Depois da noite
do estranho pesadelo, Allan e Arely se aproximaram novamente. Ele quem passou a
ajudá-la todas as noites com as mãos em carne viva, e então permanecia com ela
e a ajudava a dormir, inclusive permanecendo depois, garantindo que ela continuasse
dormindo. E quando estava presente durante as refeições, o Lycan prestava
atenção e, se achasse que ela mais tinha brincado com a comida do que se
alimentado, a fazia comer mais. Não estava adiantando muito; ela continuava
emagrecendo, e os pais dela ligavam preocupados todas as vezes que Arely dormia
na própria casa, querendo saber se ela comera direito.
Os pesadelos
eram constantes, muitos fazendo-a abraçá-lo e então chorar até que adormecesse
de novo graças ao cansaço. Allan sentia-se impotente, incapaz de realmente
fazer algo que a ajudasse, cada vez que os episódios se repetiam.
E ela mergulhara
ainda mais fundo entre as vozes e a insanidade, incentivada pelo apoio dele — e
pela implacabilidade de Adrien, claro. Sentia-se segura em fazê-lo, que ele a
ajudaria e não deixaria que sua mente se perdesse para sempre.
Agora ela raramente
perdia peças para Adrien quando jogavam, e sempre vencia, tanto que ele mudara
o método e passara a usar simulações como num jogo de RPG, bem mais complicadas.
O controle sobre o próprio espírito na hora de curar, de acordo com o próprio
Observador, estava muito bom. Entretanto, as alucinações haviam piorado, e
agora ela era capaz de descrever a sensação de ter o fogo tocando sua pele sem queimar,
quando sequer havia fogo. Descrevia as flores silvestres do tal Jardim do Fogo
Celeste. Dizia que tudo estava em chamas que não feriam. Que o fogo dentro dela
pulsava com vida, querendo se libertar.
Ainda assim, o
Observador não iniciara o teste para a Catedral com ela.
— O que ele está
esperando, Ruby?!
— Mas que
inferno, eu já falei que não sei! — a ruiva respondeu, socando a porta do
armário, para que não socasse o irmão. Ou Adrien.
Estava tão
frustrada quanto o irmão por Adrien continuar estendendo o treinamento de
Arely, quando era claro que ela precisava pisar logo na Catedral para que não
ficasse presa na insanidade. Seu treinador nada lhe contara sobre. Não tinha
ideia do que ele pretendia, e isso a enlouquecia.
Ficaram mais
alguns minutos no quarto do mais velho, encarando qualquer lugar, menos o
outro, em silêncio. Por Deus, o que Adrien planejava? O que ele tinha na
cabeça? O que estava esperando?
Ergueu a cabeça,
vendo Allan ficar de pé num pulo e seguir na direção da porta. Franziu as sobrancelhas
com a cena.
— O que você vai
fazer?
— Conseguir
respostas do idiota.
Ruby o viu
fechar a porta à suas costas, e titubeou, pensando se o seguia ou não.
Com um suspiro
derrotado, achando que não ia terminar bem, foi atrás. Talvez impedisse um desastre.
Quando chegou na
sala, Arely já estava sozinha, olhando para a parede com um ar perdido, os
papeis com as simulações não visíveis.
Abriu e fechou
as mãos, controlando a raiva. Adrien saíra, sem ajudar Arely ou sequer
avisá-los. Como ele tinha coragem de fazer aquilo, considerando o quão perdida
nas vozes e na insanidade Arely estava, estava além de Allan.
Segundos depois
Ruby estava ao lado dele; ouviu a irmã suspirar aliviada. Ela provavelmente
estava esperando que uma briga se iniciasse, e agora estava aliviada que não
seria assim.
— Vou falar com
ele, mano, descobrir algo. Cuida da Arely? — a irmã indicou a garota sentada no
chão com um movimento de cabeça, e então avançou para a saída da construção.
Allan mordeu a
língua quando viu a irmã sair. Considerando o quanto ela respeitava o
Observador, duvidava que ela seria tão insistente numa resposta. E se fosse, e
ele respondesse por ela também ser uma Observadora, com certeza Adrien pediria
para ela não contar para qualquer outra pessoa.
Mas ele
precisava ajudar Arely, então ao invés de ir atrás da irmã, foi até a cozinha
pegar um pote com gelo e voltou para a sala. A Mensageira continuava na mesma
posição, sentada no chão e olhando para o ar com tanta atenção que Allan direcionou
os olhos para onde o olhar estava fixo. Havia apenas o nada, como esperava.
Com um suspiro,
sentou ao lado da garota e pegou as mãos apoiadas no colo, colocando pedras de
gelo nas palmas vermelhas com cuidado. Além de um estremecer de frio, ela não
reagiu. Aquilo o incomodou. Queria os olhos castanho-quente, que às vezes pareciam
brasas, nele, assegurando que estava tudo bem com ela.
Levou o pote de
volta para a cozinha. Quando voltou, Arely estava de pé, andando com passos
lentos e confusos pela sala, estendendo a mão para tocar algo que apenas ela
via. Sentiu-se culpado com a situação dela. Se ela não se sentisse tão segura
com ele a ajudando, duvidava que ela teria afundado tanto na insanidade das
vozes tão rapidamente. Os momentos de lucidez, em que ela conseguia voltar do
meio das vozes e interagir com eles, estavam cada vez mais raros.
Estava com medo
que ela não voltasse, mesmo depois de pisar na Catedral. O silêncio de Adrien
sobre a situação não ajudava.
Envolveu os
ombros dela com um braço e a guiou para o quarto, sentindo o peito arder com a
fala de resistência da parte dela.
Queria a Arely de
jeito doce, palavras brutas e fã de filmes de ação, luta e cheios de sangue de
volta.
Vermelho vivo num fundo branco. A cada segundo, a tela
diminuía, o sangue se espalhando mais e mais pela seda prata e pela renda
branca, saindo em profusão do rasgo no pescoço. Uma faca de ferro puro em mãos.
O cabelo negro preso num penteado elaborado se soltando, cachos se enrolando em
torno dos ombros. E os olhos azul-leitoso, com uma luz maléfica de autoridade,
fixos em Adrien.
Quem era ela?
Um sorriso sarcástico, de quem sabe tudo, se abriu nos
lábios manchados de sangue, e ergueu a mão livre, apontando para o Lycan de
olhos azul-claro.
— Te amaldiçoo, Adrien. Serás imortal ao tempo e
ninguém nem nada será capaz de te matar. Descobrirás outros quatro Mensageiros
depois de mim, e a quarta... Ah... Será o Corvo-Branco da Tempestade. Será a
sua ruína. A maldição que coloco sobre ti fará ela te amar, e querer te odiar,
e você... Amaldiçoo-te a ser incapaz de amar a contar de hoje. Terás uma pedra
no lugar do coração. Seu juramento à Catedral te matará e a destroçará; se
manterá emocionalmente afastado dela, mas por causa da fera não conseguirás deixar
que outro se torne o Consorte e protetor dela. Não conseguirás se forçar a
chamar outro Observador que a treine, forçando sua presença sobre ela, mas a
pedra no lugar do coração te fará imune a isso. E ela chorará rios por você, e
ainda assim, serás insensível a ela. E protegendo-a, morrerá em seus braços. Assim
eu disse, assim você será amaldiçoado, Adrien. Você é só meu e de mais ninguém.
Rolou na cama, o
sonho deixando-a agoniada, fazendo-a querer correr. Por pouco não caiu do
colchão: Allan, acordado por seu súbito movimento, usou os instintos Lycan para
segurá-la.
Não. Não um
sonho.
Uma visão.
Lucidez a
preencheu, emergindo de entre as vozes como há tempo não emergia, os tentáculos
das coisas que elas diziam enroscados em sua mente e apenas esperando para
arrastá-la, para fazê-la mergulhar entre elas de novo. Era tentador, com tudo
que elas diziam, tanto conhecimento a uma virada de esquina. Mas naquele
momento, não precisava disso, e as vozes sabiam. Pelo contrário, a incentivavam
a ir em frente, a exigir respostas, e a guiavam.
Raiva pura e
cega a invadiu. Não ouviu a voz de Allan, perguntando o que acontecera, não o
sentiu tentando segurá-la; se esquivou dele, pulou da cama, e descalça, correu
para o outro prédio, ignorando a grama seca e as pedrinhas pequenas e afiadas
machucando seus pés. Allan devia estar seguindo-a. Pensou ter ouvido a voz dele
chamando-a, mas não tinha certeza.
A raiva e as
vozes a guiaram até parar diante da porta do quarto de Adrien. Deu três batidas
fortes, como se o fizesse com pedras, e não com a mão, e não esperou uma
resposta, escancarando o pedaço de madeira.
Adrien e Ruby
levantaram de um par de cadeiras quando ela entrou de súbito, encarando-a com
olhares ao mesmo tempo assustados e preocupados.
Será que Ruby
sabia, e também mentira para ela? A amiga em quem ela se apoiava até pouco
tempo atrás?
“Só uma parte” as vozes responderam. Não tudo. Não mentira para ela.
Bom. Apenas uma pessoa com quem gritar.
Aproximou-se de
Adrien com passos largos, os olhos castanho-chocolate fixos nas íris de bronze
derretido, a boca uma fina linha de irritação.
— Seu idiota! Por que não me contou?! — ela enfiou o indicador no peito dele, e
Adrien recuou um pouco. Agora ele parecia confuso.
Era um idiota
mesmo.
— Do que está
falando, Arely? — ele tentou segurá-la pelos ombros, mas a Mensageira afastou
as mãos com um safanão e recuou alguns passos.
— Da maldição que colocaram em você! Eu
tinha o direito de saber que meu
direito de escolha foi negado por ela!
O Observador
fechou os olhos, os ombros caindo. Arely viu o peito se erguer quanto ele
respirou fundo, quase soltando um suspiro. A Mensageira abria e fechava as
mãos, impaciente para algo que ela não sabia o que era.
— Achei que você
não estava preparada pra saber isso. — veio a resposta, e ela era a gota da
água para Arely naquela relação que ficava cada dia mais complicada.
Sua mão direita
se fechou com força, e então socou o Lycan no rosto. Adrien foi pego totalmente
de surpresa, a cabeça virando enquanto recuava alguns passos. Ele levou uma mão
à mandíbula, massageando. Aparentemente ela tinha mais força do que ele esperava.
— Você sempre me
subestima! Sempre acha que não estou preparada para algo! — avançou de novo, e
apesar da mão dolorida pelo que fizera, sentia vontade de socá-lo várias e
várias vezes. Tinha trazido um alívio indescritível, como se a energia
acumulada tivesse encontrado uma forma de se libertar.
— Estava
tentando te proteger. — ele falou com uma voz débil, ainda não olhando-a de
novo. Parecia não acreditar muito no que ele próprio falava. Parecia não ter
coragem de olhá-la.
A Mensageira
rosnou de raiva, empurrando o Observador. Adrien bateu contra a parede e a
janela fechada.
— Pare de ser
covarde e olhe pra mim!
Ouviu duas
pessoas prenderem a respiração. Ruby e Allan? Provavelmente. Estava focada
demais na raiva que tinha de Adrien para notar os arredores com perfeição.
Adrien afinal
virou o rosto para ela de novo. O brilho nos olhos de bronze derretido era
magoado, e aquilo ao mesmo tempo quis arrefecer e aumentar sua raiva. A
influência que ele exercia sobre ela por causa do sentimento que tinha por ele
era irritante.
Ela é quem tinha o direito de estar magoada. Ele mentira sobre saber o que os Vampiros
queriam com ela. Ele ocultara o que
ela era, o que aconteceria a ela. Ele
não contara que o sentimento que ela tinha por ele era uma farsa, criação de
uma maldição. E ela sempre fora sincera com ele quanto a tudo.
Estava cansada
dele mentindo para ela, subestimando-a.
— Sua missão é
me treinar para que eu possa entrar na Catedral e me proteger fisicamente, para
não correr o risco de eu matar alguém e virar outra Bruxa por causa do desespero,
e não poupar meu psicológico! — Os olhos dele se arregalaram e a mandíbula travou
visivelmente, se segurando para não falar algo. — Pare de pensar na minha idade
e lembre que os poderes despertaram agora, mas que sou uma Mensageira desde
sempre, está entranhado em mim, e isso significa que aguento!
Arely recuou
alguns passos, respirando pesado por causa da explosão. Adrien fez menção de ir
até ela, mas a Mensageira ergueu uma mão, parando-o.
Caramba. Quem diria que Arely tem um bom gancho de
direita.
Allan gostara da
cena. Há tempos queria fazer o mesmo.
Engoliu em seco
e entrou no quarto, andando na direção de Arely e envolvendo os ombros dela com
um dos braços quando a explosão principal passou. Ela saltou no primeiro
momento, preparada para afastá-lo, mas relaxou quando viu que era ele, deixando
que o Lycan a apertasse contra si.
Ela tremia de
raiva, a pele parecia ferver e ela estava praticamente desabada contra ele,
como se tivesse perdido as forças. Temeu pela saúde dela, física e mental.
Aquilo tudo era desgastante.
— Espero que não
tenha mais nada sobre mim que você esteja escondendo. — ela falou, quase suave,
antes de fechar os olhos com força e levar uma mão à lateral da cabeça. Ela
parecia estar com algum tipo de dor.
Adrien deu
alguns passos na direção deles, e Allan rosnou inconscientemente enquanto se
colocava entre eles.
— Você já fez o
bastante. — viu o Observador engolir em seco e parar, sem tentar se aproximar
de novo da garota. Allan voltou-se para Arely de novo, apertando os ombros
dela, e agora ela estava com as duas mãos na cabeça. Tinha uma ideia do que
estava acontecendo. — Arely, olhe pra mim. — Ela abriu os olhos com algum
esforço. O castanho-quente estava enevoado com dor. — O que você está sentindo?
Ela molhou os
lábios, piscando.
— Parece que
minha cabeça vai explodir.
— E pontadas nas
solas dos pés. — Ela balançou a cabeça em afirmativa.
— E nos pulsos.
— completou.
Podia ouvir a
pulsação e a respiração aceleradas, sentir os músculos tensos.
Crise aguda de
estresse. Era muita coisa num período muito curto de tempo. Sinceramente,
estava surpreso por ter demorado tanto para ela apresentar uma.
Ignorando a irmã
e o Observador, o Lycan ergueu a garota, passando um braço pelas costas dela e
o outro por trás dos joelhos. Ela se encolheu contra ele, e Allan se apressou
para sair do quarto. Esperou que os gritos não tivessem acordado metade da casa.
Adrien e Ruby
ficaram sozinhos no quarto, observando a porta por onde Allan e Arely tinham
saído por alguns minutos.
— Ela tem razão,
sabia? — a aprendiz murmurou, e virou o rosto para Adrien. Ele a observava, as
sobrancelhas um pouco franzidas e um roxo se formando do lado direito da
mandíbula. — Você a subestima muito.
Adrien suspirou,
se deixando cair na cama e massageando o local onde ela o socara. Algumas horas
com o rosto doendo. Ele merecia.
— Estou
acostumado a lidar com Mensageiros nascidos em berços de ouro de grandes
famílias, mimados e mentalmente frágeis como vidro pela forma como foram
criados. — Soltou um riso. — Não com garotas que pisam em qualquer canto e
falam com qualquer um sem medo e ainda por cima sabem se defender sozinhas se
precisar.
Viu Ruby franzir
as sobrancelhas e cruzar os braços.
— Não nasciam
Mensageiros entre o povo comum?
— Nasciam, mas
muitos entre crianças de rua que passavam muito pelo dilema de matar ou morrer.
A maior parte não alcançava os dezesseis anos com a parte do espírito de um
Anjo se não fosse encontrada por um Observador. Inferno, pelo menos metade
acabava morta antes disso. Conseguíamos encontrar menos de um quinto deles. — eram
tempos doloridos, os que vieram antes de leis protegendo crianças e
adolescentes. — Muitos acabavam em prostíbulos que forneciam crianças, vários
vendidos pelos próprios pais, ou passavam por terríveis maus tratos em casa.
Hayato diz que chegou a encontrar vários nessas situações; os poderes despertavam
muito cedo por causa do trauma sofrido, e eles mergulhavam tão fundo entre as
vozes e na insanidade que era uma benção perto do que passavam. Metade dos
garotos era recrutada para guerras sem sentido e matavam e morriam. Outros
matavam no matar ou ser morto das ruas, enlouqueciam e iam parar em hospícios,
ou eram encontrados por Bruxos e Vampiros e viravam Bruxos.
Ruby sentou do
lado dele.
— Assim, só
sobravam os Mensageiros que nasciam entre as famílias ricas. — ela completou, e
ele balançou a cabeça em afirmativa. — Não é desculpa para subestimá-la. Devia
ter contado sobre a maldição.
Soltou um riso
sem humor, passando a mão pelo cabelo e tirando algumas mechas do rosto.
— Como? “Oh,
desculpe, Arely, sou amaldiçoado. Você deve me amar, mas não posso amar de
volta.” — de novo riu sem humor. Nem mesmo um sorriso apareceu nos lábios da pobre
imitação de si mesmo que Adrien fizera.
— Seria algo. — ela
deu uma pausa e observou o nada. — Como ela descobriu? — era o que ele esperava
que ela tivesse perguntado antes.
— Visões,
obviamente. E pelo jeito faz algum tempo, porque não contei pra ela a parte de
“não matar”. Visões e memórias reais se confundindo. Não é bom. — franziu os
lábios e as sobrancelhas, cruzando os braços. — No fim de semana vamos realizar
o teste. Já demoramos demais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬