Dimensões

18 janeiro 2013

Teorias de Conspiração - Capítulo 36: Herança

Sim, finalmente... Podem xingar até a minha décima geração pela demora, eu deixo... u.u


Não tinha ideia do que estava acontecendo comigo.
Depois que matei Adriane com minhas próprias mãos, que a soquei até ficar irreconhecível e que me encontraram, Rashne me trouxe para a chácara onde eu acordara.
Mas eu não me sentia bem.
Meu estômago estava cheio de borboletas idiotas, e teias negras e brilhantes faziam questão de girar diante de meus olhos. Uma dor de cabeça desgraçada me atacava de todos os lados e meus braços doíam miseravelmente – principalmente as mãos, feridas pelos socos e pela maldita lei de Newton que diz que toda ação gera uma reação. E minhas asas. Doíam tanto que tive a impressão de que tinha machucado-as. Acho que estava tão mal por causa do sangue que bebera... Mas vai saber...
E quando chegamos, Rashne me levou para o quarto onde eu tinha acordado. Me fez sentar na cama – e eu não sentei, despenquei, louca pra me deitar e descansar – e me buscou um espelho. E me fez olhar para ele.

E me assustei com o que vi.
Meus olhos tinham vestígios de azul-elétrico. Minha boca e meu queixo estavam cheios de sangue seco: sangue do meu namorado e que eu sugara. Que eu gostara. Mas agora aquilo fazia eu me sentir o ser mais terrível do mundo. Mamãe chegou a se sentir assim por beber do meu sangue?
Meu vestido, presente das Aranhas Lunares e feito com seus cabelos, estava todo rasgado e sujo. Completamente sem recuperação.
Não sei como, mas eu estava cheia de arranhões e ferimentos e hematomas. E eu fora atingida poucas vezes. Estava quase como na visão que eu dizia “Tudo culpa sua”. Os arranhões em meus braços e em meu rosto eram como se alguém tivesse tentado me afastar, se defender da minha fúria. Adriane resistira? Eu não me lembrava. Só lembrava da sensação de seu rosto contra meus punhos, repetidas vezes, e do quanto eu gostara daquela sensação. Não senti dor ou o que quer que fosse por ela me golpear, tentando salvar a própria vida.
Mas o que me fez entrar em prantos e abaixar a cabeça até esconder o rosto na saia do vestido foi ver minhas asas.
Estavam destroçadas. Em farrapos. Feridas. Cheias de sangue coagulado.
Como?
Eu cuidei para que ninguém as tocasse, porque Galagöa e as demais Aranhas tinham refeito-as. Eram um símbolo de que elas tinham me salvado.
E, ainda assim, eu acabara de vê-las completamente destroçadas, desfeitas. Como que atestando minha desgraça.
Não ergui o rosto quando senti Rashne me puxar pelos ombros e me abraçar. Apenas o abracei com mais força, escondendo mais uma vez meu rosto em seu peito. E continuei a chorar. Porque eu só tinha vontade disso.

Depois de algum tempo chorando, as lágrimas secaram, não importava o quanto eu queria chorar. E então, Rashne me ajudou a levantar e me levou até o banheiro conjunto ao quarto. Não era grande coisa, mas o suficiente para o que eu precisava.
Não me incomodou nem tive vergonha ou qualquer coisa do tipo quando ele me ajudou a me despir e a tomar um banho, sentada num banco de madeira que estava ali. Aliás, foi ele quem lavou meu cabelo e o desembaraçou.
Não sei explicar direito por que... Talvez uma longa conversa que tive com Galagöa no dia que ele chegou para me buscar em Kolshö sobre os diferentes tipos de laços que unem as pessoas. E talvez por me recordar da menina chamada Esperança... – Ou talvez por saber que ele criara Alessa e que ela parecia não ter trauma algum por isso...
Minha mestra Aranha Lunar disse que quando nos viu interagindo, viu mais do que duas pessoas apaixonadas. Viu duas pessoas que, além de se amarem, possuem um senso de companheirismo tão forte, que independente da distância, sempre estarão ali quando o outro precisar, sempre conectados, não apenas pelo fio de Teia, mas também em pensamento e espírito. Viu duas pessoas que sempre estarão ali quando a outra precisar. Viu duas pessoas que não se amam apenas porque gostam da aparência ou da personalidade uma da outra, mas porque algo que foi decidido muito antes de nascermos quis que fosse assim. E nos uniu com algo profundo e forte.
Naquele momento, que ele me ajudou de forma tão íntima, eu soube disso. Soube, naquele instante, que nunca iria querer outro homem – ou o que quer que fosse – na minha vida. Era ele e apenas ele enquanto eu vivesse, enquanto meu coração batesse. A menina chamada Esperança pareceu ficar mais nítida em minha mente...

Em momento algum ele tentou algo. Apenas me ajudou. E devo admitir que eu precisava de ajuda. Eu me sentia em pedaços. Martelada seguidas vezes, até sobrar apenas cacos que eu devia juntar. E que eu não conseguiria juntar sem ajuda. Eu estava...
Estava...
Não havia palavras que descrevessem o quão decepcionada comigo mesma eu estava por me entregar à raiva e ao ódio, depois de todas as vezes que Rashne me disse que sentimentos ruins não combinam com Fadas. O quão triste estava por minhas asas. O quanto doía saber que não mais veria vovó e seu sorriso ou ouviria seus conselhos...
Talvez, naquele momento, Despertador tivesse me ajudado. Minha Mantícora, minha eterna companheira, que me entendia melhor que ninguém; mas eu não precisava que me entendessem. Apenas que me apoiassem... Que me ajudassem a recolher os pedaços.
Infelizmente, ela não seria o suficiente para aplacar toda a dor que me consumia de dentro pra fora e de fora pra dentro, física e mentalmente, até o ponto em que se encontrariam e só haveria dor dentro de mim.
Eu já teria me consumido em dor se não fosse por Rashne ali, do meu lado, com sua aura de paz pedindo permissão para entrar e expulsar todo o mal que preenchia meu ser; expulsar toda a dor que queria se tornar soberana onde só devia haver paz e tranquilidade e felicidade e toda a sorte de sentimentos bons. Se não fosse ele ali, me apoiando e me fazendo lembrar o sentimento que nos unia.
Eu notei que aquele laço que nos unia, de algum jeito, era muito mais forte que amor, que ia muito mais além. Porque não podia ser apenas amor. Tinha de ser algo sagrado e sublime a ponto de me fazer sentir tão completa apenas com a sua presença. Algo tão sagrado e tão sublime – hum, é, preciso renovar meu vocabulário – que me fazia ter certeza que nunca fiz a escolha errada ao empurrar Sammuel para Hadassa, e que não havia outros motivos para que eu tivesse invadido justamente o sonho de Rashne e ter uma visão com ele, que não fosse para ter certeza de que éramos feitos um para o outro. Fora a menina chamada Esperança, cujos traços obviamente eram meus e dele, cuja visão me veio antes mesmo de meus poderes despertarem – lembro-me muito dela desde que as Aranhas Lunares me salvaram. Quase como que uma repreensão por quase ter desistido dela.
Era um laço sagrado que nos unia, sem dúvida alguma.
Naquele instante, em que todas essas considerações passaram por minha mente, quando ele estava enxaguando meu cabelo com cuidado para não cair em meus olhos – e para não se molhar também –, pude ver o fio da Teia que ligava o meu coração e o de Rashne. E ele também viu. Surpreendeu-se por um momento, mas logo ergueu o olhar da Teia para meus olhos.
E sorrimos ao mesmo tempo.
Meu coração martelava em meus ouvidos, enquanto eu colocava minha mão ensopada no peito esquerdo dele. E o quanto nossa união era profunda ficou ainda mais evidente.
Senti que seu coração estava tão acelerado como o meu, e nossos corações batiam no mesmo ritmo, como tantas vezes eu percebera, mas não ligara muito. Naquele instante, me parecia a melhor coisa do mundo. Nossas respirações estavam no mesmo ritmo. E quase como uma aparição, o colar dele se completou por um instante, e tenho certeza que o meu também se completou.
Um círculo perfeito de safira, com nossos nomes gravados no dourado. E a safira virou um rubi que começou a pulsar no mesmo ritmo de nossos corações.
Ergui meu olhar para ele de novo, sentindo a mão dele cobrir a minha, a outra acariciando meu rosto, e senti que apenas a dor da ausência de vovó persistia.
E eu não fazia questão que ela fosse embora. Com ela, eu teria de me acostumar. Porque a dor da perda de alguém é uma ferida que nunca cicatriza totalmente. Forma-se apenas uma casca, que qualquer toque pode tirar e a ferida volta a sangrar.
Mas eu tinha certeza que, com Rashne do meu lado, eu conseguiria mantê-la fechada. Ou, se ela se abrisse, ele estaria ali para me ajudar a tampá-la de novo.

Rashne me auxiliou enquanto eu me vestia, e depois deitamos na cama, eu apoiando a cabeça no peito dele. Ele começou a cantarolar uma música qualquer – meio desafinado, mas eu não ligava – enquanto deslizava os dedos pelo meu cabelo, sua aura de paz sempre presente.
E adormeci num sono reparador. Um sono que minha mente ia usar para consertar tudo que fora quebrado. Um sono que eu necessitava.

− Tire as mãos dele. – surpreendi-me quando meu sonho transformou-se numa visão. Ainda mais uma tão conturbada e confusa.
Eu falava com alguém que eu não podia ver. E eu só tinha certeza de que era eu porque, bem, porque eu tinha asas grandes e azuladas. Mas só. Eu tinha... Curvas, coisa que nunca pensei ver em mim. E o meu cabelo estava ondulado, indo até os ombros e caindo de um jeito bagunçado e estranhamente elegante sobre meu rosto. Nada de juba meio black-power.
Mas havia algo em minha face... Uma dor profunda, mas disfarçada.
A visão então me levou para vivenciá-la na minha própria pele daqui a alguns anos. E eu senti toda a dor que meu eu do futuro sentia. Toda a dor que me dilacerava por ver quem quer que fosse ameaçando a vida de Rashne. E não havia palavras que a descrevessem. Havia apenas... Dor. Muita dor.
Será que fora isso que papai sentira ao ver mamãe definhar lentamente?
Aquilo era demais para mim. Eu acabara de perder vovó, e o Mundo dos Mortos ou quem quer que fosse já queria me dar uma visão onde eu perdia meu namorado. Aquele a quem eu não suportaria mais viver sem. Obrigada pelo senso de humor negro.
Quem mantinha Rashne em seu sono mágico riu de forma tenebrosa. Uma forma que me lembrou o Elemental da visão com o tio da Hadassa.
− Vai sonhando, Fadinha... – porque todo mundo tem de me chamar de Fadinha? – Eu jamais poderia permitir que a Primeira, O Poder para chegar, continuasse feliz após tudo que fez... Você vai pagar por nos tirar nosso mestre e por acordar o outro.
Ele ergueu a mão, uma faca se materializando. E ela desceu, fatal, em direção ao pescoço de Rashne.
Fechei os olhos com força, esperando ouvir o som de carne se rasgando, de sangue espirrando e sentir aquele cheiro tão enjoativo e, ao mesmo tempo, tão tentador. Como eu sabia que era tentador? Não sei, eu só sabia.
E ouvi realmente esses sons. Com o rosto banhado em lágrimas, abri os olhos, preparada para estraçalhar quem acabara de me tirar aquele que eu mais amava.
Mas entrei em parafuso quando vi que o morto era quem ameaçara matar Rashne.
Atrás do corpo do Elemental, estava Huriye, ensanguentada, uma flecha ainda mais ensanguentada na mão, material, e muito mais bela do que eu me recordava. Não havia uma sombra ao seu redor. Pelo contrário. Ela parecia irradiar luz por cada poro do corpo, um sorriso tão radiante adornando seus lábios que me ofuscou o olhar. E vislumbrei seus olhos. Nada mais de azul-doloroso ou de lágrimas vermelhas. Apenas um azul tão límpido e puro que nem os olhos de Rashne se igualavam. Como se ela fosse superior. Seria assim um Ahura?
− Lembre-se sempre, Parikhan. Eu estarei sempre ali se precisar de ajuda. Meu pagamento por me livrar da escravidão e por ter insistido até que eu acendesse de novo. E por não deixar que Rashne caía.
Um rapaz correu em sua direção e a abraçou, e seu sorriso era tão radiante quanto o dela. E reconheci o rapaz da visão da Banshee e do parto. Era a mesma Salamandra. O que o monstro de Água se formou à suas costas e que cantava no mesmo ritmo da Banshee e que me passava calma.
Ambos trocaram um olhar apaixonado, e ele manipulou Água para que fizesse uma pista de gelo pela qual deslizaram.
E eu acolhi Rashne em meus braços, murmurando o contra-feitiço para acordá-lo, sentindo meu coração tão preenchido pela felicidade por ele estar vivo que achei que iria explodir.

Acordei lentamente, embora os berros de raiva e surpresa ao meu redor insistissem para que eu acordasse mais rápido.
O que raios aconteceu pra todo mundo estar tão estressado?
Olhei ao meu redor, sentindo falta do calor do corpo de Rashne, sentando na cama e coçando a cabeça. Devon, Alessa, Eshe, Sammuel, Thaíze e mais alguns que não reconheci estavam reunidos no quarto, Rashne à frente deles, gritando algo como “Ela precisa descansar!” enquanto os demais tentavam se aproximar.
Até que, me vendo acordada, Thaíze e Alessa tentaram furar o bloqueio que Rashne formara.
O QUE CARGAS D’ÁGUA ACONTECEU?!
As duas foram lançadas para trás, com vários fios de cabelo ficando espetados, enquanto uma parede de raios azuis ficava evidente. Uma barreira de Eletricidade.
Olharam imediatamente para Rashne, que parecia tão surpreso quanto eles enquanto os raios se mexiam incansavelmente, formando desenhos e desenhos, me hipnotizando.
E então, todos olharam para mim. Eu não reparei isso, exatamente. Eu só tinha olhos para a barreira elétrica. Mas algo como sentir minhas costas queimando ou algo assim me fez voltar a realidade.
− Que foi?
Todos aqueles olhares estavam me deixando com medo... Eu fiz alguma besteira realmente grande e não tô sabendo?
− Stacy... É você quem está mantendo essa barreira elétrica? – Eshe por fim falou o que devia estar se passando na cabeça de todos.
Uma palavra: ABSURDO!
Eu até sei fazer barreiras, mas manipular a eletricidade... Isso mamãe não me ensinou! EU ia acabar levando um choque se tentasse!
Ergui uma sobrancelha antes de responder.
− Eu nunca aprendi a manipular eletricidade. Como faria uma barreira desse tipo sem saber manipulá-la? – Eshe suspirou, balançando a mão como quem diz “Tá, tanto faz.” Girei os olhos, cruzando os braços e as pernas de um jeito infantil. – Mas porque cargas d’água vocês estavam berrando tanto? Caramba, eu tava num sonho legal... – a parte do sonho eu murmurei, olhando para Rashne e notando que ele estava sem camisa, com sua bela tatuagem exposta – aquelas asas que eu não me cansava de olhar e que, às vezes eu tinha a impressão de que estavam aumentando e passando do branco para o bronze, embora parecessem voltar ao estado anterior, algo meio estranho, sabe... Será que o Devon entrou no quarto atrás de mim e deu piti de novo porque viu a gente dormindo junto, e de novo o Rashne estando sem camisa? Putz, achei que ele já tivesse ultrapassado a fase irmão ciumento.
Se vovó o visse naquele momento...
E então, totalmente desperta, a realidade me atingiu e a dor psicológica voltou.
Vovó nunca mais nos veria. Eu nunca mais a veria.
Sem mais broncas. Sem mais risos. Sem mais piadinhas. Sem mais conselhos.
Não notei que lágrimas rolavam por meu rosto e que Rashne tentava me abraçar e então, provavelmente, perguntar o que acontecera. Não notei que a barreira elétrica tinha se intensificado. Não notei que eu mesma não permitia que Rashne me tocasse por causa... Por causa... Aquelas linhas azuis que me rodeavam a pele e apareciam de vez em quando como raios e avançavam no meu namorado quando ele estava muito perto era eletricidade?
Eu virara uma Pikachu da vida e agora estava soltando raios sem querer?
Fala sério.
Mas a dor por saber que vovó estava morta não amenizara. Também não diminuíra, mas continuara ali, forte e deprimente.

Não sei por quanto tempo fiquei ali, alheia ao que acontecia ao meu redor, apenas sentindo os olhares dos presentes no quarto e remoendo a dor pela perda de vovó.
 “Acordei” apenas quando senti um toque em meu braço, vagamente familiar. Meus olhos se focaram no rosto à minha frente, e reconheci Hadassa, ajoelhada na cama, os brincos de folha pendendo em suas orelhas, respondendo minha imediata pergunta de como me alcançara e não se ferira.
Ela me sorria, e conforme eu afastava as lágrimas, pude perceber uma caixa longa e fina em feitio de baú em cima de suas pernas. Era intrincadamente decorada com relevos, com galhos reais se estendendo por toda a superfície e selando-a, todas as pontas se encontrando num selo feito de cera e cujo símbolo eu reconheci como um feitiço de selamento e proteção extremamente forte: só podia ser aberto com uma gota de sangue daquele que realizara o feitiço ou de quem ele denominara que poderia abri-lo.
− Como está se sentindo, amiga minha? – Hadassa perguntou, segurando minhas mãos entre as suas e aquecendo-as. Só então eu percebi como estava fria. Não com frio. Mas fria, como se minha temperatura estivesse vários graus abaixo do que deveria.
− Despedaçada. Destroçada. Com tanta dor provocada pela saudade que me sinto... Me sinto... Não sei. Apenas... Me sinto. – murmurei, nem eu sabendo direito como expressar meus sentimentos. E então notei que estávamos apenas nós duas no quarto. – Onde estão os outros?
− Pedi que nos deixassem sozinha. Você está muito instável. Acho que Rashne ou Eshe podem explicar assim que essa eletricidade toda se dissipar... – ela acariciou por um momento a superfície da caixa, suspirou, e então me estendeu o objeto. – Sua vó deixou comigo durante o casamento e me fez jurar que lhe entregaria depois da virada do ano se ela não pudesse fazê-lo...
Olhei para a caixa por um instante, abismada demais. E então, mordi meu polegar e esfreguei o sangue no selo. Vovó sabia que provavelmente não poderia me entregá-la, por isso meu sangue deveria abri-la.
Os galhos se retraíram até o outro lado da caixa, onde formou uma espécie de bolota e ficou ali, pulsando, como que com vida.
Levantei a tampa. E senti o mundo girar e concentrar-se naquele momento quando vi uma carta e um pergaminho. O mesmo pergaminho que Aine deixara na cômoda de meu quarto na primeira visão que Anoen me dera.
Abri primeiro a carta. E senti as lágrimas, contra as quais eu tanto lutara, voltando.

Stacy, minha querida Stacy...
Você com certeza já passou por todas as cerimônias que devia passar. Com certeza já descobriu quem você é. Já teve seu coração ferido e cicatrizado. Já demonstrou poder. Já odiou. Já amou. Já matou. Porque foi assim que Aine disse que seria.
Desde o início, eu soube quem você era. Soube de seus dons. Por isso sempre busquei te guiar, minha Olhos de Folha. Olhos da Floresta.
Admito que quando você fez quinze anos e ainda não tinha despertado seus poderes, comecei a me preocupar... Mas então, quando descobri sobre sua mãe, fiquei incerta de no que acreditar.
Mas, afinal, você tem crescido tanto... Tem se esforçado e evoluído, e você não é mais aquela criança que eu carregava no colo. Também não é mais aquela adolescente cheia de energia e que ri de tudo.
Já é uma mulher. Uma Fada adulta, forte e que vê e sente as cobranças sobre si.
E, como poucos, você deve e tem como saber o que te espera. E, se não compreender, poderá ao menos se preparar. Mas não se cobre tanto, não centre-se tanto e esqueça o resto. Você é a única que ainda não percebeu como Rashne gosta de você. E eu sei que você também gosta dele. Está exposto em seus olhos toda vez que o vê. Lembre-se que não é uma única rosa que forma um jardim. Olhe o todo, não somente uma coisa.
Se não recebeu a caixa de minhas mãos, sinto muito, mas minha hora tinha chegado. Não se culpe, caso isso tenha acontecido. Meus olhos te observarão e acompanharão onde quer que esteja.

Te amo, Clareira de Outono.
Nunca se esqueça de o que você é.
Eurídice

O papel ficou incólume mesmo após todas as minhas lágrimas – vovó devia ter previsto uma reação assim e impermeabilizou a carta.
Aquela carta só fez a saudade aumentar. Olhos de Floresta e Clareira de Outono eram velhos apelidos meus, dados por ela quando eu tinha lá meus sete, oito anos. Ela dizia que eu era uma Clareira de Outono porque sempre era tranquila e bela e coberta de mistérios como uma. Não, não sei onde sou tranquila, mas tanto faz.
Independente disso, precisei de dez minutos – ou mais – para me recompor e tomar coragem de abrir o pergaminho. Toda a eletricidade que tinha me rodeado já havia se esvaído, e enquanto eu me acalmava, Hadassa segurava minhas mãos.
O pergaminho estava escrito com a própria caligrafia de Aine. Não tinha como não ser. Não toda decorada de forma natural e simples.

Olá, jovem Fada chamada Stacy.
Não pense, por favor, que seu papel limitava-se à Adriane, Kai e Portos. Isso é só o começo...
Preocupe-se com Portos e Kai, caso ele tenha sobrevivido... Você sabe como o futuro é incerto. Eles apenas usaram Adriane para tentar acabar com você e aquilo que você representa. Aquilo que você é.
E faça um favor à si mesma: não se entregue à vingança. Ela só te deixará vazia cada vez mais e mais, despertando o que tem de pior em você. Vi minha irmã e muitas Fadas passarem por isso, e você não nasceu para isso. Além disso, você já experimentou o que tem de pior em você, e tenho certeza de que não gostou. Cuidado, ou voltará.

O que tem de pior em mim... Com certeza, quando me entreguei à raiva e ao ódio enquanto lutava contra Adriane.
Realmente, não quero experimentar aquilo de novo. Eu me sentia como se não fosse eu. Como se eu não fosse voltar a ser eu.
Logo abaixo dessas palavras, havia oito versos, dispostos em duas quadras. E conforme eu lia-os, visões se sobrepunham às palavras de forma confusa e que me dava dor de cabeça.

“E assim vou seguindo,
Seguindo,”
Eu caminhava. Caminhava subindo um morro, onde lá no topo eu enxergava uma espécie de altar.
Olhei para trás, vendo pegadas de sangue. Pegadas de sangue fresco, deixadas por mim. Sentia minhas costas sangrando, e minhas asas também. E, apesar do medo que eu sentia que as sombras despertavam em mim, eu segurava os frascos em minhas mãos firmemente.

Rumo à Maléfica Lua,
Rumo à Kolshö.
Parei diante do altar, e então, como que através de uma cortina de água, vi Kolshö, tão grande, tão gigante, se assomando contra mim, me fascinando e me dando medo.

Atrás do Tear do Destino,
À minha volta, estendeu-se a Teia, sem comando algum, indo e vindo e se enroscando em mim e tentando alcançar Kolshö. E parecia ela toda vir do altar, cuja superfície era toda sulcada por desenhos sinuosos e que me lembravam motivos celtas.

E de onde
O Mar e o Fogo
Ergui os dois frascos, destampando-os e inclinando o líquido vermelho que eu sabia que era sangue sobre dois sulcos separados por alguns centímetros.
O sangue começou a percorrer os sulcos, e de repente o que estava em minha mão direita estava rodeado por água que se movimentava como se estivesse viva, e o da mão esquerda entrou em chamas. Onde ambos se encontravam, saíam faíscas e gotas de água que logo evaporavam. E eles seguiram os sulcos, indo até o centro.

Se amam.”
No meio, os sangues se misturaram e se ergueram em labaredas de Água e Fogo que se entrelaçavam e bailavam como dois amantes que há muito não se viam. Moviam-se de forma sinuosa e lenta e hipnotizante.
E uma explosão cegou-me.

O pergaminho caiu de minhas mãos para a caixa sem que eu tentasse impedir.
As visões e os versos martelavam em minha cabeça, cheios de significados que eu não conseguia alcançar.
− Tudo bem, Stacy? – Hadassa perguntou-me após um tempo de meu estado catatônico. Eu tinha até me esquecido que ela ainda estava lá!
− Ahn... Tudo, Hadassa. Só... Só... Estou confusa. – ela pediu para ler o pergaminho, e eu deixei. Logo em seguida, ela me olhou e parecia tão confusa quanto eu.
− Isso não tem sentido. Como Mar e Fogo podem se amar? E essa história de Tear do Destino e seguir rumo a Kolshö... Me parece furada. – ela torceu o nariz, devolvendo-me o papel. – E quem é Portos?
− Presumo que seja o Arquidemônio com quem Adriane tinha um pacto. – respondi, azeda, fazendo uma careta tão feia quanto a dela.
Eu concordava com ela no ponto sobre Mar e Fogo – embora não tanto por causa da visão com a Banshee e a Salamandra... –, mas quanto à Kolshö e Tear do Destino... Isso eu não falaria muito. Afinal, estive em Kolshö e sei que a Teia de Seda é onde está o Destino.
E, se meu cérebro não me engana, aquele altar é o mesmo de minha visão com a primeira Aranha Lunar Azul.
Faria sentido aquele altar ser chamado de Tear do Destino, já que a Teia – onde está gravado tudo – foi tecida ali. E Kolshö, tão perto... Eu quase sentia ainda o chamado.
− Fico feliz que esteja bem, Stacy. Mas preciso ir. – Hadassa disse após algum tempo e então me abraçou. Antes que ela saísse, pedi para que chamasse Rashne e Eshe. Ela sorriu e afirmou.
Enquanto eles não chegavam, tornei a guardar a carta e o pergaminho na caixa e refiz o selo, voltando a esfregar meu polegar sujo de sangue no selo de cera, os galhos rodeando-a.
Quando Rashne e Eshe chegaram, eu já tinha colocado a caixa debaixo do travesseiro. Eu só a dividiria com Rashne. Meu namorado deitou na cama e me puxou para deitar do lado dele, a cabeça apoiada em seu peito, como sempre. E Eshe sentou no chão, que era como ele gostava.
− Como meus olhos estão? – perguntei para ninguém em especial, abrindo bem os olhos. Eshe foi o primeiro a se manifestar.
− Com pontos de azul-elétrico. Pelo jeito, seu lado Vampiro acordou, Stacy... – ele parecia um tanto apreensivo, mas normal.
− E como estavam quando você me achou, Rashne? – ergui o rosto para olhá-lo. E ele suspirou.
− Totalmente azul-elétrico. – ele parou, mas percebi que ele queria falar mais, por isso falei para ele continuar. – Você em si não era você, Stacy... Você estava tão violenta, tão sedenta de sangue... – Rashne beijou minha testa, me abraçando mais forte, como que querendo afastar a imagem do que vira e substituí-la pela eu naquele momento. Espero que ele nunca mais me veja daquele jeito.
Olhei então para Eshe, que agora estava mais preocupado.
− Lindo. Despertou o que tem de pior em você... – ele ironizou, antes de sentar na cama para poder me ver mais de perto. – Ignore seu lado sanguinário. Pense apenas em ser... Em viver... Em sobreviver. – parou por um instante antes de falar de novo. – Provavelmente a barreira elétrica é fruto de emoções instáveis. Minha mãe me falou de um Silfo que o avô era um Vampiro. Ele nunca deu mostras do lado Vampiro, mas um dia um Demônio qualquer sequestrou a irmã caçula dele. O Demônio morreu eletrocutado só do Silfo olhar pra ele. – ergueu os ombros e então saiu do quarto ao ouvir um grito histérico de Thaíze chamando por ele.
Foi isso que Eshe disse ao ler a pergunta em meus olhos que era como evitar aquilo e sobre a eletricidade. E decidi que vai ser difícil, porque sempre tenho alguma tortura ou algo assim bem sanguinário em mente para com aqueles que acho uns chatos... Só espero manter minhas emoções em controle geral pra não sair dando choque por aí – embora seja tentador num dia de compras no centro, não ia precisar ficar empurrando o povo...
Suspirei, apertando Rashne contra mim e fechando os olhos.
− É a Herança de mamãe. A Herança que finalmente chegou... – murmurei.
Será que é por isso que eu estava tão mal? Conflito entre o lado Fada e o lado Vampiro, à ponto de me consumir por dentro?
E será que minhas asas terem se destroçado sem motivo aparente também tem alguma relação?
Mas...
Não importa.
Importa é que essa é a minha Herança e ela chegou, não importa quando.


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Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬