Alanna
analisou com cuidado as páginas e fotos que o informante, Abel, lhe entregara
quando chegaram a casa dele em Puerto Vallarta, já praticamente fora da cidade,
local onde ela ficaria hospedada. A mãe dele era uma mexicana comum,
funcionária pública e negociadora da Stella Bianca com o governo mexicano,
enquanto o pai pertencia a um dos povos nativos do país — ele
não contara qual. E fora entre esse povo que Abel aprendera suas habilidades de
Bruxo Branco — chamados também de “Magos” —, enquanto descobria como
ajudar a Ordem com a mãe. Não era um integrante oficial, mas era um bom
informante e capaz de manter os seres do Sétimo Mundo da região calmos sem
muitos problemas no período entre reuniões.
Uma
das fotos mostrava o que parecia a entrada de uma construção, decorada com
esculturas-relevos ao estilo asteca de jaguares nas laterais e o que parecia
uma noite estrelada acima. A entrada estava fechada com uma pedra que carregava
uma representação que ela reconhecia como sendo de Tezcatlipoca, um dos
principais espíritos divinizados pelos astecas. Ela não o conhecia
pessoalmente; pelo que membros antigos da Stella Bianca falavam, ele não era um
grande fã das reuniões e aparecia cerca de uma vez a cada cinquenta anos,
apesar de ser um dos que mais contribuíam para manter o segredo dos Sete Mundos
oculto dos humanos comuns. As representações estavam desgastadas pelo tempo e
cobertas com musgos e trepadeiras em alguns pontos, mas eram reconhecíveis.
— Que lugar é esse, Abel? Não é uma ruína conhecida pelos
humanos... Pelo menos não ainda... — perguntou em espanhol enquanto estendia a foto por cima da
mesa da cozinha, na direção do Bruxo. Abel levou a frigideira, onde terminava
de preparar uma quesadilla recheada
com queijo, com ele, quando se virou para pegar a imagem.
— Ah, sim. A Stella Bianca encontrou esse lugar não muito
depois da queda dos Astecas, ainda em 1521, mas estimam que data do início do
império Asteca, uns duzentos anos antes. O lugar continua do jeito que foi
encontrado. — o mexicano devolveu a foto para a brasileira e virou-se
para o fogão de novo. — Um Shaman, na época, disse que sentiu alguns mortos lá
dentro, e um Feiticeiro detectou encantos e feitiços típicos da região para
trancar os espíritos dos mortos num lugar por tempo indefinido, desde que o
lugar não seja, bem, profanado. A Ordem achou prudente não mexer e tem mantido
o lugar oculto desde então. Afinal, deve ter um motivo esses encantos e
feitiços.
Alanna
ergueu as sobrancelhas com a explicação, voltando a encarar a foto.
Pela
decoração da entrada, diria que se tratava, talvez, do túmulo de algum
sacerdote de Tezcatlipoca ou de Guerreiros Jaguares. Considerando que os
Astecas tinham o costume de cremar ou de enterrar seus mortos debaixo ou ao
lado das casas, quem quer que estivesse enterrado e selado ali devia ser ou
muito importante, ou muito temido. Talvez ambos. Nesse caso, talvez a decoração
fizesse parte do feitiço: Tezcatlipoca estaria vigiando o lugar. Pelo menos na
crença de quem o construíra, setecentos anos antes.
— O que isso tem com os tais Sem-Pele? —
perguntou quando Abel colocou a última quesadilla
num refratário de vidro.
O
Bruxo, antes de responder, colocou o refratário com as quesadillas no meio da mesa e passou um prato para Allana.
— Então. Como deve ter lido no relatório, tentei os
procedimentos padrões para me livrar de mortos-vivos: exorcismos para demônios
e espíritos, facas espirituais para o caso de um espírito forçado, um contra-feitiço
para dissipar o poder de um necromante... Nada funcionou, e quase morri em
algumas dessas. Então, passei a segui-los, na medida do possível. — Abel
respondeu enquanto comia e olhava feio para a lentidão com a qual Alanna mastigava,
mais preocupada com os tais “Sem-Pele” que com colocar algo no estômago.
— Nada funcionou? — o
relatório antes de entrar no avião mencionava apenas os exorcismos para
demônios. Abel ainda não devia ter tido tempo de mandar uma versão atualizada,
que incluísse a tal ruína e as outras tentativas.
— Nada. Mas posso afirmar que não são os zumbis de Hollywood
que resolveram aparecer depois de tanto tempo: quando mordem alguém, a pessoa
não se transforma, e cá entre nós, tá difícil pra manter esses ataques longe da
mídia. E também são inteligentes, como se fosse um espírito ou um demônio
dentro, mas nenhuma outra característica bate com esses casos. Então, é alguma
outra coisa. — o homem terminou a quesadilla
e partiu para outra. — Então. Todos que consegui localizar e seguir passaram pela
ruína da foto. Pararam e tentaram entrar, mas pelo jeito os feitiços são mais
fortes do que parecem, porque não conseguiram. Depois disso, continuaram penetrando
nas florestas que cobrem a Sierra Madre. Não me arrisquei a segui-los a partir
daí, por conta do risco de emboscada. Eles são
muito inteligentes.
Alanna
fez uma careta enquanto mastigava e analisava a foto. Bocejou logo depois de
engolir. Mesmo dormindo durante o voo, estava exausta, e estar fora de seu
fuso-horário não ajudava. Ao menos não faltava muito para anoitecer.
Voltou
a encarar a ruína que parecia ser em honra à Tezcatlipoca.
— Abel...
— Hm? — o Bruxo resmungou, a boca cheia.
— Vou ligar hoje pra Annanda e pedir permissão pra entrar
nesse lugar. Se ela der, vamos amanhã de manhã. — Por um momento, a Shaman
jurou que Abel cuspiria a quesadilla
sendo mastigada. — O quê?
— Tem certeza, Alanna? Esses feitiços todos lá, mais os
mortos lá dentro e esses mortos-vivos tentando entrar... Não me parece boa
ideia... — encarando-a com os olhos castanhos ligeiramente puxados,
Abel parecia procurar colocar, cuidadosamente, uma expressão limpa no rosto
moreno. Mas a Shaman não perdeu o leve tremor na mão segurando uma quesadilla.
Alanna
suspirou, batendo os farelos da massa da quesadilla
das mãos antes de cruzar os braços em cima da mesa.
— Não temos onde começar, Abel. Você disse antes, no
relatório, que não existe um padrão para quais mortos voltam assim. Não sabemos
o que provoca isso, o que eles exatamente são e nem para onde vão. A única pista
é essa ruína asteca. — bateu com o indicador direito na foto do lugar. — Meu
palpite é que tem algo lá que o responsável por esses “Sem-Pele” quer. E ele ou
ela vai conseguir cedo ou tarde. Prefiro chegar antes.
Abel
suspirou, terminando a quesadilla com
um olhar desanimado.
— Você tem razão. Claro que tem. Mas ainda acho isso muito
arriscado para apenas dois. — o mexicano cruzou os braços em cima da mesa como Alanna, e
apoiou o queixo neles. — Lembre que sou um Bruxo Branco, não posso fazer feitiços e
encantos que machuquem qualquer coisa, e que você é uma Shaman cadeirante e que
não temos como saber se os espíritos dentro dessa ruína vão ser confiáveis para
você deixá-los entrar se for necessário.
Alanna
deixou um sorriso esticar seu rosto. Entendia a preocupação de Abel sem dificuldade.
— Pode deixar. Vou tomar cuidado redobrado em deixar
espíritos estranhos entrarem.
Ele
apenas sorriu de volta.
Abel
guiava com cuidado o jipe, subindo a Sierra Madre, através da estrada de terra aparentemente
não muito usada, situação exposta pelas marcas de pneus rasas e raras.
— A estrada passa na frente do lugar? —
Alanna perguntou depois de quase uma hora que a umidade da floresta os
engolira.
— Não. Temos de sair da estrada a pé e caminhar por uns dez
minutos numa trilha secundária. Como a cadeira de rodas não passa, vou pedir
pra um Elemental do ar te carregar.
Abel
respondeu, com toda a calma que fugira de Alanna ao ouvir a parte “ser carregada
por um Elemental”. Ela não gostava muito de ser carregada por alguém além de
seu pai, quanto mais um ser que ela seria incapaz de ver. Não podia ser um
Elemental da terra não? Ao menos seria visível.
Alanna
viu Abel terminar de realizar a oferenda para um Elemental do ar, pouco antes
de sentir um par de braços longos, carregados de uma sensação de ausência, como
se não estivessem ali, envolverem sua cintura e puxá-la para fora do carro. O
Elemental então passou a segurá-la contra a lateral do corpo, o tronco na
horizontal em relação ao chão; ela se sentiu uma criança de cinco anos que
aprontou fora de casa e está sendo carregada pelos pais para longe.
O
mexicano se levantou, passando um colar de couro pela cabeça, com um vidro pequeno
e cilíndrico, vazio e lacrado com cera pendurado: a ligação dele com o
Elemental, que garantia que ele passasse ao Elemental o que precisava apesar da
distância, e que impediria o Elemental de partir antes que ele deixasse; uma
armadilha, por assim se dizer. Helena fora severa em seu treinamento para que
ela entendesse o básico da magia usada por Bruxos, mesmo que ela fosse incapaz
de usá-la. Abel atravessou a estrada e se embrenhou numa trilha quase
invisível; o Elemental seguiu atrás, carregando a garota.
Cerca
de dez minutos depois de começarem a percorrer a trilha, alcançaram a entrada
do túmulo asteca. Mas mesmo bem antes de chegarem, Alanna foi capaz de sentir a
presença dos mortos. Não eram poucos, mas, apesar do tempo presos, a sensação
que provocavam nela estava longe de gritar “perigo”. Pareciam... Calmos. Era
estranho encontrar espíritos que haviam ficado tanto tempo presos que não
tinham enlouquecido.
Encararam
a pedra e os altos-relevos nela e em volta por alguns segundos
— Sabe como quebrar os feitiços e encantos, Abel? —
Alanna perguntou, os olhos cor de chumbo fixos nas representações de
Tezcatlipoca. Havia algo nelas que lhe parecia familiar de uma forma estranha,
mas não sabia dizer o que, exatamente.
Abel
começou a tirar os objetos que utilizava em sua magia da bolsa a tiracolo,
antes de sorrir para Alanna por cima do ombro.
— Com certeza. Só vai demorar um pouco.
Alanna
se resignou a observar Abel dar início a sua magia para quebrar e desfazer os
feitiços protetores.
Alguns
minutos tinham se passado quando ouviu um barulho vir das árvores mais atrás
deles que destoava dos sons normais de uma floresta. Alanna se arrepiou ao
lembrar que os Sem Pele iam até aquela ruína. Tinha a sensação de que era um
deles que fizera o tal barulho.
Tentou
sentir o espírito de algum morto na direção geral do som. Não sentiu. Então,
provavelmente qualquer que fosse aquele tipo de morto-vivo, não era um ocupado
pelos mortos. Ela esperava. Talvez aquela coisa fosse ocupada por um espírito
dos mortos, que por alguma bizarra razão, ela era incapaz de sentir.
— Acho melhor se apressar... — a garota resmungou, e outro som destoante surgiu ao mesmo
tempo que Abel suspirava.
— Parece que previram que íamos entrar... — ele
falou, mais para si mesmo do que para Alanna, e acelerou a quebra dos feitiços.
Alanna
mordeu o lábio inferior, nervosismo começando a percorrer suas veias, e fazendo
um pouco de malabarismo, alcançou a pistola semiautomática com balas especiais — eram
feitas de diversos metais fatais para os mais diversos seres e benzidas pelos
mais diversos rituais; balas multiuso, como ela gostava de chamar — na
parte de trás do cós da calça.
A
pedra fechando a entrada repentinamente começou a afundar, o barulho de pedra raspando
contra pedra sobressaltando-a. Abel recolheu os objetos que usava em sua magia
e ficou de pé; encarou a floresta por alguns segundos e então andou até ficar
entre Alanna e as árvores. Por entre os troncos, galhos e arbustos, viram ao
menos duas “pessoas”, sem dúvida alguma, os tais Sem Pele. Por alguma razão,
ainda não tinham atacado. Talvez esperassem reforços? Essa possiblidade passou
pela mente da Shaman e provocou um arrepio de medo ao longo de sua coluna.
Repentinamente,
o Elemental começou a se movimentar na direção da porta quase totalmente aberta
e da escuridão do outro lado, enquanto Abel tirava uma lanterna da bolsa a
tiracolo e a enfiava na mão livre de Alanna.
— Hein?! — no momento que a lanterna estava nas mãos da garota, Abel
tirou outra série de objetos da bolsa, relacionados à sua magia, e começou a
executá-la. Alanna logo estava do outro lado da porta, se contorcendo para
enxergar o que estava atrás dela. Onde a porta de pedra estava antes, uma
superfície parecida com vidro fosco surgiu, embaçando sua visão, apenas os
contornos do mexicano visíveis.
— Vou atrasá-los enquanto você investiga aí dentro! A
barreira não vai durar muito, então corre!
E
então a silhueta dele sumiu.
A
Shaman engoliu em seco e voltou a atenção para a frente. O Elemental parara de
se mover, e à frente dela havia apenas escuridão que engolia a pouca luz que
atravessava a barreira improvisada de Abel.
Com um
suspiro, acendeu a lanterna e iluminou o que se mostrou um corredor largo e
empoeirado, e pediu ao Elemental que a levasse em frente.
Alanna
podia sentir os mortos rondando e percorrendo o lugar, embora ainda não os
tivesse encontrado e fossem em menor quantidade do que imaginara a princípio,
quando estava mais distante. Continuavam calmos, o que indicava que não
pareciam ter ligação especial com a construção, como algum tipo de feitiço para
que a protegessem.
Ainda
percorriam o corredor, a lanterna na mão da Shaman iluminando as paredes
ininterruptas e cobertas de pinturas e relevos e estátuas de Tezcatlipoca,
Huitzilopochtli e, ela acreditava, Mictlantecuhtli, mas não tinha certeza.
Após
intermináveis quinze minutos, o corredor terminou numa câmara quadrada e grande
de onde várias entradas com um metro de largura partiam. A parede logo à frente
da saída do corredor continha uma espécie de altar com algo em cima,
irreconhecível pela distância e falta de luz. Os espíritos que ela sentia
estavam mais próximos, rodeando a câmara, as presenças intensas como agulhas
entrando e saindo da pele. Do outro lado das passagens, sem dúvida.
— Por favor, me leve até ao altar. — o
Elemental atendeu o pedido e se aproximou do objeto de pedra. Apesar da altura
em que era segurada, a Shaman não teve problemas em alcançar o objeto que
descansava sobre a superfície lisa, placidamente, com a mão que segurava a
lanterna.
Um
medalhão de ouro, pendurado numa corrente simples de couro. Apesar de sujo,
ambos pareciam novos.
Colocou
a lanterna e a arma sobre o altar e segurou melhor o medalhão com uma mão e
limpou-o da grossa camada de pó com a outra. De um lado, estava gravado o sol
em estilo asteca, e do outro, uma representação de Huitzilopochtli, o deus sol.
Algo
no medalhão berrava “mágico, poderoso e perigoso”, e soube que era aquilo que
os Sem Pele queriam, por qualquer razão que fosse. Oito anos com a Stella
Bianca tinham apurado seu sexto sentido para isso, mesmo que sua magia
teoricamente só servisse para espíritos de mortos.
Sem
enrolar, passou o cordão de couro pela cabeça, e o medalhão descansou ao lado
do presente de Melinda, no espaço entre os seios ainda pouco desenvolvidos.
Estava prestes a pedir ao Elemental para voltarem, lanterna e arma em mãos,
quando um espírito chamou sua atenção.
Eles
estavam todos calmos, ignorantes de sua presença, seguindo com seus pós-morte
como se o local continuasse o mesmo, sonolentos. Menos um. Um deles parecia ter
acordado, a expressão correta era essa. Estava atento, e a sensação que provocava
era uma agulha que se fincava num local errado da pele, muito funda, e se
recusava a sair, diferente dos demais, ainda agulhas que entravam e saíam
rapidamente, quase como acupuntura.
Aquele
espírito percebera que ela estava ali, que algo mudara. Isso a deixou curiosa.
O que o diferenciava dos demais mortos?
— Por ali, por favor. — Apontou para o corredor onde sentia o espírito, e o
Elemental começou a se mover.
Uma
escada estreita, que desceram por cerca de cinco minutos, antes de alcançarem
uma câmara consideravelmente menor, sem dúvida nenhuma mortuária, considerando
o túmulo simples e sem decorações no meio. Uma anomalia, considerando que as
paredes continuavam decoradas, inclusive com textos em nahuatl que ela estava sem tempo e paciência de tentar traduzir.
— Quem é você? — a pergunta diretamente em sua mente sobressaltou a Shaman, tão
concentrada com a aparência estranha da câmara mortuária que esquecera por um
instante do espírito que fora procurar.
Pediu
para o Elemental virar, e a luz da lanterna iluminou e passou através do
espírito, perto de onde a escada terminara.
Era um
homem, alto e magro, que ela julgava ter morrido quando tinha por volta dos
vinte e seis anos. A pele moreno-avermelhada cobria músculos levemente
definidos, mas que demonstravam uma força fácil. Não como os guerreiros
europeus de filmes de Hollywood, mas mais como os nativos sul-americanos que
ela conhecera com o passar dos anos em missões para a Stella Bianca.
O
crânio de um jaguar — mais especificamente de uma pantera —,
ainda coberto com a pelagem negro-azulada com insinuações de manchas negras,
olhos verde-jade nas órbitas e penas coloridas na parte de trás protegendo sua
cabeça e emoldurando o rosto sério. Peças de madeira protegiam partes do corpo
como uma armadura, as presentes no braço direito com lâminas de obsidiana. Um
chimalli colorido preso no braço esquerdo e um maquauhuitl seguro pela
mão direita.
Cabelo liso, preto como piche,
escapava por debaixo do crânio de jaguar e ia até pouco abaixo dos ombros,
algumas mechas se mexendo para lá e para cá na ausência de vento, algo que o
cabelo dos espíritos tinha mania de fazer e a única coisa em toda a interação
que assustava Alanna. Os olhos do espírito, assim como os do crânio do animal,
também eram verde-jade, uma luz de força e uma sombra de desconfiança neles, e
rivalizavam atenção com a pedra de jade esculpida em formato de argola que
estava pendurada no nariz.
O espírito de um Guerreiro Jaguar.
—
Meu nome é Alanna. Sou uma Shaman. E você, quem é? — perguntou com cuidado, usando seu poder
para sentir cuidadosamente o estado do espírito. Precisava estar preparada,
caso ele se tornasse hostil.
O espírito olhou ao redor, o
verde-jade de seus olhos por um instante ganhando um brilho confuso, no mesmo
instante que Alanna sentiu como se algo batesse em sua cabeça por dentro do
crânio, o que confirmava: o espírito estava realmente confuso. E então ele
voltou a se focar nela, a confusão sumida e substituída por certeza.
—
Eu... Não sei. — a
resposta saiu quase suave, enquanto ele baixava o rosto e andava pela sala com
passos lentos.
A certeza de que ele não sabia de
nada. Lembrava à Alanna como ela e Vivian se sentiam antes das provas de
gramática.
A Shaman procurou ignorar o fato
de que entendia o sentimento e se focou no fato de que ele era um espírito com
amnésia que não era loucamente violento. Raro. Raro demais. Espíritos que
perdiam a memória a ponto de não lembrarem quem eram não tinham restrições; se
tornavam violentos e os responsáveis por locais assombrados e todo o mais.
— Então vou te chamar de Jaguar. — falou
com cuidado. Era algo simples, comum, relacionado ao que ele era, mas que podia
desencadear uma reação não muito agradável. Mas uma doação de identidade
necessária, que ajudaria a manter o espírito lúcido. Algo que o ajudaria a
manter o foco. — O que está fazendo aqui, Jaguar? —
perguntou, novamente com cuidado.
— Esperando. — a resposta veio surpreendentemente suave, para um espírito
com amnésia.
— Esperando o quê? — dessa vez, Alanna jurava que ele se irritaria com suas
perguntas, mas conseguiu apenas um rosto vazio de expressões olhando de volta
para ela.
Alanna
suspirou com descrença. O espírito era o único acordado, que notara sua presença, mas, apenas isso: ir atrás dele tinha
sido perda de tempo.
— Vamos embora, por favor. — pediu ao Elemental.
Começou a virar na direção da escada, acompanhando o movimento do Elemental; o
aperto do braço invisível em sua cintura e o apoio do corpo do ser contra o
dela sumiram repentinamente, e Alanna caiu sobre o chão empoeirado, duro e
áspero com um berro de horror.
As
mãos e os braços apararam um pouco a queda, impedindo que ela batesse com o
nariz ou o queixo no chão, mas não que seus pulsos gritassem de dor com o
impacto e que as mãos e os braços ficassem esfolados com o chão áspero. Não
sentia as pernas e não tinha como olhá-las naquele momento, mas apostava que os
joelhos também estavam esfolados, possivelmente sangrando, apesar da calça
jeans. A queda não tinha sido grande, mas isso não significava que ela não
tinha se dado terrivelmente mal.
Após
alguns segundos, conseguiu empurrar a dor para um canto de seus pensamentos
conscientes e se concentrar em descobrir o que acabara de acontecer. Algo
acontecera com Abel, ou ao menos com a ligação entre ele e o Elemental, e o ser
fora embora e a abandonara, porque nem queria ter carregado-a desde o começo,
mas estava obrigado por um feitiço. Alanna soltou um suspiro conformado e
mordeu a bochecha por dentro, tentando achar uma forma de sair que não
envolvesse deixar um espírito entrar em seu corpo.
Repentinamente
outro fato se infiltrou em sua mente: se o feitiço do Elemental se desfizera, a
barreira também. Provavelmente. Um gemido que era de dor e desespero saiu por
sua garganta, longo e baixo, ao concluir isso.
Estava
ferrada. Não demoraria para os tais Sem Pele encontrarem-na. Não ia sobrar nem
um fio de cabelo para contar história sobre a Shaman.
Os
espíritos no interior do local, de calmo e impassíveis, passaram repentinamente
para um estado mais violento e agitado, irradiando raiva e sede de luta e
sangue. Jaguar incluso.
— Filhotes
de Tzitzimime. — ouviu o espírito falar, e quando ergueu o rosto para ele, viu
seu olhar focado de forma quase ausente na escada que levava à primeira câmara.
Mas ele permaneceu no lugar, menos de quatro passos longe dela.
— Hei.
— chamou, e ele fixou os olhos de pantera nela. Estranho, ele ser o único a
permanecer imóvel. Todos os demais tinham começado a se movimentar para a
entrada como um enxame de abelhas coordenado para defender a colmeia. — Por que
você continua aqui? — ia pedir ajuda, mas aquilo lhe parecia o mais curioso,
aquele outro comportamento anômalo. Ainda mais porque era óbvio que ele queria
ir. De todo jeito, provavelmente não sairia dali viva, então pelo menos
preencheria sua curiosidade.
— Não
posso sair e te deixar desprotegida. — os olhos voltaram para a escada, e então
ele passou à frente de Alanna, o corpo numa posição enganosamente relaxada que
ela conhecia bem de tanto ver Nilton e outros da Ordem assumirem: era a pose de
alguém pronto para a batalha ao menor sinal.
— Por
que não? — a pergunta saiu antes que a Shaman pudesse pensar direito, quase
como se seu cérebro e boca estivessem momentaneamente desconectados.
Jaguar
virou o rosto para ela de forma repentina, um movimento rápido demais para os
olhos. As íris dele pareciam ferver pela forma como brilhavam, raiva mal
reprimida alcançando Alanna em ondas.
— Eu.
Não. Sei. — a resposta veio lenta, pausada e baixa. Algo clicou no cérebro da
humana e a garganta de Alanna deixou um novo gemido de desespero escapar.
Ele
fora sacrificado debaixo de um feitiço que garantira que ele perdesse a memória
e se sentisse obrigado a proteger algo, o que o impedira, como espírito, de
enlouquecer por não saber quem era. Todos os espíritos ali deviam estar nessa
situação. Provavelmente, proteger algo específico, como aquela construção. Mas
se era a construção o foco, não fazia sentido ele se sentir compelido a
protegê-la.
Forçou
mais o cérebro, anotando no cenário mental que ele fora a o único a notar sua
presença, a ser acordado antes dos outros. Algo em “Jaguar” era diferente dos
outros espíritos. Talvez, ao invés de proteger o lugar, o feitiço para ele
ditasse que ele deveria proteger o Shaman que o encontrasse? Com certeza não
ela, mas um Shaman da época que ele morrera. Alanna nunca soubera de qualquer
prática remotamente parecida entre os Astecas, de criar espíritos para
protegerem Shamans, mas era a única coisa que fazia sentido. Outros povos
possuíam essa prática, mas os Astecas... Era a primeira vez que encontrava algo
que a sugeria.
Talvez
ela pudesse usar isso para conseguir sair viva. E logo: sentia os espíritos que
tinham ido à luta se aproximando, recuando, e logo berros inumanos e sem vida
alcançaram-na, com certeza dos Sem-Pele, altos e com algo que a fazia querer se
encolher.
— Preciso
de ajuda. — Falou de repente, e Jaguar se virou para observá-la. Só então ele
pareceu perceber que ela continuava com as pernas na mesma posição que estavam
quando ela caíra e ligar aquilo ao fato de que um Elemental carregava-a mais
cedo.
— Eu...
Não tenho como te carregar. — Jaguar falou em tom de desculpas, mostrando as
mãos semitransparentes. Alguém que existia em outra frequência que não a
material e precisaria usar muita força para interagir com algo fora de sua
frequência.
— Não
precisa. Sou uma Shaman, esqueceu? — forçou o tronco para cima até apoiar o
peso sobre o cotovelo esquerdo, embora o antebraço gritasse de dor, e estendeu
a mão do outro braço; concentrando-se um pouco, abriu seu corpo para a
possessão e escondeu seu próprio eu no labirinto, instintivamente.
O
espírito virou-se totalmente para ela e fez uma expressão engraçada, encarando
a mão estendida. Subiu os olhos para seu rosto, e então virou a cabeça e
encarou a escada por um segundo. Só então trancou os olhos de jade com os de
chumbo.
— Tem
certeza disso, Shaman? — ele perguntou com cuidado, dando apenas um passo na
direção da garota.
Alanna
soltou um bufo impaciente e girou os olhos; a preocupação dele para com ela
seria doce, algo que ela não costumava receber de espíritos ao oferecer seu
corpo como receptáculo, se o tempo não fosse tão curto. Os berros dos Sem-Pele
estavam mais próximos. Ou melhor, como o espírito chamara-os mesmo? Filhotes de
Tzitzimime. Se o cérebro de Alanna não a enganava, havia Tzitzimime entre os
seres que os demônios haviam levado. Teria de perguntar a Jaguar quando tivesse
tempo o que aquilo significava, “Filhotes de Tzitzimime”.
— Sim,
tenho certeza. — balançou a mão estendida uma vez, apontando vagamente para si
mesma. — Vamos, não temos muito tempo.
Os olhos
de pantera dardejaram pela sala por um instante, antes do espírito finalmente
fixar o olhar nela de novo. Um segundo depois, Jaguar fechou a distância entre
eles e tocou a mão estendida.
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