— Tem certeza que está tudo bem, Arely? — Ruby
perguntou pelo que podia ser considerada a centésima vez, enquanto ajudava a
Humana a organizar os livros no antigo quarto da avó.
Arely suspirou, parando de organizar os livros de
Júlio Verne por ordem alfabética na estante, o olhar se perdendo por entre os
livros antigos e novos que seus pais e ela vinham acumulando. Ainda não lera
sequer metade deles, mas leria todos. Um dia conseguiria. Mas não era isso que
se passava em sua mente.
Naquele dia, fazia uma semana desde a morte de sua
avó. Seus pais não tinham discutido a história apresentada, sustentada por
Ruby, Allan e Aldina, a mãe deles — ela não tinha ideia de quem era o pai
deles; por alguma razão, ele a evitara durante todo o domingo que passou na
casa da amiga, sendo arrastada junto de Ruby pelas crianças para brincarem com
elas, sentindo os olhares vigilantes de Adrien e Allan, que berrava piadinhas bobas
e provocativas. E, embora sua mãe fosse continuar a trabalhar, e fosse óbvio
que seus pais pareciam muito mais tranquilos e que a palavra que tinha pairado
por quase um ano e meio chamada “divórcio” tinha desaparecido, era estranho
saber que sua avó estava morta. Nada erguera suspeitas: nos dois primeiros dias
precisou usar alguma maquiagem para disfarçar os ferimentos que nem mesmo ela
sabia como ganhara, mas então eles já estavam cicatrizados — ela tinha
percebido isso, como seus ferimentos vinham se fechando cada vez mais rápidos.
Na segunda, quando foi o velório e o enterro, seus
pais não trabalharam e ela não foi à aula — mesmo porque seu uniforme estava
destroçado e a mãe de Ruby fora comprar outro, já que seria difícil explicar
algo parecido à seus pais — e lembrava claramente de não ter derramado nem
mesmo uma lágrima. Ela não fazia falta de fato em sua vida. Nunca tinham sido
próximas.
E era aquilo que a assombrava. A ausência de qualquer
coisa além de uma sensação de liberdade, como se ela estivesse presa em um
elevador quebrado e claustrofóbico até aquele instante. A assombrava mais a
possibilidade de ser uma espécie de monstra coração-de-pedra do que o fato de que
ainda não acreditava que Lycans, Bruxos e Vampiros existiam, apesar do que
vira. Nem mesmo a causa exata de sua morte — coisa que Adrien não ocultou — a
fez lamentar.
Virou o rosto para Ruby, piscando, os olhos castanhos
ainda meio perdidos.
— Hei, Ruby... Eu devia sentir alguma coisa com a
morte da minha avó?
A Lycan suspirou. Finalmente, o assunto que ela, Allan
e Adrien vinham tentando arrancar desde domingo. Ao falar da morte de Marieta,
não passou despercebido à nenhum dos três que, além de uma leve surpresa, Arely
não parecera de fato sentir algo com a notícia.
Abandonou os livros de Agatha Christie que estava
organizando, andando na direção de Arely.
— Não, se você não se sentia próxima à ela. — bagunçou
a franja solta do rabo de cavalo. — Agora, pare de se preocupar com isso. Temos
que terminar isso ainda hoje, senão nenhuma de nós vai conseguir arrumar a
mala! — sorriu, cutucando as costelas da garota, provocando cócegas e risos, e
torcendo que aquilo fosse suficiente para tranquilizar Arely.
Com o fim do semestre letivo, Arely ia viajar no
domingo à noite para São Paulo, chegando segunda à tarde na cidade. Com as
palavras certas, Ruby tinha conseguido vaga no carro para a viagem também — agora
só desgrudaria de Arely se Adrien a arrastasse pelos cabelos. Allan
permaneceria em Goiânia, vigiando Louis e os Bruxos e mantendo-a informada — embora
ele tenha manifestado seu desejo de viajar com elas. Adrien tinha dito que
também iria para São Paulo, mas encarregou a proteção de Arely totalmente para
a aluna enquanto estivessem na cidade, alegando que tinha assuntos de
Observador para resolver — que de certa forma eram relacionados aos últimos
acontecimentos e ao futuro.
O único destino de que Ruby tinha conhecimento era a
casa de um dos tios de Arely, onde a família, incluindo a prima Arwen, iam se
reunir para recebê-los. Ou seja, conheceria a Irmã de Alma de Arely e, com um
pouco de sorte, Alexandre — à partir do momento que soube da viagem, Adrien
contara-lhe sobre o outro Observador, sobre Arwen ser uma Ômega e que Sílvya
passava por uma espécie de treinamento com um Drachen, embora ela não soubesse
quanto exatamente ele contara — ele o fizera durante um dos sonhos da garota.
Ele garantira a Ruby que, provavelmente, Alexandre ia auxiliá-la a vigiar
Arely.
Mas, apesar de todos os riscos, estava ansiosa por
aquela viagem.
— Onde está sua irmã? — Alexei entrou no quarto de
Allan sem bater, vendo o filho sentado à mesa do computador pessoal,
concentrado no projeto de algum site que tinha sido encomendado — o rapaz
fizera curso de web-designer durante o ensino médio e já há um bom tempo que
realizava encomendas, embora, com os acontecimentos recentes, tivesse parado.
Allan não virou-se para responder, os olhos verdes
ainda fixos na tela.
— Na casa da Arely. — curto e grosso, era a única
coisa que definia a voz de Allan.
O Lycan tinha estado mal-humorado desde a semana
anterior. Desde o encontro de Alfas dos clãs da cidade, mais especificamente.
Era óbvio que estava com raiva do pai por ser um dos
que votaram por deixar Arely morrer ou se transformar em mais uma Bruxa. Mas
havia mais.
Havia raiva de si mesmo.
Ele se culpava por não conseguir proteger a garota.
Tinham sido seis meses vigiando-a e protegendo-a, e até mesmo se aproximando
sutilmente por iniciativa dela. Seis meses encarando, à distância, aqueles
olhos cor de chocolate ao leite. Ele amava a cor e o brilho que os olhos dela
tinham, e imaginar que, por causa de sua suposta falha eles podiam ter se
tornado daquele azul-claro quase leitoso dos Bruxos, preenchido com sentimentos
maléficos, o deixava irado, como alguém que passara meses construindo uma casa,
e então, quando estava quase terminando, um temporal derrubara, não deixando
pedra sobre pedra. Além disso, agora sua fera insistia que a queria... Inferno,
por que isso justo agora?
Engoliu o bolo na garganta que a raiva provocou, focando-se
novamente no que fazia. Ouviu seu pai suspirar à suas costas e perguntou-se
porque não saíra ainda.
— Eu... Vim pedir desculpas, Allan. — o Lycan mais
novo piscou, surpreso, antes de rodar a cadeira giratória para olhar melhor
para o pai. — Eu devia ter ouvido vocês. Devia ter votado pela busca dela,
embora provavelmente tivesse sido inútil, já que a acharam sem ajuda...
— Só a achamos porque o Anjo que dividiu seu espírito
com ela foi atrás de Adrien e disse onde poderia encontrá-la... — murmurou, um
tom de desconfiança para com o pai pairando na voz.
— Eu sei... — andou na direção da janela, observando
sua esposa, irmã, cunhadas e primas andando para cima e para baixo, preparando
o jantar, enquanto as crianças brincavam de luta. — Se eu tivesse olhado para
ela ao menos uma vez, teria percebido, mas preferi ficar escondido enquanto
você cuidava de sua proteção... — Allan levantou-se da cadeira e parou ao lado
do pai, sorrindo ao ver os pequenos lutarem para controlarem a irritação por
perderem uma luta e, assim, não se transformarem. — Minha mãe, filha caçula do
Alfa de um clã fazendeiro, conheceu um Mensageiro. Era um rapaz filho do peão
que cuidava do rebanho, com quem ela brincou muito na infância e que sabia o
que aquela família era. Quando ela tinha dez anos, e ele, treze, um Observador,
Hayato, pediu abrigo entre eles; era uma época que os Observadores ainda não
eram detestados entre nós. Ele percebeu com um olhar o que o menino era, e
pediu que cuidassem dele até que fizesse dezesseis anos, quando ele viria
buscá-lo.
Alexei deu uma pausa, sua mente parecendo viajar pelas
lembranças que tinha da mãe, morta anos atrás após o parto de sua irmã caçula
quando tinha doze anos. Lembrando melhor da história que sua mãe contara-lhe
quando tinha onze anos, quando seu pai falou-lhe sobre os Observadores e todo o
mais.
— Por algum motivo, Hayato atrasou-se. Bruxos e
Vampiros descobriram o rapaz assim que o poder despertou e atacaram o clã,
transformando o Mensageiro em Bruxo. Só ela sobreviveu, escondida, até Hayato a
encontrar e trazê-la para os Carvalho. Mas o que importa é o que ela disse
sobre esse rapaz... — virou-se para o filho, olhando-o nos olhos. — Ela disse
que ele tinha muita luz. Que animais e crianças se acalmavam só com a presença
dele, e até mesmo as plantas ficavam mais verdes quando ele se aproximava. Ela
mesma o perseguia para cima e para baixo desde que nascera, era como um irmão
mais velho para ela. — olhou para o jardim de novo, a grama menos amarelada que
uma semana antes. — Eu vi isso em Arely. Essa mesma luz que minha mãe me
contou. Por isso não me aproximei... Tive vergonha, porque por mim ela teria se
transformado numa Bruxa.
Allan colocou uma mão no ombro do pai, ainda
observando o jardim, lembrando-se de Arely correndo e sendo puxada através dele
por seus primos menores, brincando quase como se também fosse uma criança.
Ouvir a história sobre sua avó, que não chegara a conhecer e que tanto seu pai
como o avô pouco falavam, fez sua vontade de proteger Arely e seus pais se
intensificar.
O pai tinha razão sobre aquela luz que, apesar de
tudo, a garota possuía. Não queria que aquela luz se perdesse. Sabia, naquele
instante, que iria até os seus próprios limites para protegê-la — embora
vigiando-se e batendo na própria cabeça para não ceder aos desejos da fera.
— Vou conseguir protegê-la? — perguntou de repente,
após algum tempo, tirando a mão do ombro do pai e olhando meio perdido para as
crianças que agora brincavam de balança-caixão, um deles sendo segurado pelas
mãos e pés e sendo balançado.
Alexei o puxou com um braço pelo pescoço, fazendo o
filho se encurvar levemente por ser ligeiramente mais alto que o pai, também
observando a brincadeira, um sorriso leve aparecendo quando a criança balançada
foi solta de repente e as outras correram para se esconderem.
— Vai. Você é forte, Allan. Não suporta fracassar ou
desistir, por isso vai ignorar que essas palavras sequer existem. É um líder
nato... — a voz saiu num murmúrio, quase uma confidência, e a última oração
provocou um sorriso no rapaz.
— Só porque você me treinou para isso.
Alexei voltou a sorrir.
Arely praticamente puxou Ruby, seus pais logo atrás
das duas, para dentro da sala espaçosa numa casa mais espaçosa ainda. Ambas
carregavam suas malas, Arely carregando ainda uma mochila que a Lycan admitia
ser pesada para uma humana; ela estava sinceramente surpresa que Arely
carregasse-a tão tranquilamente, apesar de ter se oferecido para levá-la.
Os quatro foram engolidos, praticamente, e separados,
por cerca de trinta parentes de Arely — e eram só os presentes em São Paulo,
outros ainda moravam em cidades esparsas pelo interior do estado. Tios, primos,
avós, namorados e namoradas... A família de Ruby era grande, mas a de Arely não
ficava atrás.
Foi praticamente passada de mão em mão, a mala
abandonada na entrada, até se ver na cozinha, onde as crianças menores roubavam
iogurte de morango da geladeira e fugiam pela porta dos fundos. Sorriu, e então
virou-se para a sala de novo, procurando pelo cabelo castanho de Arely. Sem
sorte. Apesar de algumas cabeças de cabelos brancos, vermelho-tingido e preto,
a predominância geral da família era castanho.
Suspirou, desanimada, e então uma mão pesada pousou em
seu ombro ao mesmo tempo em que um cheiro de Lycan velho — não como Adrien,
algo mais como sua mãe — a alcançou, como terra molhada e mata virgem, de certa
forma, semelhante ao seu próprio cheiro. Virou lentamente, piscando para um
Lycan que ela dava uns vinte anos pela aparência. Uma pele morena recobria os
músculos magros e ossos angulosos, um cabelo vermelho-sangue e encaracolado
caindo até os ombros, amarrado na nuca num rabo de cavalo com um elástico
fio-de-telefone. Olhos cinzentos e brilhantes sombreados por sobrancelhas
grossas, algumas rugas de expressão por causa do sorriso largo enquanto a
olhava.
— Caramba! Adrien não estava brincando quando disse
que você era a cara de Aldina quando ela tinha quinze anos! — estendeu a mão
para Ruby, que a apertou, embora uma expressão desconcertada ainda estivesse em
seu rosto. Era difícil acreditar que aquele rosto de vinte anos pertencia ao
irmão mais velho de sua mãe. — Quem diria que eu teria uma sobrinha tão
bonita... — bagunçou o cabelo no topo da cabeça de Ruby, os fios cacheados
assentando naturalmente, antes de colocar as mãos nos bolsos da calça jeans.
Ficaram se encarando por um tempo, ele ainda com
aquele sorriso aberto de boas-vindas, ela com uma expressão surpresa.
Provavelmente, teriam permanecido naquele silêncio levemente incomodo se duas
risadas não tivessem alcançado-os. Uma delas, que Ruby reconheceu, pertencia à
Arely: era um riso com interrupções pela falta de ar, súbito, alto, espontâneo.
Se destacava pela altura que alcançava, e a Lycan sabia, por causa daquele
riso, que Arely estava feliz. Mais feliz do que tinha se mostrado desde que
fora sequestrada. O outro tinha um som mais cristalino, não muito alto, mas
possuía uma força, mais por causa da voz que o originara que por qualquer outra
coisa, que Ruby tinha certeza: ela obedeceria o que quer que aquela voz
ordenasse. Era simplesmente impossível resistir. Agora ela entendia o que
Adrien quisera dizer ao avisar que era impossível para qualquer Lycan resistir
à uma Ômega.
A Lycan mais nova virou-se para poder ver Arely e a
dona da outra risada, preocupada com o olhar no mínimo faminto que Alexandre
lançava para suas costas.
Duas humanas, abraçadas de modo fraternal. A mais
baixa e fofinha reconheceu como sendo Arely, perdendo o ar em meio ao riso por
causa de alguma besteira. E a outra reconheceu de sua primeira incursão ao
plano espiritual: Arwen, prima e Irmã de Alma de Arely, com os cabelos
compridos e castanho-chocolate e olhos verde-azulado, brilhantes como pedras
preciosas. A pele estava menos pálida do que se lembrava, com um saudável
bronzeado. Um sorriso delicado adornava os lábios finos e rosados, diferente de
Arely, com seus grossos lábios vermelhos. Mas o que a destacou, ao lado de
Arely, foi a altura: no mínimo um metro e oitenta, com um corpo de quadris e
seios avantajados. Ao relancear o olhar para Alexandre, teve certeza de que os
olhos dele estavam no balanço dos quadris de Arwen enquanto ela andava, e isso
conseguiu arrancar um sorriso dela também.
— Você deve ser Ruby. — Arwen soltou-se da prima e
estendeu a mão para a Lycan, que a apertou. A voz de Arwen soou como a ordem de
uma rainha, e Ruby só conseguiu balançar a cabeça de forma meio boba para a
Ômega. — Desde que Adrien ligou para Alexandre e falou sobre você, ele não
conseguia deixar de especular sobre a sobrinha... — sua voz possuía um leve
riso, enquanto caminhava com um andar fluído de modelo na direção de Alexandre,
enlaçando-o pela cintura e apoiando a cabeça em seu ombro. O Observador deixou
a mão descansando no quadril de Arwen, apertando entre os dedos a barra da
jaqueta grossa.
— Arwen... Você está fazendo de novo... — ele a avisou
com a sombra de um sorriso, e a jovem piscou, surpresa, enquanto levava a mão
para a boca, antes de falar num tom de desculpas.
— Me desculpe... Ainda não controlo essa capacidade de
dar ordens à Lycans direito... Ignore qualquer coisa que tenha soado como uma
ordem para você, por favor.
Ruby e Arely riram de novo, dessa vez por causa do
aparente embaraço de Arwen do que qualquer outra coisa. E a Lycan notou que
algo tinha acontecido com a voz da garota... Tinha parecido mais normal, o tom
de ordem completamente ausente. Como se fosse sua própria voz.
— Pois é, Ru... Você já conheceu a minha prima, mas eu
ainda não conheço o seu tio... — A-rely resmungou, cruzando os braços ao lado
da amiga.
Alexandre soltou-se de Arwen e deu alguns passos na
direção da humana, puxando a mão direita da garota e roçando o dorso com os
lábios após uma reverência. O rosto de Arely ganhou tons de vermelho, enquanto
as sobrancelhas de Ruby e Arwen se erguiam ao mesmo tempo.
— Alexandre Ludwig, ao seu dispor. — Endireitou-se,
não soltando a mão de Arely. — Espero que não acredite nas mentiras que Adrien
disse sobre mim... — começou, um tom galanteador na voz de barítono.
A garota, já de controle total de suas faculdades
mentais após uma breve escorregada, deixou um lento sorriso se espalhar por
seus lábios, enquanto decidia que uma piadinha com o Lycan seria engraçada.
Adrien a prevenira, realmente. A avisara que Alexandre
e sua prima estavam juntos, mas que isso não o impedia de continuar sendo um
Don Juan de marca maior — e que não devia acreditar em qualquer possível
flerte. Naquele momento, ela sentia vontade de rir ao lembrar do tom de aviso e
olhar sombrio do Lycan ao falar aquilo.
— Oh... Então você não é um cavalheiro que não brinca
com o coração das jovens? — deixou a pergunta no ar, vendo Alexandre piscar
lentamente, tentando absorver a frase relativamente confusa que ela dissera,
enquanto Ruby e Arwen começavam a rir até perder o ar. A expressão inocente de
Arely era tão falsa que ninguém acreditaria nela — ao menos, alguém que a
conhecesse.
— Eu te avisei que essa carinha de anjo escondia uma
mente vingativa e maléfica que não cairia numa cantada sua! — Arwen exclamou em
meio aos risos, apoiando um braço no ombro do Observador. — Me deve vinte reais.
— estendeu a outra mão para Alexandre, ainda rindo.
Com uma careta de desagrado, o Lycan mergulhou uma mão
no bolso da calça e puxou uma nota de vinte, que colocou na mão de Arwen. A
Ômega fechou a mão e a colocou no bolso da calça de moletom com um sorriso
quase tão brilhante quanto o de uma propaganda de creme dental.
Assim que Ruby, Arely, Maria Paula e Isaque entraram
na casa de uma das tias da humana, Adrien suspirou aliviado por não ter tido
problemas e deu as costas para a casa, consultando a hora no celular antes de
se encaminhar para o local onde Jean marcara a reunião com os Observadores que
se encontravam no país e podiam chegar a tempo. Os Lycans e Drachens que
Alexandre contatara já estavam em suas posições para cuidar da segurança de
Arely, como ele mesmo verificara alguns minutos antes. Olhou mais uma vez com
seus olhos apurados os telhados escuros e de alturas variadas, captando os
olhos brilhantes em tons de azul com pupilas em fenda em meio às sombras que as
casas provocavam umas nas outras, ocultos durante o dia, relaxando os ombros ao
verificar que todos os dezesseis pares estavam ali.
Conforme andava pelas ruas e avenidas da cidade, o sol
baixava lentamente; quando estava prestes a se por, o movimento de carros ficou
ainda mais intenso, e começou a ter problemas em atravessar a cidade até o
Hilton. Não se incomodou em pegar um ônibus ou alugar uma moto ou um carro. Ia
demorar mais para chegar ao local, e ainda ficaria confinado ao trânsito
caótico de fim de dia da cidade. Algo que se negava a enfrentar até seu último
dia de vida.
Chegou no hotel cerca de uma hora após o pôr do sol, o
movimento começando a amenizar lentamente. Atrás dele, o Tietê seguia, seu
cheiro morto e podre o deixando enjoado quanto mais tempo permanecia fora da grandiosa
construção cinzenta de concreto, com tantos andares que desistiu de contar
quando chegou ao dez e começou a sentir vertigem ao olhar para cima.
Definitivamente, nunca se acostumaria com as alturas as
quais o homem chegava naqueles tempos, fosse olhando para ver as altas
construções, fosse para olhar o mundo abaixo de um avião ou de uma
montanha-russa. Como Amazonas, Cavaleiros, Wyverns e Drachens aguentavam, ele
não tinha ideia.
Entrou no prédio, enquanto verificava a mensagem que
Jean enviara mais cedo informando o local exato da reunião no hotel. Tudo
coberto pela vasta fortuna que o Drachen tivera acesso cinquenta anos antes de
se tornar Observador, quando saiu de baixo das asas dos pais, e mantida e
aumentada sem muita dificuldade. Respirou fundo, engolindo seu medo de alturas
ao verificar que a reunião seria na piscina. No topo do hotel.
— Você está tirando uma com a minha cara, não está,
Jean? — resmungou, adentrando o saguão do hotel e informando o recepcionista
porque estava ali. Depois de dar seu nome, se encaminhou para o elevador,
respirando fundo diversas vezes e prometendo a si mesmo que não ia olhar para
baixo.
Falhou miseravelmente com sua promessa de não olhar
para baixo.
Era simplesmente impossível ignorar a cidade se
estendendo do outro lado das extensas paredes de vidro, luzes e mais luzes,
prédios e casas e postes. Ele tinha se aproximado e, quando percebeu, estava
praticamente grudado no vidro, olhando para a cidade e então, inevitavelmente,
para baixo. A sensação de vertigem que o assolou foi forte, e Adrien recuou de
forma cega, tropeçando numa espreguiçadeira para então cair na piscina. Quando
sua cabeça emergiu de novo, cuspindo água, ouviu uma risada velha conhecida, e
não conseguiu impedir um esticar preguiçoso de lábios quando reconheceu-a.
Virou-se, e ali estava, Jean, conhecido popularmente
entre os Observadores como Cigano, embora não tivesse sangue cigano — e nem que
fosse possível que possuísse.
Usava roupas coloridas e chamativas, com pulseiras e
colares de correntes intercalados com pedras preciosas cobrindo boa parte do
corpo de pele morena e músculos esguios. O cabelo, liso e preto, descia até
abaixo das escápulas, impedido de cair no rosto por uma bandana vermelha. Os
olhos, puxados e azul-claro, brilhavam com algo como sentimento de vitória, as
pupilas em fenda como os olhos de um réptil naquele instante, um sorriso torto
nos lábios, e o conjunto, mais a pose despreocupada, dava a Jean — que Adrien
sabia que o nome original era Jin, adaptado para Jean algumas décadas atrás — um
ar de bad boy. Adrien sabia que
muitas garotas tinham caído suspirando diante daquele ar do Drachen ao longo de
seus pouco mais de cinco séculos de vida — principalmente porque para os
padrões Drachen ele acabara de sair da adolescência, sendo algumas décadas mais
velho que Adrien, e por causa dos círculos restritos dos clãs Drachens, um
amigo próximo.
— Você não resistiu à piscina, hein? — falou, parando
perto da beirada, molhando a barra das calças jeans longas que o cobriam até o
calcanhar, os dedos descalços em contato livre com o azulejo molhado.
— O que posso dizer? A água me atrai! — deu de ombros,
ignorando a escada ao voltar para o chão firme, os músculos do braço se
tencionando enquanto se erguia até que estivesse de joelhos à beira da piscina.
Jean riu de novo, estendendo a mão para ajudar Adrien
a ficar de pé sobre os próprios pés, e então, ignorando que ele estava
encharcado até os ossos, o abraçou com uma força que poucos imaginariam existir
naqueles músculos, batendo com uma das mãos várias vezes nas costas do Lycan.
Lado a lado, era possível perceber que batia na altura dos olhos do outro
Observador.
— Cara, você não tem ideia de como é bom te ver! É a
maior chatice procurar Velhos Líderes e Guerreiros sem você, Alexandre e o
mestre Hayato! — Jean soltou Adrien, se afastando alguns passos e se jogando
numa espreguiçadeira, a frente da blusa e do colete começando a se colar ao
corpo por causa da água.
— Também é bom te ver, Jean. — sentou em outra
espreguiçadeira, as mãos com os dedos entrelaçados debaixo da cabeça, os olhos
se perdendo no céu cinza-chumbo que era a noite de São Paulo, algumas estrelas
solitárias aparecendo, a lua minguante parecendo minúscula e fraca daquela
distância. Tinha de admitir: embora detestasse sequer imaginar há quantos
metros estava do chão, o lugar que Jean escolhera era bom.
Embora fosse mais um mimo que qualquer outra coisa para
os poucos Observadores Drachens que estariam presentes. Tinha certeza que a
vista não se comparava a que costumavam ter — algo pouco mais baixo do que a
altitude de um avião — mas devia servir para matar a saudade de voar: o tráfego
aéreo dificultava que os Drachens pudessem tomar suas formas reais e voar como
costumavam fazer até algumas décadas atrás.
Era a única explicação plausível que Adrien encontrava
para explicar porque todos os Drachens que visitara tinham de morar na
cobertura do prédio mais alto possível. Não podia ser só por causa do dinheiro
que eles mal tinham no que gastar — tecnicamente.
— E aí, como vai o treinamento da Mensageira? — o
Drachen perguntou, o olhar relanceando para o relógio de pulso prateado que
destoava da composição colorida e aparentemente simples — já que provavelmente
era um Rolex. Soltou um tsc e olhou de novo para Adrien.
— Ainda não comecei a treiná-la... — olhou de soslaio
para o incrédulo Drachen. — Por isso pedi para Alexandre não mencionar nada
sobre Mensageiros, nem pra ela, nem para Arwen, e muito menos para a sua
aprendiz Amazona. — semicerrou os olhos e Jean ergueu as mãos num gesto de paz.
— Ok, entendi... Mas por que isso? — as sobrancelhas
se inclinaram quase num V perfeito quando falou, sentando de forma que os pés
descalços tocassem o chão.
Adrien logo sentou-se também, de frente para ele,
tirando os tênis e meias ensopados, seguidos da jaqueta jeans. Tirou a carteira
de um bolso interno da peça e agradeceu interiormente que usava uma carteira
impermeável — só de imaginar o inferno que seria conseguir novos documentos com
algum Drachen especializado o fazia ter dor de cabeça: a burocracia seria
enorme e levaria no mínimo dois meses, tempo que ele não tinha. A camiseta foi
a próxima, expondo o torso moreno coberto com finas cicatrizes mais claras,
deixadas pelas armas de prata das batalhas na Catedral e fora dela. Cinco
pontos relativamente fundos cobriam o lado esquerdo do peito, bem onde o
coração palpitava, como marcas de garras que tentavam perfurar algo. Jean sabia
que, de todas as cicatrizes, aqueles cinco pontos eram os mais dolorosos, não
apenas por serem as primeiras cicatrizes feitas de fato com prata, mas também
por causa de quem e quando foram causadas.
— Porque os dons dela despertaram somente de forma
superficial, por enquanto. Só alguns sonhos. Além disso, ela mal aceitou a
nossa existência, não devo sobrecarregá-la, ainda mais depois do sequestro. — estralou
a língua, pensativo. — Embora a cicatrização dela tenha se acelerado... Não
existe mais nenhum vestígio do que quer que ela tenha passado enquanto estava
sob o efeito das drogas... — cruzou os braços sobre o peito amplo, ainda
pensativo. — Era pra ter demorado mais uma semana... — balançou a cabeça, parecendo
querer desanuviar a mente. Provavelmente aquilo não significava muito.
Jean acenou em concordância, percebendo o ponto do
Lycan. Sobrecarregar Mensageiros não terminava nada bem, pelo que lembrava de
Hayato lhe contar. Mesmo com o que ele dissera sobre a cura acelerada.
— Começaram a reunião sem nós?! — os dois se viraram
para a voz alegre e feminina, vendo um grupo de dez pessoas, das quais três
eram mulheres.
Fora uma dessas mulheres que falara, com os braços
estendidos, como o apresentador de um picadeiro de circo. Tinha cabelos negros
e lisos presos num coque elegante e simples, um corpo magro, esguio, baixo e de
poucas curvas, de pele pálida, coberto por um longo vestido vermelho de corte
chinês com um dragão dourado subindo desde a barra até os seios pelo lado
direito, do lado esquerdo uma racha que deixava praticamente toda a perna de
músculos magros exposta. Os traços delicados do rosto não mentiam sua nacionalidade
chinesa, mas os olhos azul-claro de pupilas em fenda davam à mulher um ar
perigoso e antigo. Adrien deixou um sorriso se espalhar pelos lábios enquanto
Jean se levantava e cumprimentava a mulher com um sonoro “Tia, pensei que não
fosse poder vir! Não estava em turnê nos Estados Unidos?”.
— Cheguei não faz nem dez minutos, Yu. — Adrien
balançou a cabeça, acenando da espreguiçadeira na direção da Drachen. As
sobrancelhas finas e desenhadas de Yu se ergueram. — Estávamos conversando um
pouco, apenas...
Deslizou o olhar pelos demais integrantes do grupo, as
sobrancelhas se inclinando num V ao ver um homem com a aparência entre vinte e
trinta anos, com traços orientais se estendendo pela pele levemente morena; o
cabelo era branco-puro, cortado como se um dragão oriental estivesse pousado em
sua cabeça, com uma fina trança vermelho-vivo saindo de sua nuca como a “cauda”
do dragão e caindo por cima do ombro quase até a cintura. Suas roupas, cobrindo
um corpo de músculos medianos e tão alto quanto Adrien, no geral, poderiam
confundi-lo como o vocalista de alguma banda de metal — embora não fosse
possível definir o estilo exato desse metal. Mas foram os olhos puxados e
estreitos que o fizeram reconhecer o Observador, com as íris cor de bronze
derretido e as pupilas em fenda. Além disso, outro elemento o destacava.
Destoando de suas roupas, apoiava-se numa bengala retorcida de ébano, parecida
como se um galho da árvore houvesse caído e ele simplesmente o tivesse
recolhido, cheio de pedras preciosas, pequeninas e brutas, incrustadas ao longo
da madeira como se tivessem surgido junto dela.
— Hayato. — sua voz pareceu-lhe estranha aos seus
ouvidos. O homem balançou a cabeça uma vez, os olhos atentos, perspicazes e com
a sabedoria de milênios — no mínimo quatro — fixados em Adrien. — Jean tinha me
dito que estava na Inglaterra, numa escavação... — era verdade. Pouco depois de
resgatar Arely, Jean ligara informando aquilo. Como não conseguira falar com o
Drachen através do celular, pedira à Jean para falar com ele usando o número da
casa no país onde quer que estivesse — a maioria dos Drachens possuía pelo
menos dez casas confortáveis, cada uma num canto do mundo. Por causa disso, e
não esperando que Hayato viesse — sabia como ele gostava de se dedicar a
escavar coisas e lugares que ele provavelmente vira em seus dias de glória –,
esperava pedir à algum outro Observador que se aproximasse da garota que
suspeitavam ser a Guardiã.
— Jin conseguiu me deixar curioso. Espero que minha
vinda não tenha sido inútil... — O Drachen jogou um olhar mortal para Jean, que
se encolheu atrás de Yu, consciente do perigo ao ser chamado por seu nome real
por Hayato, o único — além de seus pais, que viviam isolados e confortáveis em
meio às montanhas do Himalaia — que o usava. — Meu aprendiz sabe que qualquer
Drachen que se preze odeia voar em lugares fechados, como esses malditos
aviões... — os olhos sábios se fecharam para o mundo por alguns instantes. As
sobrancelhas de Adrien se ergueram levemente ao ser lembrado daquele detalhe — Vamos
logo com isso. Quando me encontrou no aeroporto, Jin se recusou a me contar o
que aconteceu.
O Drachen se dirigiu à uma cadeira de vime com passos
firmes e decididos, apesar da bengala e de mancar um pouco com a perna
esquerda. Era óbvio que o Observador estava de mau-humor, embora ninguém, nem
mesmo seu aprendiz, soubessem dizer o exato motivo para isso.
Os que o conheciam há muito tempo, como Adrien, Jean e
Yu, a terceira Observadora mais velha, sabiam só de olhar para a face
contorcida de preocupação que algo tinha ocorrido para perturbar a ilha de
calma que Hayato sempre era. O Drachen era tão velho, e tão cheio de
experiência por tudo que vira, que a sabedoria e a inteligência pareciam pesar
em seus ombros para que sempre permanecesse calmo e analisasse tudo com frieza
antes de chegar à um curso de ação, considerando todas as variáveis possíveis.
Não apenas isso, todas as batalhas que enfrentara e os ferimentos que ganhara
também pareciam pesar mais conforme o tempo passava, dando-lhe cada vez mais vontade
de se esconder em algum canto do mundo e deixar a guerra para os mais jovens.
Como muitos Drachens tinham feito e ainda faziam.
Apenas depois que Hayato já estava acomodado é que os
demais ainda em pé se espalharam e se acomodaram pelo lugar — mas só depois de
um penetrante olhar do Drachen que dizia claramente “vamos logo com isso” — organizando
as espreguiçadeiras e cadeiras num círculo.
Um silêncio incômodo se arrastou, até que Hayato se
inclinou, os cotovelos descansando nos joelhos, as sobrancelhas finas e brancas
se inclinando por cima dos olhos estreitos, que se fixaram em Adrien novamente.
Foi como o instante ansioso de uma plateia que vê o hábil maestro preparar-se
para reger a orquestra, tenso e cheio de expectativa. Depois que Hayato fizera
o primeiro movimento, ninguém ousou interrompê-lo.
— Podem ter encontrado a Guardiã? — a voz do Drachen
foi pouco mais que um sussurro. Adrien se recostou na espreguiçadeira, ao mesmo
tempo irritado e surpreso com a pergunta de Hayato, surpreso com o uso do
pronome no feminino, tendo em conta que geralmente eram homens que podiam abrir
ou fechar os portões do Inferno. Com exceção de Jean, que fez uma careta que
dizia “droga”, a reação dos demais Observadores foi um erguer de sobrancelhas
associado à um autêntico ar de surpresa e cochichos especulativos sobre o que
levara Hayato à fazer aquela pergunta.
— Sim, podemos ter encontrado. — Hayato baixou o
olhar, esperando por informações que não vieram. Adrien recusou-se à falar
sobre Natasha até que Hayato dissesse como sabia daquilo, embora já tivesse
suas suspeitas. Esperou até que o Drachen erguesse novamente os olhos para ele,
perguntas brilhando no bronze-derretido. — Como ficou sabendo?
Os lábios de Hayato se apertaram numa fina linha de
desgosto enquanto apoiava as costas no encosto de vime da cadeira, cruzando os
braços sobre o peito, o couro da jaqueta se retesando com a tensão. Adrien
desconfiou que saber aquilo era o real motivo para sua vinda ao Brasil. E
também o motivo de seu mau humor.
— Sadiqah. Ela descobriu meu número com um antigo
aprendiz e ligou para cantar vitória sobre como tinham conseguido a Guardiã tão
facilmente, na segunda-feira passada... Por causa da reunião para a qual Jean
me convidou no domingo, desconfiei que vocês a tinham encontrado também, e
queriam discutir como se aproximar dela.
Adrien sabia que Sadiqah era uma Bruxa, que um dia
fora uma Mensageira debaixo dos cuidados de Hayato, antes de matar, perder seus
dons e implorar pela parte do espírito de um demônio. O Lycan não conhecia toda
a história, mas Yu dissera que ambos tinham sido muito próximos e que a queda
de Sadiqah fora um tremendo golpe para o Observador. Adrien soltou um
impropério enquanto se voltava para Jean, conseguindo apenas imaginar o que
podia ter acarretado aquela reação da Bruxa.
— Você não aproveitou a proximidade de Sílvya para
ficar de olho nela?! Você disse que estava fazendo isso! — o Observador mais
novo ergueu as mãos num gesto pacificador, e Adrien engoliu o resto de suas
palavras. Afinal, mesmo que algo houvesse de fato ocorrido, Jean não teria tido
oportunidade de informar: o recente sequestro de Arely, a segurança da garota
enquanto estivesse em São Paulo e os preparativos para aquela reunião tinham
ocupado completamente sua cabeça durante a semana.
— Eu não sei direito o que ocorreu... Sílvya me disse
que a Natasha arranjou um namorado novo essa semana, mas que não o apresentou
ainda... Inclusive eles iam sair juntos hoje, e que por isso ela não ia ver a
Arely... — Jean resmungou, fazendo caras e bocas enquanto seu cérebro
trabalhava para tentar chegar à uma conclusão de o que Sadiqah esperava ganhar
com aquilo... Há menos que ela realmente pensasse que não havia como eles recuperarem
a garota.
— Desculpem-me, mas quem são Sílvya, Natasha e Arely?
— Yu interrompeu, em nome de todos os Observadores presentes, o que
provavelmente ia acabar se transformando numa discussão de responsabilidade ou
algo parecido para a qual não tinham tempo.
O Lycan e o Drachen se entreolharam e suspiraram antes
de falarem sobre as três mencionadas, mais Arwen.
Hayato e os demais Observadores presentes ouviram com
atenção, pelos próximos trinta minutos, a explicação intercalada dos dois sobre
os últimos acontecimentos — como as moças tinham sido encontradas, o que os
Vampiros e Bruxos tinham feito ao descobrirem-nas, os poderes precocemente
despertados e o recente sequestro de Arely, entre outras coisas.
Quando os dois terminaram, fez-se silêncio por cinco
minutos ou mais. Todos pareciam tensos com as recentes notícias. Yu, a primeira
que se obrigou a sair daquele torpor, deu um suspiro e se levantou, alisando as
dobras do vestido.
— Vou cancelar todos os shows da turnê, inventar
alguma justificativa que dê um motivo de tempo indeterminado para ficar fora
das vistas, e vou para a Catedral preparar as coisas para a batalha. — virou
para as outras duas mulheres presentes. — Chamem mais alguns Observadores e me
encontrem lá em no máximo uma semana. — as duas balançaram a cabeça com olhares
determinados; os olhos intensos de Yu fitaram seus companheiros de batalha e então
ela sentou-se de novo, aguardando que o resto do plano se delineasse.
Um homem, aparentando ter entre trinta e quarenta
anos, cabelos castanhos rajados de cinza, de olhos verde-escuro, chamou a
atenção para si ao se levantar. Era daquele jeito que eles delineavam seus
planos preparatórios: um Observador tomava para si, voluntariamente, alguma
tarefa, e então pedia ajuda aos companheiros para cumpri-la; o Observador mais
velho presente, no final, apenas dava permissão e alterava a tarefa se achasse
necessário — somente durante alguma batalha os Observadores mais velhos realmente
davam ordens, guiadas por planos delineados pelos Mensageiros. Naquela reunião,
essa tarefa seria de Hayato.
— Vou atrás dos outros Observadores e então começar o
recrutamento entre os clãs Lycans e Drachens. Vou precisar de ajuda. — lançou
um olhar geral, e a maioria acenou a cabeça como um sinal de que se dispunham à
ajudá-lo, e então sentou-se de novo.
Hayato pigarreou, os braços ainda cruzados, observando
Adrien com seriedade.
— Já sabe o que fazer quanto à Guardiã? — a voz estava
ainda mais séria que seu rosto.
O Lycan suspirou de forma desanimada antes de
responder.
— Sinceramente? Não. — ergueu os ombros levemente como
que para pontuar sua fala.
Hayato olhou para Jean de forma reprovadora, antes de
se virar para Adrien de novo.
— Jean me disse que o Dante Alighieri está precisando
de um professor de História. Não tinha entendido até agora... — deu uma pausa.
— Estava pensando em me infiltrar lá e assim ficar de olho nela, tentar me
aproximar... Desconfio que os dons para magia vão despertar logo... — Adrien
fitou Hayato por alguns instantes. Devia ter esperado que o Drachen se
oferecesse para aquilo. Ele era especialista em se infiltrar como professor — não
era segredo que muitos Velhos Líderes e Guerreiros que ele encontrara fora
através dessa tática. Sem contar que escavações não liberavam nem a metade da
adrenalina que ter um novo aprendiz em Magia liberava em Hayato, disso Adrien
tinha certeza. O Lycan pensou um pouco e então balançou a cabeça.
— Excelente ideia, Hayato. Você pode...
Parou de repente, ele e todos os demais, tensos.
Uma súbita onda do plano espiritual os atingira. Tão
súbita que os fez ter certeza de que algo muito ruim acontecera, à ponto de
interferir no dito plano.
Como que em sincronia, suas cabeças se ergueram, seus
olhos fitando o topo do vidro inclinado. Eles sentiam as ondas, mais
frequentes, mais intensas, e então, um rugido os alcançou. Foi como se um raio
tivesse caído bem ali, no meio do círculo, o som do deslocamento do ar quente
quase estourando-lhes os tímpanos. Parecia a mistura do rugido predatório de um
leão com o urrar de dor de um elefante. Sim, de dor, porque o rugido estava
repleto dela, como se, quem quer que fosse a fonte dele, estivesse sendo morto
por dentro, com pedaços sendo retirados enquanto ainda respirava.
Eles conheciam aquele som, mesmo Jean. Hayato, Adrien
e demais Drachens e Lycans presentes tinham ouvido-o muito, e toda vez tinha
sido uma tortura. Todos estremeceram visivelmente.
O rugido de um Drachen sendo morto. Independente da
forma, real ou humana. Era aquele mesmo som, doloroso e triste.
O vidro rachou, as ondas do plano espiritual
subitamente calmas demais, e através da teia fina, um corpo longo e gigantesco
apareceu, sangue prateado pingando e escorrendo pelo vidro em grandes gotas,
caindo dos diversos cortes que separavam as escamas vermelhas e triangulares,
mas especialmente do corte no couro vermelho e espesso na parte de baixo do
pescoço grosso. Nas costas do dragão oriental de uns bons sessenta metros de
comprimento, um homem se equilibrava, um par de luvas com lâminas em forma de
meia-lua presas nas costas das mãos, o metal com um brilho que misturava o
amarelo do ouro e o cinza do aço; suas mãos desciam em sucessões rápidas e
intercaladas, inclinadas levemente para que as lâminas entrassem por baixo das
escamas das costas, o movimento tão rápido que a velocidade e o brilho estranho
do metal fazia parecer que eram cometas que atingiam o Dragão.
O Dragão rugiu mais uma vez; tinha um som mais
conformado, não tão imponente, como se seus pulmões não tivessem mais forças, e
começou a cair. O homem saltou para o vidro, as escamas vermelhas se desvanecendo
em névoa enquanto o Dragão se transformava em homem e caía.
O corpo inanimado bateu no vidro, o som triste ecoando
em seus cérebros, enquanto a gravidade começava a arrastá-lo para baixo, mais
sangue de prata ficando no vidro, marcando seu trajeto até a beirada do prédio,
de onde continuou caindo.
O outro girou no ar e pousou com agilidade, um sorriso
cheio de dentes pontudos se abrindo, os olhos de vinho-tinto brilhando como
sangue através da teia fina.
Fixou os olhos em Adrien, socando o vidro; as
rachaduras começaram a se partir, os cacos caindo como chuva ao redor deles,
enquanto o Vampiro se equilibrava nos suportes de metal. Quando o vidro com
sangue estava todo no chão e na piscina, longos fios castanho-chocolate e um
pedaço de tecido branco manchado de sangue caíram, o Vampiro sumindo antes
mesmo que alcançassem o chão.
Jean era o mais perto dos fios e do tecido, por isso
os pegou. Mal os fez, Adrien praticamente arrancou-os de suas mãos, levando-os
perto do nariz, embora o cheiro tivesse alcançado-o à distância. O sangue ainda
estava úmido.
Os olhos cor de bronze viraram para os outros
Observadores, um quê de desespero brilhando nas íris.
— Arely. — foi tudo que murmurou antes de calçar os
tênis e vestir a camiseta molhada e caminhar à passos rápidos para o elevador.
Hayato fez jus ao que ser o mais velho representava,
afinal, era um momento de crise. Apontou para as duas Observadoras presentes
além de Yu.
— Vão com ele. — as duas acenaram e sumiram dentro do
elevador, levando a jaqueta e a carteira que Adrien esquecera em sua pressa;
olhou para o Lycan de cabelos castanhos e apontou para três dos homens. — Tentem
pegar o rastro daquele Vampiro. — os quatro logo estavam no teto do prédio;
apontou para os dois últimos restantes. — Arrumem essa bagunça. — Olhou para Yu
e então para Jean, começando a andar. — Vamos, temos de pegar o corpo daquele
Drachen logo e acabar com qualquer evidência. Você nos acoberta com uma ilusão,
Jean. — a última frase foi dita quando já estavam praticamente dentro do
elevador.
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Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬