Não tinha ideia do
que estava acontecendo comigo.
Depois que matei
Adriane com minhas próprias mãos, que a soquei até ficar irreconhecível e que
me encontraram, Rashne me trouxe para a chácara onde eu acordara.
Mas eu não me sentia
bem.
Meu estômago estava
cheio de borboletas idiotas, e teias negras e brilhantes faziam questão de
girar diante de meus olhos. Uma dor de cabeça desgraçada me atacava de todos os
lados e meus braços doíam miseravelmente – principalmente as mãos, feridas
pelos socos e pela maldita lei de Newton que diz que toda ação gera uma reação.
E minhas asas. Doíam tanto que tive a impressão de que tinha machucado-as. Acho
que estava tão mal por causa do sangue que bebera... Mas vai saber...
E quando chegamos,
Rashne me levou para o quarto onde eu tinha acordado. Me fez sentar na cama – e
eu não sentei, despenquei, louca pra me deitar e descansar – e me buscou um
espelho. E me fez olhar para ele.
E me assustei com o
que vi.
Meus olhos tinham
vestígios de azul-elétrico. Minha boca e meu queixo estavam cheios de sangue seco:
sangue do meu namorado e que eu sugara. Que eu gostara. Mas agora aquilo fazia
eu me sentir o ser mais terrível do mundo. Mamãe chegou a se sentir assim por
beber do meu sangue?
Meu vestido, presente
das Aranhas Lunares e feito com seus cabelos, estava todo rasgado e sujo.
Completamente sem recuperação.
Não sei como, mas eu
estava cheia de arranhões e ferimentos e hematomas. E eu fora atingida poucas
vezes. Estava quase como na visão que eu dizia “Tudo culpa sua”. Os arranhões
em meus braços e em meu rosto eram como se alguém tivesse tentado me afastar,
se defender da minha fúria. Adriane resistira? Eu não me lembrava. Só lembrava
da sensação de seu rosto contra meus punhos, repetidas vezes, e do quanto eu
gostara daquela sensação. Não senti dor ou o que quer que fosse por ela me
golpear, tentando salvar a própria vida.
Mas o que me fez
entrar em prantos e abaixar a cabeça até esconder o rosto na saia do vestido
foi ver minhas asas.
Estavam destroçadas.
Em farrapos. Feridas. Cheias de sangue coagulado.
Como?
Eu cuidei para que
ninguém as tocasse, porque Galagöa e as demais Aranhas tinham refeito-as. Eram
um símbolo de que elas tinham me salvado.
E, ainda assim, eu
acabara de vê-las completamente destroçadas, desfeitas. Como que atestando
minha desgraça.
Não ergui o rosto
quando senti Rashne me puxar pelos ombros e me abraçar. Apenas o abracei com
mais força, escondendo mais uma vez meu rosto em seu peito. E continuei a
chorar. Porque eu só tinha vontade disso.
Depois de algum tempo
chorando, as lágrimas secaram, não importava o quanto eu queria chorar. E
então, Rashne me ajudou a levantar e me levou até o banheiro conjunto ao
quarto. Não era grande coisa, mas o suficiente para o que eu precisava.
Não me incomodou nem
tive vergonha ou qualquer coisa do tipo quando ele me ajudou a me despir e a
tomar um banho, sentada num banco de madeira que estava ali. Aliás, foi ele
quem lavou meu cabelo e o desembaraçou.
Não sei explicar
direito por que... Talvez uma longa conversa que tive com Galagöa no dia que
ele chegou para me buscar em Kolshö sobre os diferentes tipos de laços que unem
as pessoas. E talvez por me recordar da menina chamada Esperança... – Ou talvez
por saber que ele criara Alessa e que ela parecia não ter trauma algum por
isso...
Minha mestra Aranha
Lunar disse que quando nos viu interagindo, viu mais do que duas pessoas
apaixonadas. Viu duas pessoas que, além de se amarem, possuem um senso de
companheirismo tão forte, que independente da distância, sempre estarão ali
quando o outro precisar, sempre conectados, não apenas pelo fio de Teia, mas
também em pensamento e espírito. Viu duas pessoas que sempre estarão ali quando
a outra precisar. Viu duas pessoas que não se amam apenas porque gostam da
aparência ou da personalidade uma da outra, mas porque algo que foi decidido
muito antes de nascermos quis que fosse assim. E nos uniu com algo profundo e
forte.
Naquele momento, que
ele me ajudou de forma tão íntima, eu soube disso. Soube, naquele instante, que
nunca iria querer outro homem – ou o que quer que fosse – na minha vida. Era
ele e apenas ele enquanto eu vivesse, enquanto meu coração batesse. A menina
chamada Esperança pareceu ficar mais nítida em minha mente...
Em momento algum ele
tentou algo. Apenas me ajudou. E devo admitir que eu precisava de ajuda. Eu me
sentia em pedaços. Martelada seguidas vezes, até sobrar apenas cacos que eu
devia juntar. E que eu não conseguiria juntar sem ajuda. Eu estava...
Estava...
Não havia palavras
que descrevessem o quão decepcionada comigo mesma eu estava por me entregar à
raiva e ao ódio, depois de todas as vezes que Rashne me disse que sentimentos
ruins não combinam com Fadas. O quão triste estava por minhas asas. O quanto
doía saber que não mais veria vovó e seu sorriso ou ouviria seus conselhos...
Talvez, naquele
momento, Despertador tivesse me ajudado. Minha Mantícora, minha eterna
companheira, que me entendia melhor que ninguém; mas eu não precisava que me
entendessem. Apenas que me apoiassem... Que me ajudassem a recolher os pedaços.
Infelizmente, ela não
seria o suficiente para aplacar toda a dor que me consumia de dentro pra fora e
de fora pra dentro, física e mentalmente, até o ponto em que se encontrariam e
só haveria dor dentro de mim.
Eu já teria me
consumido em dor se não fosse por Rashne ali, do meu lado, com sua aura de paz
pedindo permissão para entrar e expulsar todo o mal que preenchia meu ser; expulsar
toda a dor que queria se tornar soberana onde só devia haver paz e tranquilidade
e felicidade e toda a sorte de sentimentos bons. Se não fosse ele ali, me
apoiando e me fazendo lembrar o sentimento que nos unia.
Eu notei que aquele
laço que nos unia, de algum jeito, era muito mais forte que amor, que ia muito
mais além. Porque não podia ser apenas amor. Tinha de ser algo sagrado e
sublime a ponto de me fazer sentir tão completa apenas com a sua presença. Algo
tão sagrado e tão sublime – hum, é, preciso renovar meu vocabulário – que me
fazia ter certeza que nunca fiz a escolha errada ao empurrar Sammuel para
Hadassa, e que não havia outros motivos para que eu tivesse invadido justamente
o sonho de Rashne e ter uma visão com ele, que não fosse para ter certeza de
que éramos feitos um para o outro. Fora a menina chamada Esperança, cujos
traços obviamente eram meus e dele, cuja visão me veio antes mesmo de meus
poderes despertarem – lembro-me muito dela desde que as Aranhas Lunares me
salvaram. Quase como que uma repreensão por quase ter desistido dela.
Era um laço sagrado
que nos unia, sem dúvida alguma.
Naquele instante, em
que todas essas considerações passaram por minha mente, quando ele estava
enxaguando meu cabelo com cuidado para não cair em meus olhos – e para não se
molhar também –, pude ver o fio da Teia que ligava o meu coração e o de Rashne.
E ele também viu. Surpreendeu-se por um momento, mas logo ergueu o olhar da
Teia para meus olhos.
E sorrimos ao mesmo
tempo.
Meu coração martelava
em meus ouvidos, enquanto eu colocava minha mão ensopada no peito esquerdo
dele. E o quanto nossa união era profunda ficou ainda mais evidente.
Senti que seu coração
estava tão acelerado como o meu, e nossos corações batiam no mesmo ritmo, como
tantas vezes eu percebera, mas não ligara muito. Naquele instante, me parecia a
melhor coisa do mundo. Nossas respirações estavam no mesmo ritmo. E quase como
uma aparição, o colar dele se completou por um instante, e tenho certeza que o
meu também se completou.
Um círculo perfeito
de safira, com nossos nomes gravados no dourado. E a safira virou um rubi que
começou a pulsar no mesmo ritmo de nossos corações.
Ergui meu olhar para
ele de novo, sentindo a mão dele cobrir a minha, a outra acariciando meu rosto,
e senti que apenas a dor da ausência de vovó persistia.
E eu não fazia
questão que ela fosse embora. Com ela, eu teria de me acostumar. Porque a dor
da perda de alguém é uma ferida que nunca cicatriza totalmente. Forma-se apenas
uma casca, que qualquer toque pode tirar e a ferida volta a sangrar.
Mas eu tinha certeza
que, com Rashne do meu lado, eu conseguiria mantê-la fechada. Ou, se ela se
abrisse, ele estaria ali para me ajudar a tampá-la de novo.
Rashne me auxiliou
enquanto eu me vestia, e depois deitamos na cama, eu apoiando a cabeça no peito
dele. Ele começou a cantarolar uma música qualquer – meio desafinado, mas eu
não ligava – enquanto deslizava os dedos pelo meu cabelo, sua aura de paz
sempre presente.
E adormeci num sono
reparador. Um sono que minha mente ia usar para consertar tudo que fora
quebrado. Um sono que eu necessitava.
− Tire as mãos dele. – surpreendi-me quando meu sonho
transformou-se numa visão. Ainda mais uma tão conturbada e confusa.
Eu falava com alguém que eu não podia ver. E eu só tinha
certeza de que era eu porque, bem, porque eu tinha asas grandes e azuladas. Mas
só. Eu tinha... Curvas,
coisa que nunca pensei ver em mim. E o
meu cabelo estava ondulado, indo até os ombros e caindo de um jeito bagunçado e
estranhamente elegante sobre meu rosto. Nada de juba meio black-power.
Mas havia algo em minha face... Uma dor profunda, mas
disfarçada.
A visão então me levou para vivenciá-la na minha própria
pele daqui a alguns anos. E eu senti toda a dor que meu eu do futuro sentia.
Toda a dor que me dilacerava por ver quem quer que fosse ameaçando a vida de
Rashne. E não havia palavras que a descrevessem. Havia apenas... Dor. Muita
dor.
Será que fora isso que papai sentira ao ver mamãe
definhar lentamente?
Aquilo era demais para mim. Eu acabara de perder vovó, e
o Mundo dos Mortos ou quem quer que fosse já queria me dar uma visão onde eu perdia meu namorado. Aquele a quem eu não
suportaria mais viver sem. Obrigada pelo senso de humor negro.
Quem mantinha Rashne em seu sono mágico riu de forma
tenebrosa. Uma forma que me lembrou o Elemental da visão com o tio da Hadassa.
− Vai sonhando, Fadinha... – porque todo mundo tem de me
chamar de Fadinha? – Eu jamais poderia permitir que a Primeira, O Poder para
chegar, continuasse feliz após tudo que fez... Você vai pagar por nos tirar
nosso mestre e por acordar o outro.
Ele ergueu a mão, uma faca se materializando. E ela
desceu, fatal, em direção ao pescoço de Rashne.
Fechei os olhos com força, esperando ouvir o som de carne
se rasgando, de sangue espirrando e sentir aquele cheiro tão enjoativo e, ao
mesmo tempo, tão tentador. Como eu sabia que era tentador? Não sei, eu só
sabia.
E ouvi realmente esses sons. Com o rosto banhado em
lágrimas, abri os olhos, preparada para estraçalhar quem acabara de me tirar
aquele que eu mais amava.
Mas entrei em parafuso quando vi que o morto era quem
ameaçara matar Rashne.
Atrás do corpo do Elemental, estava Huriye, ensanguentada,
uma flecha ainda mais ensanguentada na mão, material, e muito mais bela do que
eu me recordava. Não havia uma sombra ao seu redor. Pelo contrário. Ela parecia
irradiar luz por cada poro do corpo, um sorriso tão radiante adornando seus
lábios que me ofuscou o olhar. E vislumbrei seus olhos. Nada mais de
azul-doloroso ou de lágrimas vermelhas. Apenas um azul tão límpido e puro que
nem os olhos de Rashne se igualavam. Como se ela fosse superior. Seria assim um
Ahura?
− Lembre-se sempre, Parikhan. Eu estarei sempre ali se
precisar de ajuda. Meu pagamento por me livrar da escravidão e por ter
insistido até que eu acendesse de novo. E por não deixar que Rashne caía.
Um rapaz correu em sua direção e a abraçou, e seu sorriso
era tão radiante quanto o dela. E reconheci o rapaz da visão da Banshee e do
parto. Era a mesma Salamandra. O que o monstro de Água se formou à suas costas
e que cantava no mesmo ritmo da Banshee e que me passava calma.
Ambos trocaram um olhar apaixonado, e ele manipulou Água para que fizesse uma pista de gelo pela qual deslizaram.
E eu acolhi Rashne em meus braços, murmurando o contra-feitiço
para acordá-lo, sentindo meu coração tão preenchido pela felicidade por ele
estar vivo que achei que iria explodir.
Acordei lentamente,
embora os berros de raiva e surpresa ao meu redor insistissem para que eu
acordasse mais rápido.
O que raios aconteceu pra todo mundo estar tão
estressado?
Olhei ao meu redor,
sentindo falta do calor do corpo de Rashne, sentando na cama e coçando a
cabeça. Devon, Alessa, Eshe, Sammuel, Thaíze e mais alguns que não reconheci
estavam reunidos no quarto, Rashne à frente deles, gritando algo como “Ela
precisa descansar!” enquanto os demais tentavam se aproximar.
Até que, me vendo
acordada, Thaíze e Alessa tentaram furar o bloqueio que Rashne formara.
O QUE CARGAS D’ÁGUA
ACONTECEU?!
As duas foram
lançadas para trás, com vários fios de cabelo ficando espetados, enquanto uma
parede de raios azuis ficava evidente. Uma barreira de Eletricidade.
Olharam imediatamente
para Rashne, que parecia tão surpreso quanto eles enquanto os raios se mexiam incansavelmente,
formando desenhos e desenhos, me hipnotizando.
E então, todos
olharam para mim. Eu não reparei isso, exatamente. Eu só tinha olhos para a
barreira elétrica. Mas algo como sentir minhas costas queimando ou algo assim
me fez voltar a realidade.
− Que foi?
Todos aqueles olhares
estavam me deixando com medo... Eu fiz alguma besteira realmente grande e não
tô sabendo?
− Stacy... É você
quem está mantendo essa barreira elétrica? – Eshe por fim falou o que devia
estar se passando na cabeça de todos.
Uma palavra: ABSURDO!
Eu até sei fazer
barreiras, mas manipular a eletricidade... Isso mamãe não me ensinou! EU ia
acabar levando um choque se tentasse!
Ergui uma sobrancelha
antes de responder.
− Eu nunca aprendi a
manipular eletricidade. Como faria uma barreira desse tipo sem saber manipulá-la?
– Eshe suspirou, balançando a mão como quem diz “Tá, tanto faz.” Girei os
olhos, cruzando os braços e as pernas de um jeito infantil. – Mas porque cargas
d’água vocês estavam berrando tanto? Caramba, eu tava num sonho legal... – a
parte do sonho eu murmurei, olhando para Rashne e notando que ele estava sem
camisa, com sua bela tatuagem exposta – aquelas asas que eu não me cansava de
olhar e que, às vezes eu tinha a impressão de que estavam aumentando e passando
do branco para o bronze, embora parecessem voltar ao estado anterior, algo meio
estranho, sabe... Será que o Devon entrou no quarto atrás de mim e deu piti de
novo porque viu a gente dormindo junto, e de novo o Rashne estando sem camisa?
Putz, achei que ele já tivesse ultrapassado a fase irmão ciumento.
Se vovó o visse
naquele momento...
E então, totalmente
desperta, a realidade me atingiu e a dor psicológica voltou.
Vovó nunca mais nos
veria. Eu nunca mais a veria.
Sem mais broncas. Sem
mais risos. Sem mais piadinhas. Sem mais conselhos.
Não notei que
lágrimas rolavam por meu rosto e que Rashne tentava me abraçar e então,
provavelmente, perguntar o que acontecera. Não notei que a barreira elétrica
tinha se intensificado. Não notei que eu mesma não permitia que Rashne me
tocasse por causa... Por causa... Aquelas linhas azuis que me rodeavam a pele e
apareciam de vez em quando como raios e avançavam no meu namorado quando ele
estava muito perto era eletricidade?
Eu virara uma Pikachu da vida e agora estava soltando
raios sem querer?
Fala sério.
Mas a dor por saber
que vovó estava morta não amenizara. Também não diminuíra, mas continuara ali,
forte e deprimente.
Não sei por quanto
tempo fiquei ali, alheia ao que acontecia ao meu redor, apenas sentindo os
olhares dos presentes no quarto e remoendo a dor pela perda de vovó.
“Acordei” apenas quando senti um toque em meu
braço, vagamente familiar. Meus olhos se focaram no rosto à minha frente, e
reconheci Hadassa, ajoelhada na cama, os brincos de folha pendendo em suas
orelhas, respondendo minha imediata pergunta de como me alcançara e não se
ferira.
Ela me sorria, e
conforme eu afastava as lágrimas, pude perceber uma caixa longa e fina em
feitio de baú em cima de suas pernas. Era intrincadamente decorada com relevos,
com galhos reais se estendendo por toda a superfície e selando-a, todas as
pontas se encontrando num selo feito de cera e cujo símbolo eu reconheci como
um feitiço de selamento e proteção extremamente
forte: só podia ser aberto com uma gota de sangue daquele que realizara o
feitiço ou de quem ele denominara que poderia abri-lo.
− Como está se
sentindo, amiga minha? – Hadassa perguntou, segurando minhas mãos entre as suas
e aquecendo-as. Só então eu percebi como estava fria. Não com frio. Mas fria,
como se minha temperatura estivesse vários graus abaixo do que deveria.
− Despedaçada.
Destroçada. Com tanta dor provocada pela saudade que me sinto... Me sinto...
Não sei. Apenas... Me sinto. – murmurei, nem eu sabendo direito como expressar
meus sentimentos. E então notei que estávamos apenas nós duas no quarto. – Onde
estão os outros?
− Pedi que nos
deixassem sozinha. Você está muito instável. Acho que Rashne ou Eshe podem
explicar assim que essa eletricidade toda se dissipar... – ela acariciou por um
momento a superfície da caixa, suspirou, e então me estendeu o objeto. – Sua vó
deixou comigo durante o casamento e me fez jurar que lhe entregaria depois da
virada do ano se ela não pudesse fazê-lo...
Olhei para a caixa
por um instante, abismada demais. E então, mordi meu polegar e esfreguei o
sangue no selo. Vovó sabia que provavelmente não poderia me entregá-la, por
isso meu sangue deveria abri-la.
Os galhos se
retraíram até o outro lado da caixa, onde formou uma espécie de bolota e ficou
ali, pulsando, como que com vida.
Levantei a tampa. E
senti o mundo girar e concentrar-se naquele momento quando vi uma carta e um
pergaminho. O mesmo pergaminho que Aine deixara na cômoda de meu quarto na primeira
visão que Anoen me dera.
Abri primeiro a
carta. E senti as lágrimas, contra as quais eu tanto lutara, voltando.
Stacy, minha querida Stacy...
Você com certeza já passou por todas as cerimônias que
devia passar. Com certeza já descobriu quem você é. Já teve seu coração ferido
e cicatrizado. Já demonstrou poder. Já odiou. Já amou. Já matou. Porque foi
assim que Aine disse que seria.
Desde o início, eu soube quem você era. Soube de seus
dons. Por isso sempre busquei te guiar, minha Olhos de Folha. Olhos da
Floresta.
Admito que quando você fez quinze anos e ainda não tinha
despertado seus poderes, comecei a me preocupar... Mas então, quando descobri
sobre sua mãe, fiquei incerta de no que acreditar.
Mas, afinal, você tem crescido tanto... Tem se esforçado
e evoluído, e você não é mais aquela criança que eu carregava no colo. Também
não é mais aquela adolescente cheia de energia e que ri de tudo.
Já é uma mulher. Uma Fada adulta, forte e que vê e sente
as cobranças sobre si.
E, como poucos, você deve e tem como saber o que te
espera. E, se não compreender, poderá ao menos se preparar. Mas não se cobre tanto,
não centre-se tanto e esqueça o resto. Você é a única que ainda não percebeu como
Rashne gosta de você. E eu sei que você também gosta dele. Está exposto em seus
olhos toda vez que o vê. Lembre-se que não é uma única rosa que forma um
jardim. Olhe o todo, não somente uma coisa.
Se não recebeu a caixa de minhas mãos, sinto muito, mas
minha hora tinha chegado. Não se culpe, caso isso tenha acontecido. Meus olhos
te observarão e acompanharão onde quer que esteja.
Te amo, Clareira de Outono.
Nunca se esqueça de o que você é.
Eurídice
O papel ficou
incólume mesmo após todas as minhas lágrimas – vovó devia ter previsto uma
reação assim e impermeabilizou a carta.
Aquela carta só fez a
saudade aumentar. Olhos de Floresta e Clareira de Outono eram velhos apelidos
meus, dados por ela quando eu tinha lá meus sete, oito anos. Ela dizia que eu
era uma Clareira de Outono porque sempre era tranquila e bela e coberta de
mistérios como uma. Não, não sei onde sou tranquila, mas tanto faz.
Independente disso,
precisei de dez minutos – ou mais – para me recompor e tomar coragem de abrir o
pergaminho. Toda a eletricidade que tinha me rodeado já havia se esvaído, e
enquanto eu me acalmava, Hadassa segurava minhas mãos.
O pergaminho estava
escrito com a própria caligrafia de Aine. Não tinha como não ser. Não toda
decorada de forma natural e simples.
Olá, jovem Fada chamada Stacy.
Não pense, por favor, que seu papel limitava-se à
Adriane, Kai e Portos. Isso é só o começo...
Preocupe-se com Portos e Kai, caso ele tenha
sobrevivido... Você sabe como o futuro é incerto. Eles apenas usaram Adriane
para tentar acabar com você e aquilo que você representa. Aquilo que
você é.
E faça um favor à si mesma: não se entregue à vingança.
Ela só te deixará vazia cada vez mais e mais, despertando o que tem de pior em
você. Vi minha irmã e muitas Fadas passarem por isso, e você não nasceu para
isso. Além disso, você já experimentou o que tem de pior em você, e tenho
certeza de que não gostou. Cuidado, ou voltará.
O que tem de pior em
mim... Com certeza, quando me entreguei à raiva e ao ódio enquanto lutava
contra Adriane.
Realmente, não quero
experimentar aquilo de novo. Eu me sentia como se não fosse eu. Como se eu não
fosse voltar a ser eu.
Logo abaixo dessas
palavras, havia oito versos, dispostos em duas quadras. E conforme eu lia-os,
visões se sobrepunham às palavras de forma confusa e que me dava dor de cabeça.
“E assim vou seguindo,
Seguindo,”
Eu caminhava. Caminhava subindo um morro, onde lá no topo
eu enxergava uma espécie de altar.
Olhei para trás, vendo pegadas de sangue. Pegadas de
sangue fresco, deixadas por mim. Sentia minhas costas sangrando, e minhas asas
também. E, apesar do medo que eu sentia que as sombras despertavam em mim, eu
segurava os frascos em minhas mãos firmemente.
Rumo à Maléfica Lua,
Rumo à Kolshö.
Parei diante do altar, e então, como que através de uma
cortina de água, vi Kolshö, tão grande, tão gigante, se assomando contra mim,
me fascinando e me dando medo.
Atrás do Tear do Destino,
À minha volta, estendeu-se a Teia, sem comando algum,
indo e vindo e se enroscando em mim e tentando alcançar Kolshö. E parecia ela
toda vir do altar, cuja superfície era toda sulcada por desenhos sinuosos e que
me lembravam motivos celtas.
E de onde
O Mar e o Fogo
Ergui os dois frascos, destampando-os e inclinando o
líquido vermelho que eu sabia que era sangue sobre dois sulcos separados por
alguns centímetros.
O sangue começou a percorrer os sulcos, e de repente o
que estava em minha mão direita estava rodeado por água que se movimentava como
se estivesse viva, e o da mão esquerda entrou em chamas. Onde ambos se encontravam,
saíam faíscas e gotas de água que logo evaporavam. E eles seguiram os sulcos,
indo até o centro.
Se amam.”
No meio, os sangues se misturaram e se ergueram em
labaredas de Água e Fogo que se entrelaçavam e bailavam como dois amantes que
há muito não se viam. Moviam-se de forma sinuosa e lenta e hipnotizante.
E uma explosão cegou-me.
O pergaminho caiu de
minhas mãos para a caixa sem que eu tentasse impedir.
As visões e os versos
martelavam em minha cabeça, cheios de significados que eu não conseguia
alcançar.
− Tudo bem, Stacy? –
Hadassa perguntou-me após um tempo de meu estado catatônico. Eu tinha até me
esquecido que ela ainda estava lá!
− Ahn... Tudo,
Hadassa. Só... Só... Estou confusa. – ela pediu para ler o pergaminho, e eu
deixei. Logo em seguida, ela me olhou e parecia tão confusa quanto eu.
− Isso não tem
sentido. Como Mar e Fogo podem se amar? E essa história de Tear do Destino e
seguir rumo a Kolshö... Me parece furada. – ela torceu o nariz, devolvendo-me o
papel. – E quem é Portos?
− Presumo que seja o
Arquidemônio com quem Adriane tinha um pacto. – respondi, azeda, fazendo uma
careta tão feia quanto a dela.
Eu concordava com ela
no ponto sobre Mar e Fogo – embora não tanto por causa da visão com a Banshee e
a Salamandra... –, mas quanto à Kolshö e Tear do Destino... Isso eu não falaria
muito. Afinal, estive em Kolshö e sei que a Teia de Seda é onde está o Destino.
E, se meu cérebro não
me engana, aquele altar é o mesmo de minha visão com a primeira Aranha Lunar
Azul.
Faria sentido aquele
altar ser chamado de Tear do Destino, já que a Teia – onde está gravado tudo –
foi tecida ali. E Kolshö, tão perto... Eu quase sentia ainda o chamado.
− Fico feliz que
esteja bem, Stacy. Mas preciso ir. – Hadassa disse após algum tempo e então me
abraçou. Antes que ela saísse, pedi para que chamasse Rashne e Eshe. Ela sorriu
e afirmou.
Enquanto eles não
chegavam, tornei a guardar a carta e o pergaminho na caixa e refiz o selo,
voltando a esfregar meu polegar sujo de sangue no selo de cera, os galhos
rodeando-a.
Quando Rashne e Eshe
chegaram, eu já tinha colocado a caixa debaixo do travesseiro. Eu só a
dividiria com Rashne. Meu namorado deitou na cama e me puxou para deitar do
lado dele, a cabeça apoiada em seu peito, como sempre. E Eshe sentou no chão,
que era como ele gostava.
− Como meus olhos
estão? – perguntei para ninguém em especial, abrindo bem os olhos. Eshe foi o
primeiro a se manifestar.
− Com pontos de azul-elétrico.
Pelo jeito, seu lado Vampiro acordou, Stacy... – ele parecia um tanto
apreensivo, mas normal.
− E como estavam
quando você me achou, Rashne? – ergui o rosto para olhá-lo. E ele suspirou.
− Totalmente azul-elétrico.
– ele parou, mas percebi que ele queria falar mais, por isso falei para ele
continuar. – Você em si não era você, Stacy... Você estava tão violenta, tão
sedenta de sangue... – Rashne beijou minha testa, me abraçando mais forte, como
que querendo afastar a imagem do que vira e substituí-la pela eu naquele
momento. Espero que ele nunca mais me veja daquele jeito.
Olhei então para
Eshe, que agora estava mais preocupado.
− Lindo. Despertou o
que tem de pior em você... – ele ironizou, antes de sentar na cama para poder
me ver mais de perto. – Ignore seu lado sanguinário. Pense apenas em ser... Em
viver... Em sobreviver. – parou por um instante antes de falar de novo. –
Provavelmente a barreira elétrica é fruto de emoções instáveis. Minha mãe me
falou de um Silfo que o avô era um Vampiro. Ele nunca deu mostras do lado Vampiro,
mas um dia um Demônio qualquer sequestrou a irmã caçula dele. O Demônio morreu
eletrocutado só do Silfo olhar pra ele. – ergueu os ombros e então saiu do
quarto ao ouvir um grito histérico de Thaíze chamando por ele.
Foi isso que Eshe
disse ao ler a pergunta em meus olhos que era como evitar aquilo e sobre a
eletricidade. E decidi que vai ser difícil, porque sempre tenho alguma tortura
ou algo assim bem sanguinário em mente para com aqueles que acho uns chatos...
Só espero manter minhas emoções em controle geral pra não sair dando choque por
aí – embora seja tentador num dia de compras no centro, não ia precisar ficar
empurrando o povo...
Suspirei, apertando
Rashne contra mim e fechando os olhos.
− É a Herança de
mamãe. A Herança que finalmente chegou... – murmurei.
Será que é por isso
que eu estava tão mal? Conflito entre o lado Fada e o lado Vampiro, à ponto de
me consumir por dentro?
E será que minhas
asas terem se destroçado sem motivo aparente também tem alguma relação?
Mas...
Não importa.
Importa é que essa é
a minha Herança e ela chegou, não importa quando.
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