram a Spin de Nilton e diversos outros carros, motos e
bicicletas parados lá.
Acostumado a realizar aquele
processo, Davi olhou ao redor com cuidado, murmurando um feitiço para verificar
que estavam só ele e Alanna ali, antes de tirar uma caixa e sua varinha de
eucalipto do bolso da calça. Da pequena caixa, ele tirou uma miniatura de
cadeira de rodas motorizada; colocou-a com cuidado no chão e afastou-se.
Resmungou algo enquanto agitava a varinha, e o veículo, de uma miniatura, passou
ao tamanho real em menos de dois segundos, como se inchasse de repente.
Satisfeito consigo mesmo, guardou
a varinha e voltou para o carro, pegando Alanna no colo e a ajeitando na
cadeira.
— Obrigada, Davi.
— Às ordens. — ele bateu
continência, provocando risos em ambos, e então a dupla seguiu para o elevador.
O painel ia do subsolo até o
vigésimo sexto andar, mas o Feiticeiro ignorou todos os botões, tirando um
chaveiro do bolso da calça. Escolheu a menor chave e a usou na fechadura logo
abaixo do painel, girando uma vez para a direita e duas para a esquerda. Com um
zumbido baixo, o espelho na parede do fundo do quadrado de metal se iluminou em
tons de verde-escuro e azul-céu, se transformando numa interface touch-screen
com números e letras flutuantes.
— Direto para o centro? — ele
perguntou para Alanna, parado diante do espelho, vendo a garota parar,
pensativa, com uma mão no queixo.
— Pode ser, mas não vá muito
rápido. — As sobrancelhas se franziram. — Quando alguém ativa o elevador, a Nay
ou quem quer esteja monitorando os sistemas cumprimenta quem está aqui. Não
gosto desse silêncio. — Olhou para as paredes cinza brilhantes com
desconfiança. — Posso estar sem o gatilho e não estar num momento em que meus
poderes se expandem, mas ainda posso sentir os espíritos dos mortos. Não ir
muito rápido vai nos dar tempo para parar caso eu sinta algo que não devia
sentir...
Davi franziu os lábios,
preocupado, vendo a lógica do pensamento de Alanna e balançando a cabeça em
afirmativa antes de selecionar um conjunto de números e letras no espelho. Mal
afirmou aquela sequência, sentiram o cubículo de metal começar a se mexer,
descendo.
Após algum tempo de silêncio, os
dois olhando para os próprios pés, a cadeirante ergueu a cabeça de supetão, os
olhos arregalados, pálida, até mesmo os lábios quase sem cor.
— Pare, Davi. — mais um pouco, e
ela teria gritado. Agindo rápido, apesar de ser pego de surpresa, a mão deslizou
num movimento circular no vidro, parando a caixa de metal.
— Está sentindo algo? — ele se
abaixou à frente ela, as mãos nos apoios dos braços da cadeira de rodas,
sussurrando em tom preocupado, o cenho levemente franzido e os cantos da boca
se arqueando para baixo.
Devagar, Alanna balançou a cabeça
em afirmativa, fechando os olhos suavemente.
— Espíritos dos mortos... Muito
mais do que os sete que sempre habitaram a unidade. — resmungou, franzindo os
lábios com desagrado logo em seguida, antes de abrir os olhos com as
sobrancelhas quase unidas, o cinza-ferro se fixando nos favos de mel. — Você
conhece esse lugar como a palma da sua mão, Davi. Qual o caminho que
pouquíssimas pessoas, preferencialmente nenhuma além de você, que vai para o
centro sem passar pelos lugares de mais fácil acesso ou mais frequentados?
Davi sentiu o queixo ficar frouxo,
antes de murmurar, meio incrédulo.
— Você... Você acha que invadiram aqui? — Alanna limitou-se a afirmar com
a cabeça. — Isso implicaria em traição, você sabe... Quer dizer, só os membros
da Stella Bianca têm a chave do elevador, e o código pra girá-la muda de pessoa
pra pessoa, chave pra chave... Usar o código errado na chave errada ativaria as
defesas mágicas e eletrônicas, e isso não aconteceu... — Davi começou a andar
de um lado para o outro no pequeno espaço, parecendo perturbado. A garota
pareceu deixar-se cair contra a cadeira com uma mistura de cansaço e desânimo.
— Isso ou ameaça a alguém
realmente importante. Tanto faz. São espíritos demais. Muita gente morreu, e
são mortes recentes. — Alanna trincou os dentes, desconfortável com toda aquela
situação, preocupada com Nilton, Helena, Glen e todos os demais membros da
Ordem que podiam estar na unidade no momento da invasão. — Só não posso dizer
quem são... — Davi parou de andar e olhou o rosto da garota que ele conhecia
desde que ela tinha míseros seis anos e ele, doze, vendo a mistura de emoções
no rosto dela: ela estava indecisa se amaldiçoava ou agradecia não saber quem
tinha morrido, com medo do que poderia descobrir.
O Feiticeiro suspirou, olhando o
espelho antes de se virar para o objeto e digitar um novo código, começando a
falar.
— Vamos entrar pela cozinha. Ela
tem uma entrada escondida nos fundos, e o caminho dali até o centro é bem
calmo. — parou, ponderando, enquanto o elevador voltava a se movimentar. — Se
forem os Demônios que os Fae viram mais cedo, eles não precisam comer e vão
ficar longe de lá.
Apoiou as costas no metal, vendo a
garota apoiar os cotovelo nos joelhos e deixar a cabeça pender. Provavelmente
pensando no pai, considerou.
— Ele é um Vampiro forte, Alanna.
Mais de quatrocentos anos e a experiência de um clã forte e perigoso nas
costas. Tenho certeza de que está bem. — ela ergueu a cabeça, dando um sorriso
fraco em resposta.
— Estou preocupada conosco. Se
forem os Demônios e formos pegos... Bem, você é um Feiticeiro hábil, pode
escapar e procurar sobreviventes... Mas eu... — ela se aprumou, tocando a
perna, os lábios franzidos. — Sem o gatilho, sem uma crise natural de ampliação
de poderes e sem uma arma, sou inútil, presa à cadeira de rodas. — fitou Davi,
permitindo que o ferro contaminasse o mel. — Que chances nós temos?
O Feiticeiro não tinha resposta
para o que Alanna dissera, porque, em parte, ela estava certa. Sem o gatilho,
que ficava na sessão de tecnologia, provavelmente cheia de Demônios, fora de
uma crise de amplificação e sem uma arma – ele nunca conseguiria transportar
magicamente uma do arsenal sem alertar os demônios –, a garota não podia fazer
muita coisa. Permaneceu em silêncio, esperando o momento em que alcançariam o
ponto por onde entrariam.
O elevador parou lentamente, uma
luz verde brilhando no espelho antes da porta deslizar, revelando o fundo de
madeira de uma estante. Davi empurrou o móvel com cuidado, poupando seu
espírito para a magia. Antes de empurrá-la o suficiente para Alanna passar com
a cadeira de rodas, colocou a cabeça para fora, vendo a cozinha ampla e escura,
a porta do outro lado do aposento fechada, e então terminou de liberar a
passagem.
Foi à frente para a porta de
metal, enquanto a garota seguia logo atrás, a cadeira movendo-se
silenciosamente, parando um pouco atrás enquanto o rapaz abria a porta e
verificava o corredor, também escuro.
Seguiram daquele modo cauteloso
por um tempo consideravelmente longo, o Feiticeiro à frente, a garota logo
atrás. Todos os lugares por onde passavam estavam escuros e desocupados, e eles
não sabiam se ficavam felizes ou preocupados com isso, até fazerem uma curva e
encontrarem luz saindo de uma porta em arco e iluminando a parede e o chão
ladrilhado.
Davi sinalizou para Alanna esperar
enquanto avançava cuidadosamente, as costas coladas à parede da porta. Ela
viu-o tirar a varinha do bolso e agitá-la enquanto sussurrava algo. Sua pele,
roupas e cabelos pareceram granular, pontos começando a sumir gradativamente
enquanto a luz começava a se desviar dele, a ignorar que ele existia, enquanto
ele condensava o ar à sua volta como um escudo contra a luz de forma que apenas
alguém altamente conhecedor da magia seria capaz. E então, ela não mais o via,
mas começava a ouvir vozes estridentes e com um tom de maldade e não-vivo que ela
conhecia muito bem – definitivamente eram Demônios –, se aproximando cada vez
mais.
Preocupada, começou a manobrar a
cadeira para voltar e se esconder numa das salas vazia por onde tinham passado;
o som agora a alcançava acompanhado de passos, as palavras se tornando mais
nítidas.
— ... por que nos enviar para cá de novo? Já verificamos todo o lugar,
não tem ninguém aqui!
— É da Éris que a gente tá falando, cara. O patrão deu poder pra ela. Se
ela acha que tem algo aqui e nos mandou olhar, não temos opção...
— Na verdade, temos: voltar pro mesmo buraco sem fim de onde saímos... — era a terceira voz que ouvia. Cada vez
mais perto, provavelmente tinham acabado de atravessar a porta em arco, e a
maldita cadeira não andava mais rápido. — Eu
não quero voltar pra lá tão cedo, então, é melhor obedecer àquela louca...
De repente, a luz do corredor se
acendeu sob sua cabeça, cegando-a e deixando-a zonza por alguns instantes, a
cadeira parando quando sua mão se afastou do controle para proteger os olhos.
Quando se recuperou, era tarde demais.
— Olha o que encontramos aqui,
rapazes... —foi a terceira voz que disse. A que mais parecia gostar do que
fazia: de matar física e psicologicamente, enlouquecer pessoas, torturá-las até
que nada mais pudessem fazer, a não ser babar e olhar para o nada.
Devagar, Alanna girou a cabeça,
encarando os Demônios, engolindo em seco e sentindo os olhos marejarem de medo,
diante de suas aparências deformadas pela maldade e pela decomposição dos
corpos; olhos amarelos brilhando macabramente, dentes podres e pretos expostos
em sorrisos satisfeitos e amedrontadores. Eram a escala mais baixa de Demônios,
classificados como do Terceiro Mundo pela Stella Bianca – embora na verdade
viessem de além dos Mundos e do Ciclo; eram capazes de possuírem apenas corpos mortos,
e para se manterem nesses, precisavam se alimentar de outros corpos mortos. Eram
chamados de Ghouls, e mesmo sendo os Demônios mais fracos dos quais a Stella
Bianca tinha conhecimento, ainda fortes demais contra uma cadeirante sem poderes
e desarmada, mesmo que estivessem sozinhos.
E estavam entre as coisas que
Alanna mais detestava: sendo uma Shaman, não respeitava apenas os espíritos dos
mortos, mas os corpos que estes ocupavam antes. Usá-los novamente como os
Ghouls usavam a enraivecia.
Com as mãos ainda escondidas,
torcendo para que Davi visse, sinalizou que ele deveria procurar os demais e
deixá-la para trás. Foi só o que teve tempo de fazer antes que dois dos
Demônios, fedendo à morte em seus diversos níveis, arrancassem-na da cadeira e
começassem a arrastá-la para quem quer que fosse Éris, seus pés deslizando no
chão, inúteis, as pernas insensíveis incapazes de ajudá-la.
Naquele momento, ela queria ter
tido coragem para seguir em frente e pedir a Nilton que a infectasse com sangue
vampiro, anos atrás. Embora custasse seus dons relacionados aos espíritos dos
mortos, ser uma Vampira curaria sua medula espinhal, rompida na queda do
terceiro andar de um prédio em chamas quando ela tinha cinco anos, e lhe daria
outros poderes, como força, longevidade e magia vampírica. Tudo bem que a
transformação só fosse se iniciar quando estivesse lá nos onze anos, mas era
melhor que nada.
O terror do fogo, dos gritos, a
queda, a dor de se sentir partida ao meio... Aquelas eram suas lembranças mais
antigas. A dor contida nelas apagara as anteriores. Sabia os nomes e conhecia
os rostos de seus pais biológicos através de fotos, já que tinham morrido
naquele incêndio, junto com todos os seus parentes, que estavam no prédio para
uma festa em família. Mas não lembrava de momento nenhum ao lado deles ou da
vida no prédio: nada, nem mesmo o sabor da comida que sua mãe provavelmente
preparava ou o som das vozes deles. Tudo tinha sido deletado.
Tudo aquilo também desencadeou
seus dons de Shaman, de ver, conversar e se deixar controlar pelos espíritos
dos mortos – ao menos, ela imaginava que tinham surgido naquele momento, e não
antes; considerando que Espirituais raramente despertavam os poderes sem alguma
deficiência, o acidente era o causador provável. No primeiro ano, no orfanato,
ocorriam crises muito espaçadas e curtas, quase não as percebia. Foi só depois
de uma ocasião no Museu do Ipiranga, em que encontrou o fantasma de um antigo
curador do Museu, satisfeito de andar pelos corredores do prédio e nada
desejoso de fazer a passagem, que a Stella Bianca a encontrou e Nilton a
adotou. Um Shaman da Ordem, que nunca se identificara para que ela pudesse
agradecê-lo, tinha visto-a conversando com o fantasma e notificara a Oitava
Unidade. Nilton tinha acabado de pedir proteção à Ordem quando entrou em
conflito com seu antigo clã, e a condição que Helena estabelecera em troca da
proteção fora a sua criação.
Oficialmente com a Stella Bianca,
que desde que a acolhera vinha ensinando-a a controlar seus poderes com o uso
de gatilhos para nos momentos fora das crises, ela viajara pelo mundo, com
Nilton, com Melinda e os três filhos, com Helena, a líder da unidade, e
diversos outros membros da Ordem. Conhecera todas as outras sete unidades,
espalhadas pelo mundo e pelo ar, aprendera diversas línguas, acumulara
conhecimento, conhecera fantasmas de famosos que se negavam a fazer a passagem,
como Homero, Platão, Leonardo da Vinci, Van Gogh e outros – e inclusive
aprendera algumas coisas interessantes com eles.
Acima de tudo, aprendera sobre os
Sete Mundos ou os Sete Infinitos, como também eram conhecidos, inseridos no
Grande Ciclo; junto disso, descobrira que, apesar de magia, Vampiros,
Lobisomens, Faes e tantos outros existirem, nenhum deles, além de Demônios,
“Anjos” e a própria Morte, sabiam de fato o que ou quem existia por trás desse
ciclo, na parte escura e desconhecida denominada “Pós-Passagem”. Não era
possível nem afirmar que reencarnação não existia, pois existiam casos de
espíritos que não tinham feito a Passagem e conseguiram encarnar em corpos de bebês,
ainda na barriga da mãe, que do contrário nasceriam mortos.
Com o passar dos anos, as crises
foram se tornando mais longas e menos espaçadas, mais imprevisíveis de quando
chegariam, mais estáveis, diminuindo a necessidade do gatilho.
Enquanto era arrastada pelo
corredor para quem quer que fosse Éris, ela pensava naquilo tudo e mais,
tentando encaixar as peças.
Aqueles Demônios eram novos.
Disso, não existiam dúvidas. Eram recém-saídos de onde quer que os Demônios
viessem. Éris não era a chefe deles de fato. Até onde a Stella Bianca aprendera
sobre eles, o papel de chefe cabia a outro, que apenas dera poder para a
Demônio em questão. Naquele instante, ela considerou uma terceira teoria de
como tinham conseguido invadir a unidade: se eles tivessem trazido um Demônio
forte o suficiente para possuir alguém vivo, subjugando sua alma, espírito e
mente sem matá-lo e ainda conseguir acessar a memória sobre a chave, teriam
entrado facilmente. Mas todos os membros da Stella Bianca possuíam um amuleto,
feito pelos Fae e sempre carregado pelos membros da Ordem, que impedia a
possessão não autorizada; somente aqueles que, como Alanna, mexiam naturalmente
com os espíritos – Shamans e Druídas, e Sacerdotes, de certa forma – não
precisavam do dito amuleto. Seus corpos eram fechados de tal forma que o
espírito de um Morto ou da Natureza, no caso dos Shamans e Druídas, ou um
Demônio em si, no caso de um Sacerdote, precisava de autorização para entrar, e
ainda assim, estaria limitado pela vontade do hospedeiro.
Alanna mordeu o lábio, nervosa.
Qualquer uma das três opções era ruim. Subitamente, seus pensamentos foram
interrompidos pelos três Demônios, que tinham começado a conversar.
— Tão sentindo o cheiro dela e o
jeito da alma e do espírito? — um deles perguntou, o nariz quebrado e de pele
meio carcomida fungando na direção dela.
— É uma Shaman. — o mais
aterrorizante falou, à frente dela, virando para a garota e dando um sorriso de
gelar os ossos. — Deve ser dela que a Éris veio falando tanto. É a única com
jeito de Shaman que encontramos no lugar inteiro...
O terceiro deles apenas riu, ainda
segurando seu braço com firmeza.
Alanna sentiu o desespero subir
por sua garganta, apertando-a, como se estivesse prestes a ter um choque
anafilático.
Os dados sobre os membros da Stella
Bianca estavam entre as informações mais bem protegidas, até mesmo mais do que
quais seres estavam aprisionados nos globos-arabescos em cada unidade. Ninguém,
nem mesmo os próprios membros fora do alto escalão, sabiam de fato quantas
pessoas ou os tipos e raças que formavam a Ordem fora de suas unidades. Para
aquela tal de Éris saber que havia um Shaman na Oitava Unidade... Informação
tinha vazado. Como, ela não tinha ideia.
Conforme começou a reconhecer os
corredores mais próximos do centro de todo o lugar, começou a parar de teorizar
como eles tinham chegado ali e passou a se preocupar com como ia escapar
daquela enrascada em que se metera e salvar quem quer que ainda estivesse vivo.
Ao pensar em suas opções e
considerar planos mirabolantes, começou a achar que não teria chance alguma:
ela estava ferrada e, a menos que um milagre ocorresse, ela não veria Vivian no
dia seguinte para implorar as respostas do exercício de geografia que ela não
terminara.
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