Vi-me
dentro de uma sala completamente branca e estéril. Não fossem as sutis sombras
que a iluminação provocava e as linhas escuras que pareciam junções de placas,
eu estaria me sentindo no meio do nada.
Reparei,
com o canto do olho, que Ben tinha um sorriso no mínimo psicótico no rosto
enquanto digitava uma série de comandos no espectro alaranjado que tinha se
estendido por seu braço direito. Ouvi diversos clicks, e quando olhei ao redor, vi diversas daquelas linhas
escuras afundarem e então se separarem, deslizando para as laterais, deixando o
que só posso descrever como um protótipo de arsenal à vista.
Uma das
paredes – a maior – exibia uma variedade de elmos, capacetes, óculos e visores
que eu considerava absurda – nem em meus sonhos mais loucos existiam tantas
variedades. Outra, possuía armas. Muitas armas. Pistolas, arcos, luvas, rifles,
escopetas, metralhadoras, espadas, facas, adagas, bombas, granadas, arcos...
Acho até que vi um lança-chamas portátil – sim, um lança-chamas portátil. E a última parede possuía uma série de modelos
de exoesqueletos – que eram um tanto padrões para todas as espécies. De corpo
inteiro ou diversas formas de conjuntos, com mais ou menos suportes magnéticos
de armas, do azul meia-noite que Lobisomens costumam usar, com os circuitos por
onde o mitril escorreria e cobriria o corpo de quem estivesse usando-o de um
azul claro, suave, mas de um jeito estranho, brilhante como néon. Abaixo desses
exoesqueletos, as botas, um pouco mais altas que sapatos padrões devido aos
amortecedores e aos patins à base de turbinas.
Com
exceção dos exoesqueletos, todo o mais ali eu nem sonhava como funcionava
realmente. Eram feitos por Lobisomens e para Lobisomens. Cada raça possuía
armas e adicionais exclusivos, adaptados para sua própria morfologia. E todas
protegiam essas informações com afinco.
Senti
cutucarem minhas costas, vendo Luís quando me virei parcialmente.
- Escolha
um daqueles. – ele disse, apontando para a maior parede, em seguida me
empurrando na direção dela de leve.
Dei mais
alguns passos, encarando os suportes de acrílico que sustentavam cada elmo,
capacete, visor e óculos. De primeira, alguns pareciam iguais, mas se
observados mais atentamente, eu podia distinguir pequenas diferenças. Não sei dizer se eram diferenças funcionais
ou apenas na aparência, mas estavam lá.
Minha
atenção se fixou num simples, azul meia-noite. Parecia metade de um óculos, com
a haste atrás da orelha envolvendo-a completamente, com uma ramificação com um
fone de ouvido minúsculo no final. Na frente, a haste terminava numa semi-armação,
que possuía um vidro fino preso, de forma que cobriria apenas um olho. Aquele
monóculo me parecia ideal.
“Esse não. O do lado.”
Olhei para
o que fera me dissera para escolher. A única diferença visível era que não
possuía um vidro preso – provavelmente, produzia um espectro como visor. Minhas
sobrancelhas subiram quase que instantaneamente.
Não são tão diferentes assim...
“Vai por mim. O que está sem vidro é o
correto pra gente.”
Mas...
“Amadeus. A gente ainda não se conhece
tanto, é verdade, mas por favor, me ouça. Pelo menos dessa vez.”
Por que o faria?
“Porque isso é o melhor para Eliana.”
Golpe baixo...
“Eu sei...”
Fiz uma
careta depois da conversa com minha fera interior e mudei o trajeto da minha
mão para o que ele tinha me dito.
Peguei o
monóculo, analisando-o mais de perto, localizando um botão na haste, no ponto
onde saia a ramificação do fone. Imaginei que devia ligar o espectro através do
qual um dos meus olhos veria.
Olhei ao
redor, vendo um olhar espantado no rosto de Luís – sem brincadeira, os olhos
dele deviam estar do tamanho de pratos – enquanto Ben sorria discretamente por
entre o emaranhado loiro, parecendo quase esperar aquilo. De algum jeito,
aquele sorriso, junto do olhar divertido nas pupilas dourado-claro, dava-lhe um
ar solene, apesar dos fios amarelos que apontavam para todo lado como num
cientista louco.
- O que? –
ouvi minha voz falar. Luís piscou, sendo então balançado por um empurrão/soco
do tio, que começou a vir na minha direção. Me encolhi instintivamente quando
um de seus braços envolveu meus ombros e me espremeu contra seu tronco,
sentindo minha coluna estralar em diversos pontos.
- Rá!
Joshua vai gostar de saber disso! – falou olhando para o sobrinho, e então
olhou para mim. – Melhor se preparar, rapaz, porque não vai ser fácil!
Minhas
sobrancelhas subiram, minha expressão facial o mais confusa possível.
-
Explique, por favor.
- Esse
tipo de visor é usado por Lobisomens que são Infiltrados e Assassinos.
Lobisomens geralmente são só um ou outro, e esses já são relativamente raros. –
Era Luís quem falava, atraindo meu olhar para sua figura magra. – Por exemplo,
eu sou um Infiltrado. Faz uns bons dois ou três anos que não aparecem recrutas
que possuem as habilidades de um aqui no Fenris Fenrir. – ele deu de ombros,
quase como se não ligasse. – Se prepare para conversar muito com o Major,
porque ele é um Assassino e Infiltrado.
- Espera
aí. – os dois olharam para mim. – Como podem ter certeza de quais são minhas
habilidades? Que não escolhi esse visor por ser, sei lá, mais bonito ou coisa
do tipo?
Ben
soltou-me, o braço que tinha envolvido meus ombros coçando a massa disforme que
cobria sua cabeça.
- É algo
muito técnico, mas vou tentar simplificar: cada um desses visores produz uma
espécie de som que nossos ouvidos humanos não conseguem ouvir, mas de algum
jeito, as feras sim, mesmo que estejamos na forma humana. Os sons são
diferentes de visor para visor, e cada fera se sente mais atraída por um ou
outro. – ele fez uma pausa, agora coçando a barba. – Até hoje, a forma como
cada um foi previamente configurado ajustou-se perfeitamente às habilidades
naturais do Lobisomem que o escolheu, então, é um processo válido para definir
o que cada um estudará. É mais simples, fácil e rápido do que fazer os recrutas
realizarem um milhão de tarefas até descobrir o que melhor se adequará às
habilidades demonstradas. Agora, responda sinceramente: você escolheu esse
visor por que a fera o convenceu à isso, correto?
Ele tinha
o ponto. Contanto que fosse um método confiável – e era o que parecia –, era
muito melhor do que a alternativa.
Suspirei
de um jeito cansado, meus ombros cedendo.
- Sim, foi
a fera quem me convenceu. – a fala pareceu mais um resmungo, sendo quase
impossível definir o que eu falara. O cientista sorriu de um modo louco antes
de colocar a mão com força no meu ombro, fazendo-o ceder mais para aquele
lado... Preguiçoso com a postura como só eu posso ser, nem tentei me
endireitar.
- Vamos
tirar suas medidas e terminar de configurar o seu anel antes de Luís te mostrar
os campos de treinamento e encher sua cabeça com regras e mais regras.
Murmurei
algo ininteligível até mesmo pra mim enquanto me deixava ser guiado pela sala,
a fera resmungando “regras” num tom de “quem precisa de regras?” ao fundo.
Luís me
mostrou os campos de treinamento rapidamente, ao mesmo tempo recitando uma
infinidade de regras e me fazendo repeti-las – Lobisomens com coleira não podem
se transformar sem supervisão; brigas entre os alunos não são exatamente
proibidas, mas a intenção de matar é terminantemente proibida e pode garantir
um mês preso, etc... Se eu errava, ele enviava uma onda de choque através de
meu anel de sem clã no dedo médio. Então voamos para o quarto que dividiríamos,
nos arrumar para o jantar – mais porque eu ainda usava as roupas da enfermaria
que qualquer outra coisa.
Era um
retângulo de paredes de metal, com exceção de uma, que era um vidro fosco cheio
de circuitos – uma espécie de placa solar – inteiriço. Duas camas de metal com
colchões altos, um tanto maiores que camas normais de solteiro, estavam encostadas
às paredes, a parte dos pés para a janela. Uma porta deslizante na parede à
direita levava ao banheiro, e na parede oposta, um armário para duas pessoas,
todo cinzento. O chão, como boa parte de
Fenris Fenrir, era forrado com carpete cinza-escuro, macio contra meus pés
descalços.
Luís mal
me deu tempo para pensar depois que a porta do quarto fechou atrás de nós; voou
para o guarda-roupa, abrindo as duas repartições; numa delas, com suas seis
gavetas ao lado do cabideiro e prateleiras para sapatos na região mais baixa,
estavam minhas roupas: jaquetas e
calças, de couro e jeans, meus tênis e coturnos e, com certeza nas gavetas,
minhas camisetas. É, investiram muito tempo em mim, trazendo as minhas coisas
também... Olhando rapidamente os arquivos no meu anel, encontrei tudo que eu
guardava na pulseira em São Paulo. Até mesmo as organizações dos exércitos para
o jogo de simulação de guerra.
O
Sonnenblume jogou algumas roupas na minha direção, me fazendo cair sentado numa
das camas quando me desequilibrei ao pegá-las. Luís jogou algumas roupas na
outra cama e entrou no banheiro, e só então olhei bem o que ele tinha me
jogado: minha calça e jaqueta de couro, mais velhas e confortáveis, pretas de
um tom meio fosco, e uma camiseta azul-escuro.
Não tinham
passado cinco minutos antes que o rapaz saísse do banheiro, uma toalha enrolada
na cintura, o cabelo pingando e vapor seguindo-o. Ele parou e me olhou com os
olhos semicerrados, como se considerasse me jogar pela janela.
- Por que
ainda não começou a se arrumar?! O jantar é em vinte minutos! – o tom
irritadiço da voz do Lobisomem agiu como um chute no meu traseiro: pulei da
cama e voei para o banheiro, tropeçando no meio do caminho e quase despencando
no carpete.
Eu e o
Sonnenblume praticamente voamos pelos corredores e por uma das pontes que
interligavam os prédios, antes de pegar o elevador.
Eram
exatamente sete da noite quando chegamos ao salão onde as refeições eram
servidas. Não diferia muito dos refeitórios do colégio em São Paulo: mesas pra
todo lado, gente para todo lado, vozes, gritaria, espectros de jogos. Se o
jantar já estivesse sendo servido, provavelmente teria comida voando e gente
brigando por causa da tal também. Como um todo, podia ser considerado os três
refeitórios juntos e mais metade de um deles. De resto... Nada muito diferente.
Espera...
Sim. Além de mim, Davi e Larissa usando as coleiras, vi pelo menos mais uns
seis com os anéis de prata ao redor do pescoço. Recém-transformados como eu.
E também
uma briga que diferia muito, porque as duas pessoas – uma garota e um rapaz –
se transformaram no meio do refeitório. A cena fez um arrepio percorrer minha
espinha, enquanto a fera soltou um uivo animado, então me falando que queria
ver melhor e que eu devia me aproximar. Quase sem perceber, me aproximei, me
enfiando no meio do grupo que se formou para ver a briga de perto.
A garota
tinha se transformado num Lobisomem esguio de patas longas, mais alto que o
outro, seu corpo que mesclava características humanas e lupinas coberto de
longos pelos castanhos com uma faixa negra ao longo da coluna vertebral. O
rapaz já possuía maior massa corporal, embora fosse mais baixo, o corpo coberto
de pelos amarelo-claro, tons mais escuros no topo da cabeça e, como a moça, ao
longo da coluna. Ambos não conseguiam ficar com as costas totalmente eretas
quando de pé, andando um tanto encurvados quando não estavam com as quatro
patas no chão.
Aliás, as
patas frontais nem pareciam tanto patas. Eram mais como mão humanas. Dava até
pra eu ver os anéis de identificação de ambos, brilhantes em meio ao pelo.
Os dois se
deixaram cair, apoiando-se totalmente no chão, alguns pedaços das roupas
rasgadas encontrando o carpete cinza-chumbo e então começaram a rodear um ao
outro, os olhos de tons de dourado – ela com um de tons de castanho-esverdeado
– com um brilho quase assassino. Só quase.
Luís parou
ao meu lado, os olhos brilhando de um jeito que achei que era animação.
- Ok. E
agora?
- Como
assim, “e agora”?
- É, ué.
Quem separa a briga? – perguntei, e então o braço dele pousou em meu ombro com
peso, me fazendo entortar a coluna. O Sonnenblume riu.
“SEPARAR A BRIGA?! Você REALMENTE quer
impedir o momento mais excitante desde que nos transformamos de acontecer?”
A fera
berrou dentro da minha cabeça, e vi estrelas com a súbita onda de dor que
acompanhou sua voz.
- Enquanto
eles não tentarem se matar seriamente, tanto faz... – ele limitou-se a dizer,
se inclinando mais, praticamente entrando no círculo improvisado ao redor da
dupla. – Só aprecie o show, Amadeus. É o meu primo contra uma Vosien! Tem ideia
de como é difícil provocar os Vosien para uma luta?! Faz quase um ano desde a
última vez que um deles nos deu um espetáculo! – a mão livre de repente me
apertou um dos ombros, os olhos vidrados no enfrentamento que ainda ocorria. – Você
tem sorte, assistir um Vosien lutando no seu primeiro dia... – ele resmungou,
ainda sorrindo, antes de ficar em silêncio.
Soltei um
bufo, desistindo de tentar conseguir informação e virando a cabeça para observar
os dois Lobisomens.
A fêmea
arreganhou os dentes numa careta feroz, os pelos no pescoço se arrepiando,
fazendo-a parecer ainda maior, e então, quando o macho pensou em mostrar os próprios dentes, ela o atacou, pulando e
aterrissando em cima dele, derrubando-o.
Os dois
começaram a trocar golpes, rolando no chão e arrancando pedaços de carpete com
as garras, assim como pele e pelo com mordidas, sangue respingando e sujando
seus dentes e o chão e espectadores mais próximos com um vermelho vívido de
cheiro forte.
Esse
cheiro, de metal e violência, deixou a fera louca, quase literalmente falando;
queria se soltar e encontrar algo para estraçalhar, algo que morder.
Ela não era
a única sendo afetada; de algum jeito, apesar de eu ser humano, o cheiro e a
visão de sangue estavam mexendo com meu cérebro de uma forma desconcertante. Estava
começando a me sentir elétrico, cheio de energia, adrenalina correndo por
minhas veias e artérias tão rápido que estava me deixando zonzo, minha visão
desfocando nas laterais enquanto a vontade de correr e lutar me invadia, uma
ansiedade por... por...
- Amadeus?
– mãos me apertaram os ombros com força. Pisquei, acordando e percebendo que eu
inclinara meu corpo na direção do ringue improvisado, e então olhei para Luís.
De algum jeito, ele me pareceu preocupado, um brilho estranho em seus olhos de
girassol.
- Que foi?
– me endireitei conforme fazia a pergunta, sentindo minha garganta apertada, dificultando
a voz de sair. Repentinamente, o brilho estranho sumiu e um sorriso que me
pareceu selvagem se abriu no rosto do Sonnenblume.
- É
tentador, não é? – franzi as sobrancelhas, não entendendo muito bem o que ele
queria dizer. – O sangue e a violência. Parecem oferecer liberdade. Fica
tentador deixar o instinto dominar. – desviou o olhar, fixando-o na luta uma
vez mais. – Se deixar ser um com a fera sem reservas... – ele apertou meu ombro
de novo, um pouco mais forte, e abri a boca para falar, mas ele me cortou. – É
por isso que estamos aqui, Amadeus... – ele ia falar mais alguma coisa, mas uma
vaia geral o cortou, e quando olhei ao redor, tentando descobrir o motivo
daquilo, vi o macho de barriga no chão, as patas dianteiras torcidas para trás,
a fêmea pressionando-as contra a coluna com o joelho e usando um dos antebraços
para empurrar a cabeça dele contra o chão.
Um
silêncio caiu sobre o refeitório, completamente inesperado para mim, todos
olhando com atenção para a dupla. Uma série de rosnados alcançou meus ouvidos,
e para mim, eram apenas isso.
“Ela está perguntando se ele se rende.” A
fera começou, parecendo cheia de expectativas, antes de fazer silêncio,
aparentemente tentando ouvir a resposta. “Ele
disse não.”
O desejo
de uivar da fera nesse ponto era tão forte que quase cedi. Era tentador. Muito
tentador.
Isso quer dizer o quê? Mais briga pra sua
diversão?
A fera
meio riu meio uivou no fundo da minha mente. E então, contra todas as minhas
expectativas, a fêmea se levantou, membros se contorcendo e pelos caindo
conforme a carne ondulava debaixo da pele, voltando à forma humana. O macho,
ainda esparramado no chão, sangrando de mordidas nos ombros e braços, também
voltou à forma humana, antes da garota esguia de pele morena lhe estender a mão
e ajuda-lo a se erguer.
Ela passou
o braço pelo pescoço dele e o arrastou pelo refeitório, um sorriso estranho e
gigante no rosto de ambos, cortes e mordidas pingando sangue pelo caminho, as
roupas esfarrapadas.
Pelas
expressões nos rostos dos outros Lobisomens, aquele tipo de cena era comum,
rindo de leve enquanto voltavam a se espalhar pelo refeitório, lançando olhares
que me passavam uma sensação de orgulho e felicidade para a dupla, sentada numa
mesa não muito distante e destrinchando o que me parecia um enorme pedaço de
carne crua – que eu não tinha ideia de onde surgira – com quase nenhuma
dificuldade.
A cena me
deu fome, e a fera resmungou em concordância.
- Não
entendi... – resmunguei quando Luís começou a me arrastar, praticamente me
forçando a sentar numa das mesas.
- As
amizades mais fortes entre os Lobisomens costumam surgir de brigas. Alfas
frequentemente escolhem seus Betas com base em brigas durante os treinamentos
nas bases. Mesmo companheiros são escolhidos com base em brigas. – ele com
certeza percebeu minha expressão confusa, pois suspirou e fez uma careta
engraçada. – Não dá pra explicar; não é algo pra ser explicado. Você vai
entender, assim que sentir o que e como é ser um Lobisomem. – com isso, ele
apertou meu ombro. – Espera aqui. Vou pegar comida pra gente. – e então, com
passos rápidos que me fizeram pensar num cachorro correndo atrás de um osso,
ele sumiu para onde quer que pudesse pegar nossas refeições.
Luís
dormia ruidosamente na outra cama, frequentemente chutando o lençol que o
cobria. O ronco dele me fazia pensar numa britadeira. Tipo... Argh. Muito
rítmico e muito alto.
Desisti de
tentar dormir, me sentando na cama e puxando a calça de moletom para cima. Não
desisti apenas por causa do ronco de meu colega de quarto, mas por realmente
estar com a energia lá no alto. Nem mesmo passar todo o tempo depois do jantar
revisando clãs e suas cores ajudou a queimar toda a energia acumulada;
A fera
resmungando que a prata e as runas da coleira estavam deixando-o mais irritado
também não ajudava. Era um meio-rosnado constante no fundo da minha cabeça, me
chutando para fora do estado de quase-sono quando ele chegava.
Como eu
queria estrangulá-lo com minhas próprias mãos até que ele ficasse quieto...
Infelizmente, teria de me estrangular
para isso.
O
Sonnenblume tinha me dito que não era proibido zanzar pela base durante a
madrugada, mas sim desaconselhado:
nunca se sabe quando algum dos professores ou militares mais imperdoáveis te
arrancaria da cama às quatro da madrugada para fazer o que quer que fosse. Ele
também tinha me mostrado um pouco mais dos arredores dos dormitórios dos...
Alunos? Recrutas? Enfim, ele me mostrara uma espécie de sala de estar com vista
para a plataforma entre os três prédios que ficava ao nível do chão, de onde as
naves decolavam e onde pousavam. Era um ambiente largo, dedicado para os raros
momentos de folga onde grupos grandes demais para os quartos se reuniam, com
sofás, pufes e almofadas espalhados.
O lugar
também tinha marcas de brigas entre Lobisomens, mais visíveis que no refeitório
– pedaços do carpete estavam faltando, as paredes tinham arranhões longos...
Luís tinha dito que era consequência de juntar muitos Lobisomens com pouco tempo
de transformação num mesmo ambiente. Hormônios demais, controle ainda
deficiente e muitas alianças por forjar.
Nada muito
diferente dos humanos nesse caso, embora eu ainda não entendesse como uma
amizade podia surgir de uma briga.
Puxei o
maior pufe que pude encontrar para perto do vidro cheio de circuitos sem me
preocupar em acender a luz; meus olhos estavam muito mais sensíveis, e só à
noite, quando as luzes se apagaram, eu realmente percebera isso.
Era
estranho.
As cores
estavam mais vívidas, enquanto as luzes estavam muito mais brilhantes e as
sombras, mais claras.
Só assim
eu entendera porque as cores tinham tanta importância na sociedade Lobisomem,
em como elas influenciam nos clãs e em sua arquitetura. Lera nos livros do
colégio sobre como tudo era tão bem definido, decorara as cores dos clãs que
eram divulgados, mas não tinha ideia do motivo.
As cores
contavam histórias e pulsavam vida, essa era verdade. Notei isso quando, depois
do jantar, olhei novamente para o anel vermelho pôr do sol de Luís e quase pude
ouvir um murmúrio, intensificado quando reparei em seus olhos e cabelos. O
murmúrio contava da energia dos Sonnenblume, de como o clã fora o primeiro a
conseguir quebrar as barreiras das noites de lua cheia, conseguindo se
transformar ainda durante o pôr do sol, cada vez mais perseguindo o astro como
o girassol em seus olhos. Algumas partes eu não compreendia, mas a fera
completava solicitamente; naquele momento, ele ficara quase solene.
Ok, não
era exatamente um murmúrio. Não existe uma forma correta de explicar como
aquele “código de cores” foi traduzido por meu cérebro, mas ele contou uma
história tão antiga quanto o início das raças.
Quando
pergunte à Luís, ele dera um sorriso estranho antes de bagunçar meu cabelo e
falar que só estava começando, que eu logo entenderia mais. A frase tinha feito
um arrepio percorrer minha coluna.
Era também
o motivo para tons de cinza imperarem na construção da base e, pelo que Luís
dissera, nas cidades. O cinza contava de neutralidade e união, de como
construções de pedra e aço tinham sido os lugares onde os Alfas entraram em
acordos e evitaram guerra entre os clãs, de primeiro contato com outras raças e
de conversas civilizadas com elas, evitando outras guerras. Fenris Fenrir era
um lugar para se forjar alianças e paz, mesmo que fosse uma base militar.
Afundei no
pufe, observando os circuitos percorrendo o vidro e que lançavam uma luz difusa
em mim, antes de focar o olhar na plataforma centenas de metros abaixo. Havia
algumas naves pousadas no escuro, com um espaço considerável ainda livre. Os
outros dois prédios do complexo só estavam visíveis por causa dos circuitos e
de luzes que acendiam e apagavam constantemente nos andares mais altos.
Olhei para
o anel em meu anelar esquerdo, de um tom puro de dourado. Tinha evitado fazê-lo
desde que notara como as cores falavam.
Aquela cor
era difícil de entender, de interpretar. Em um determinado momento, parecera
ter falado sobre um templo dourado e prateado invadido e manchado de sangue. Em
outro, falara sobre algo ancestral jurando vingança. E naquele momento, falava
sobre perseguir o Sol e a Lua. Era como se houvesse uma centena de coisas
ligadas à ela.
Suspirei,
olhando de novo para fora. Segundos depois, uma nave não muito grande
estabilizou acima da plataforma e pousou lentamente. Com a distância e o
escuro, só pude perceber a porta se abrir e silhuetas contra a luz interior,
com o que parecia uma maca sendo levada para fora.
Esperando
que não se tratasse de algo sério, voltei a atenção para o meu anel de sem clã
de novo, ativando-o; a interface espectral apareceu, se espalhando pelo meu
braço em tons de verde. Deslizei os dedos pelas teclas, descobrindo o que era
igual e o que era diferente da pulseira de identificação que eu tinha em São
Paulo.
Repentinamente,
uma luz amarela piscou num canto antes de se expandir automaticamente no que me
parecia uma espécie de caixa de mensagens. Entupida de mensagens de Eliana e de
meus pais, Isabel e Anderson. Mensagens. Demais.
“Acho que estão preocupados com você...” havia
um tom divertido na voz da fera; resmungando, comecei a abrir as mensagens mais
recentes da minha família.
Eu devia ter perguntado pro Luís como
entrar em contato com eles antes dele apagar... Respondi tardiamente
para a fera enquanto escrevia uma mensagem única para os três, respondendo as
dúvidas mais urgentes, falando que eu acordara, estava bem e que depois entrava
em contato com eles, encerrando com um autêntico “Com saudades e Eliana, não fique
acordada até tarde” – minha irmãzinha enviara sua última mensagem não muito
tempo antes de eu descobri-las. A fera resmungou alguma coisa sobre ser
impossível controlar crianças com um riso contido.
Uma vez que a mensagem estava
enviada, me levantei, voltando para o quarto e determinado à dormir. De alguma
forma, depois de enviar a mensagem, o sono me alcançara.
Só esperava que Luís tivesse
parado de roncar...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬