Nunca
pensei que fosse dizer isso, mas carne crua, com nenhum tempero além do sangue
natural de qualquer que fosse o bicho, tinha um sabor incrível; talvez fosse a
fome monstruosa que fazia parecer que eu tinha um buraco negro no lugar do
estômago, em consequência do meu corpo estar à toda para cicatrizar os
ferimentos logo, um aviso dado por Tyvan, ou talvez fosse por não ter tomado
café, ou porque era bom mesmo, mas eu ainda queria pelo menos mais dois pedaços
que davam no mínimo três punhos meus. Tipo, eu estava com tanta fome que nem
estava mais ligando se a porcaria do ombro ou da cabeça doíam feito o inferno,
ou se eu conseguira sujar a gola da camiseta cinza de vermelho, ou se estava
parecendo um zumbi que acabara de devorar algum cérebro; não estava sequer
preocupado com o quão fácil estava sendo rasgar a carne com os dentes.
Simplesmente
precisava tampar o buraco que estava mandando minhas entranhas para algum
universo paralelo, e a carne que Luís tinha jogado na minha frente era a única
coisa capaz disso.
Até a mesa
com interface touchscreen se acender logo acima da bandeja, exibindo uma tela
retangular com o rosto pálido de cabelos loiros e com olhos castanho-chocolate
de minha mãe no meio do que reconheci ser a sala dos professores do Colégio
Municipal de São Paulo. Os olhos dela estavam tão arregalados que pensei que
fossem cair, enquanto o queixo estava tão frouxo, mas tão frouxo, que parecia
que a mandíbula dela tinha deslocado.
Droga.
Eu devia ter seguido a dica de Luís e
entrado em contato com ela antes do almoço...
A carne
caiu da minha mão com um baque enquanto eu encarava Isabel, completamente sem
reação, apenas abrindo e fechando a boca feito um peixe repetidas vezes, até
que alguém – imagino que Luís – enfiou um pano na minha mão e imediatamente
comecei a tentar limpar meu rosto e mãos.
Minha
tentativa não durou mais de um minuto: Eliana também brotou na tela, berrando
“Madeu!”, com seu lindo sorriso e parecendo querer atravessar a tela para me
abraçar. Literalmente travei, com uma das mãos esfregando o pano contra uma das
minhas bochechas cheias de sangue já meio seco.
A fera,
aquele bicho estúpido, só ria, não dando palpite nenhum de como eu devia agir;
enquanto eu esperava a reação da minha irmã, que eu só imaginava que seria sair
correndo e chorando, percebi que o refeitório estava estranhamente silencioso.
Pelo
jeito, todo mundo estava curioso para saber quanto que o mestiço aqui ia se
ferrar.
As
sobrancelhas dela se franziram debaixo da aba de sua inseparável boina, a
cabeça inclinando pra um lado e fazendo um biquinho.
Elavaicorrer, elavaicorrer, elavaicorrer...
- Por que você tá com a cabeça enfaixada,
Madeu? – soltei um suspiro aliviado; a fera parou de rir, resmungando algo
que não me esforcei para entender, o movimento e a falação voltando a dominar o
refeitório, mas num nível mais baixo do que eu esperava.
- Exatamente. Joshua me mandou uma mensagem de
manhã, falando que já podíamos entrar em contato com você, mas avisando que
tinha acontecido um acidente. – minha mãe começou após eu percebê-la
abraçar a cintura de Eliana e a puxar para trás, me observando por cima do
ombro de minha irmã. Só então percebi que sua reação não era exatamente por
causa do sangue: considerando que ela visitou Rav, a cidade Lobisomem que fica
na ilha de Marajó pouco antes de casar com meu pai, por um mês, para
complementar sua formação em História das Raças, deve ter se acostumado com
esse tipo de cena. Ela estava era preocupada com o que demonstrava que eu tinha
rachado a cabeça mais cedo. – Que que
você andou aprontando, mocinho?
Ouvi Luís abafar
o riso do meu lado, e o xinguei mentalmente, embora não o culpasse: o tom meio
acusador de minha mãe realmente dava vontade de rir.
Desde que
não fosse com você, é claro.
- Foi
durante a aula para aprender a controlar a transformação. – propositalmente
deixei de fora a parte sobre o professor psicótico, tanto porque Eliana não
merecia ouvir esse tipo de coisa e ficar preocupada comigo, tanto por saber que
minha mãe tentaria vir para Fenris Fenrir, mesmo que ilegalmente, para armar o
pior barraco possível.
Isabel
podia ser a humana mais calma do mundo na maior parte do tempo, desde que você
não mexesse comigo, Eliana, meu pai ou qualquer outra pessoa da família; fazer
isso era pedir pra ela transformar sua vida no nono círculo do inferno.
Enfim.
Minha mãe me conhecia, e ela semicerrou os olhos, desconfiada de que eu não
contara tudo; entretanto, antes que ela pudesse perguntar o que eu estava
escondendo, Luís se enfiou na minha frente, me empurrando pra trás e quase
fazendo a cadeira despencar comigo junto. Provavelmente a intenção era boa – me
salvar de ter de entrar em detalhes –, mas ele estava praticamente sentando em
cima de mim para conseguir olhar na tela e conversar com as duas mulheres mais
próximas que já tive a vida inteira.
- Então você é Eliana! Amadeus falou montes
sobre você!
- Não
falei não! – resmunguei, tentando empurrar o Sonnenblume com o braço bom, sem
sucesso. E, de fato, eu não falara
sobre Eliana para ele.
- Você
fala dormindo. Resmungou pra caramba sobre ela enquanto tava na enfermaria e
noite passada. – ele deu de ombros, e desisti de empurrá-lo para longe, me
contentando em empurrar apenas um pouco e dividir o espaço com ele.
- Eu não
falo dormindo!
- Fala sim. – afundei na cadeira quando
Isabel e Eliana falaram ao mesmo tempo.
Como
assim, eu falo dormindo e elas nunca me avisaram? Tipo... Sacanagem.
Isso
explica como Isabel descobria facilmente minhas traquinagens infantis...
Ao fundo,
a fera se matava de rir com a minha situação.
Eu e Luís
conversamos quase todo o almoço com minha mãe e Eliana enquanto terminávamos de
comer; ou melhor, eles conversaram:
apenas tentei me defender debilmente das histórias vergonhosas sobre mim que
minha mãe insistia em contar e que minha irmã caçula complementava alegremente,
alegando que meu colega de quarto devia saber com que tipo de pessoa estava
lidando. Em determinado momento, eu queria apenas que Ageu aparecesse e
terminasse o que começara: ouvir o Sonnenblume rindo até quase literalmente
cair da cadeira e outros Lobisomens sentados próximos darem risinhos discretos
– ou não – não estava ajudando.
Felizmente
eu tenho um veterano legal, e quando ele se despediu das duas, ele me levou até
outro ponto do refeitório de onde vinha uma infinidade de risadas, às quais nós
dois nos juntamos, mesmo a fera, frequentemente dando pitacos em meio ao riso:
Davi e Larissa, sentados um de frente pro outro, mas quase sumindo debaixo da
mesa de tanto que tinham escorregado pelas cadeiras, ela com o rosto tão
vermelho que parecia que não existia pele sobre a carne da face; as mães de
ambos estavam sentadas lado a lado na tela que aparecia na mesa, os veteranos
de ambos ao lado deles, rindo sem parar das histórias vergonhosas que as duas
contavam sobre os próximos Alfas.
-
Explique. Isso não é natural, explique. – pedi para Luís em meio aos risos
provocados por uma história particularmente engraçada sobre Larissa esquecer
Davi amarrado de cabeça pra baixo no meio da floresta quando tinham cerca de
oito anos por uma noite inteira.
Luís
respirou fundo, tentando parar de rir e se endireitar.
- Tradição
Lobisomem. As mães ou os pais contam as histórias mais vergonhosas sobre os
filhos no segundo dia dele depois de acordar do coma da primeira Transformação,
no momento em que mais tem pessoas perto dele. – ele riu de novo sobre algo que
a mãe de Davi falou que fez Larissa se encolher mais ainda. – Fiquei surpreso
por sua mãe conhecer a tradição... Queria que você falasse com ela antes
justamente pra poder contar pra ela.
Soquei o
braço dele, meio sem fôlego. Filho da mãe conspirador.
Ainda
assim, eu não conseguia parar de rir da história de que Davi colocara um
escorpião gigante no saco de dormir de Larissa enquanto ela dormia, em vingança
a noite de cabeça pra baixo, antes de acordá-la; a descrição vívida que a mãe
da Asimí fez dos gritos era realmente hilária.
- Ela
viveu um mês em Rav... Deve ter aprendido lá... Ou o Major contou pra ela
através da mensagem que ela disse que ele enviou. – consegui resmungar,
tentando parar de rir. – Mas qual o objetivo, Luís?
- Algo
sobre ser possível conhecer um Lobisomem melhor se você souber o que ele fez
antes da transformação. Não tenho certeza, ninguém lembra mais porque faz isso.
– suspirando e regulando a respiração, ele então pegou meu braço bom e começou
a me puxar para fora do refeitório. – Vamos. Você tem aula do nosso dialeto e
depois luta corpo a corpo; Tyvan te proibiu de lutar por dois dias, mas você
pode observar sem problemas.
A aula de
dialeto Lobisomem, com o professor falando no derivado de norueguês arcaico e
nos forçando a falar nessa língua, me deixou com dor de cabeça e implorando por
misericórdia. O fato de, além de mim, ter apenas um casal de gêmeos mestiços
com Totens na sala, só piorou a situação: os dois puxaram muito do pai/mãe
Totem, mas sem controle algum, já que quando eles conversavam mentalmente, eu,
infelizmente, também ouvia. A forma como a pele deles também parecia ondular
dependendo da luz, sendo aparentemente substituída por escamas, couro espesso,
penas ou placas dérmicas, só piorou a tal dor de cabeça e ainda me deu enjoo.
Tipo, até
a fera estava reclamando de dor de cabeça. Até
a fera.
Depois
dessa, não queria nem conhecer um Totem puro. Pelo que Luís me falou ao ir me
socorrer na sala, já que eu estava quase colocando tudo que tinha dentro de mim
pra fora, que a sensação era ainda pior: a aparência deles aos nossos olhos
mudavam por inteiro a cada poucos minutos, dependendo de como eles se
movimentavam ou se a luz mudava. Não que eles realmente mudassem de forma, era
apenas a forma como eles se sentiam ou movimentavam que influenciava em como
nossos olhos os viam. É complicado explicar.
Então
fiquei sentado num canto do salão usado como sala de aula para Combate Corpo a
Corpo, já que Tyvan tinha me proibido de lutar até os ferimentos fecharem,
apenas observando os outros Lobisomens lutarem entre si ferozmente, sem
coreografia. Transformação e intenção real de matar estavam proibidas, mas todo
o resto era permitido: não existia nada proibindo golpes na virilha, no caso
dos homens, nem nos seios, no caso das mulheres; olho também estava ok, desde
que não cegasse permanentemente, e nem esmagar a garganta ou quebrar o pescoço,
mesmo que isso não implicasse diretamente em morte, caso a medula permanecesse
intacta, mas ainda era arriscado; por isso, apenas simulações de ataques com
esses efeitos eram feitos, para que quem recebesse pudesse descobrir e praticar
como evita-los.
Mas perdi
a conta de quantos ossos foram quebrados, seguidos de berros de dor e
xingamentos ao responsável e então corrida pra enfermaria.
Todos
lutavam contra todos. Novatos contra veteranos. Um Lobisomem contra dois, três
ou mais. Não existia aquela coisa dos humanos de separar em diversos níveis de
habilidade ou peso, nem de ser obrigatoriamente um contra um. A lei era
aprender na prática, porque, se não aprendesse, morria quando estivesse em
missão.
Apesar de
ter apenas assistido, até que aprendi um bocado de coisa na teoria, só faltava
prática; percebi inclusive que Davi, apesar de tudo, tinha um sério problema
quanto a manter a guarda alta do lado esquerdo antes de chutar com o pé direito
a lateral de com quem ele lutava. Já Larissa parecia ter problemas em se
defender de mais de uma pessoa ao mesmo tempo, apesar de lutar de forma
incrível quando apenas contra um. Ao menos foi o que percebi
Ao final
de Combate Corpo a Corpo, Luís não apareceu, mas enviou uma mensagem dizendo
que me encontraria no refeitório durante o jantar. Como consequência, eu tinha
uma hora e meia totalmente livre antes da refeição.
O que eu
fiz?
Sentei no
refeitório vazio e continuei a estudar o dolorido dialeto Lobisomem...
Minha
cabeça tinha voltado a doer meia hora antes de Luís aparecer, pelo simples fato
de que conjugar verbos era enlouquecedor, e o Sonnenblume me encontrou com a
testa na superfície fria da mesa, xingando quem quer que ainda não tinha
decidido que o dialeto Lobisomem devia derivar do norueguês moderno, e não do
arcaico.
- Amadeus?
– a voz dele parecia preocupada; pudera, ele colocara a mão no meu ombro, me
sacudira, e ainda assim, eu continuei inerte.
“Endireita essa coluna, cara.”
Só quando minha cabeça parar de doer...
“Para de frescura.”
Não to de frescura.
“Tá sim.”
Rosnei
para a fera, interrompendo o diálogo.
E então um
cheiro lindo e maravilhoso de carne, sangue, batata frita com ketchup e de suco
de abacaxi com hortelã invadiu minhas narinas e me endireitei na hora, meu
estômago subitamente implorando por comida.
Foi só eu
liberar o espaço na mesa que Luís colocou uma das duas bandejas na minha
frente.
- Comida
sempre ajuda a passar a dor de cabeça de estudar línguas estrangeiras muito
diferentes... – ele falou com um sorriso, jogando um monte de batata frita na
boca.
Balancei a
cabeça, e então avancei na carne, agradecendo pelos cozinheiros desse lugar: só
de olhar tanta comida, minha dor de cabeça já estava passando.
- Qual a
língua que te dá dor de cabeça? – perguntei entre uma mordida e outra,
observando meu colega de quarto com atenção, assistindo como ele comia com
calma a batata frita; os lábios dele ainda estavam meio puxados num sorriso, e
os olhos dourado-claro estavam com um brilho estranho.
- Além da
da Gwineve? – engasguei quando ele falou isso num tom de voz que achei
malicioso.
Tipo...
Não vou
contar o que se passou pela minha cabeça. Nem em um milhão de anos. Nem sob
tortura. Afinal, depois dessa, estava claro que pelo menos alguns encontros
esses dois já tiveram, o que não me surpreende de fato, não depois do aviso da
fera sobre cheiro e tals.
Só espero
que ele não invente de dar detalhes.
Odeio
saber detalhes do tipo sobre a vida íntima dos outros. Já basta o que a minha
mente fértil consegue imaginar com pouca informação. Tipo... Pra quê dividir
esse tipo de coisa?
“Ué, qual o problema se pelo jeito ela
fez...”
CALA A BOCA! Eu estou realmente tentando
tirar essa imagem da minha cabeça!
A fera não
parava de rir da minha reação, para o meu desespero.
- É, além
da língua dela... – consegui cuspir depois de tossir loucamente tentando
recuperar o fôlego.
O filho da
mãe ainda não tinha perdido o sorrisinho. Parecia estar se divertindo com a
minha reação.
- Dialeto
Totem. É uma mistura muito confusa de diversos dialetos dos povos nativos das
Américas... – os ombros dele caíram por um momento, e eu entendi o motivo.
Tipo...
Um monte
de dialetos diferentes.
Unidos num
dialeto só.
De uma
forma que pelo jeito estava longe de ser homogênea.
Meu
cérebro doeu só de imaginar, por isso dei outra mordida generosa na carne,
sentindo o sangue escorrer por meu queixo, mas nem dei atenção. Estava mais
preocupado com a expressão meio pensativa que o rosto de Luís assumira, com as
sobrancelhas um pouco franzidas e os olhos longe, longe.
- Tudo
bem, cara? – perguntei após um longo período de silêncio, em que eu já
terminara com a carne e agora atacava a batata frita.
O
Sonnenblume saltou na cadeira, delatando que, além de pensativo, estava
distraído, o que me fez rir. Ele me olhou, as bochechas comicamente estufadas
de comida como um ursinho de pelúcia, piscando com seus olhos naturalmente arregalados.
- Minha
irmã caçula passou pela primeira Transformação... Ela já deve ter voltado à
forma humana e chegado... – ele sorriu de leve, e só então percebi que havia
algo de preocupação em seu olhar.
- Qual a
idade dela?
- Quinze.
– a resposta veio acompanhada de um sorriso leve e de algo de orgulho em seu
tom de voz, apesar da preocupação no olhar.
- Você
pode visitá-la? – ele balançou a cabeça em afirmativa. – Quer ir lá depois do
jantar?
Ele soltou
um suspiro que me pareceu de alívio. Provavelmente ele não estava à fim de ir
sozinho, embora eu não entendesse porque...
A
enfermaria estava vazia, apesar de todos os ossos quebrados em Combate Corpo a
Corpo mais cedo; Tyvan e seus subordinados são habilidosos e rápidos para tratar
qualquer coisa e liberar o paciente.
O Zuri
mal-humorado resmungou de forma ininteligível quando nos viu, e então,
maldizendo o que quer que fosse, nos guiou até um dos quartos; vendo de relance
o prontuário na interface da porta, li o nome “Débora Dritte’blütenblatt
Sonnenblume”. Imaginei que o nome do meio fosse o ramo do clã Sonnenblume ao
qual ela e Luís pertenciam, como o sobrenome normal de um humano.
A irmã de
Luís estava apagada na cama alta; como o irmão, era magra e coberta de músculos
delgados, aparentemente da minha altura, talvez mais baixa. A pele tinha um
bronzeado que falava de saúde e incapacidade de ficar quieta. O cabelo era
liso, curto e repicado, de um tom de loiro amarelo que faziam parecer que havia
uma coroa de ipês em torno da sua cabeça. E, como comigo, havia uma coleira de
prata pendendo de seu pescoço.
“É uma criança. Tem quinze, mas é uma
criança...” A fera não deixava de ter razão. Débora era magra, mas as
feições o rosto ainda eram arredondadas como as de uma criança, com as
bochechas cheias e o queixo mais fino. Tipo... Ela me lembrava muito Eliana.
Ainda assim, seu cheiro, que me lembrava verniz, serragem e eucalipto, carregava
força de um modo que me lembrava Davi.
Além dela,
havia uma outra moça no quarto; mais especificamente, era a mulher que eu vira
brigando no dia anterior. Uma Vosien, se eu me lembrava direito do que Luís me
falara. Ela virou-se para nós quando entramos; seus olhos bicolores tinham algo
de seriedade que me fizeram estremecer. E agora, mais próximo e sem ela estar
ensopada de sangue, pude perceber que um cheiro similar ao de grama recém-aparada
e de livro antigo vinha dela.
- Imaginei
que você viria ainda hoje. – sua voz carregava um tom agudo, pausado por causa
do sotaque que me fazia pensar, por alguma razão bizarra, num xilofone. Ela se
virou para nós, as mãos cruzadas nas costas, e pude perceber que seu corpo
esguio, apesar de possuir algumas curvas, era quase completamente reto, o que
me surpreendeu.
Tipo, eu
já tinha lido que as Ninfas da terra possuem uma beleza que se concentra mais
no rosto, com os seios delas praticamente não desenvolvidos e a cintura praticamente
inexistente, com as nádegas tão pouco evidentes quanto. Minha mãe as descrevera
da seguinte forma: esguias como um galho.
Aquela
garota com certeza era esguia como um galho.
Se alguém
que é mestiça de Ninfa da terra já é assim, que dirá uma Ninfa em si...
- Bom
saber que o Major escolheu você como veterana dela, Cris... – Luís falou
enquanto se sentava do lado da irmã, sem olhar na direção da Vosien. – Joshua
te falou como foi? Meus pais não deram muitos detalhes...
Cris deu
de ombros, cruzando os braços. Olhei ao redor, sem saber direito o que eu
estava fazendo ali. Era óbvio que eu estava sobrando na conversa.
- Foi uma
transformação tranquila... – ela deu uma pausa, franzindo as sobrancelhas. –
Quer dizer, tirando a parte que ela conseguiu arrombar a cela de contenção e
subiu até o topo do centro militar de Rav... Afora isso, tudo normal. Ela não
atacou ninguém, então, pode relaxar.
Senti meus
olhos arregalarem. As celas de contenção dos Lobisomens são onde os indivíduos
se trancam quando percebem os sinais da primeira transformação, antes dela
ocorrer, assim evitam acidentes. São construções feitas pra aguentar um ataque
nuclear em massa. Ao menos em teoria.
“Essa menina é forte...” ouvi a fera sussurrar,
com um respeito novo por Débora na voz.
Ter
arrombado uma cela de contenção não deixa dúvidas disso.
- Tem algo
sobre ela que eu deva saber?
Opa.
Assunto
pessoal. Melhor eu cair fora.
- Vou
esperar lá fora. – mal falei isso e me aproximei da porta, que se abriu com um
simples toque de mão, para minha surpresa, e sai, sem esperar uma resposta, o
metal se fechando com um zumbido às minhas costas.
Olhei ao
redor, e vi uma porta aberta. Minha curiosidade falou alto e a fera também, por
isso andei na ponta dos pés – mesmo sabendo que meu cheiro me entregaria – até
a abertura e espiei para dentro, ouvindo uma voz que conseguia ser séria e
neutra ao mesmo tempo, enquanto tentava definir do que era o cheiro que tinha
me alcançado, além do de Tyvan.
- Já falei
que estou bem! – quem resmungara era um rapaz magrelo, embora um pouco mais
alto que eu, pelo que me parecia, que estava sendo examinado – cutucado – por
Tyvan. A pele era morena, um tom que me fazia pensar em árvores velhas, apesar
da pele lisa. Um dos olhos era dourado-puro, como o meu, enquanto o outro era
verde-outonal, lembrando Cris, mas ao invés de arredondados, eram mais
estreitos, como asiáticos e nativo-americanos; hoje em dia, fora da Ásia, era
um traço raro, normalmente encontrado nos Totens. Já o cabelo tinha uma cor de
folhas secas no outono, e aliado ao fato de seu cabelo passar das orelhas,
cobrindo um pouco os olhos, e ser totalmente rebelde, me fez pensar em folhas
secas caindo.
Sem dúvida
nenhuma ele era mestiço com Ninfa da terra; tive mais certeza ainda quando
identifiquei seu cheiro como sendo de musgo, umidade e terra. Ele tinha mais
cheiro de alguém com sangue de Ninfa que a Vosien veterana de Débora.
Ele virou
os olhos bicolores na minha direção momentaneamente enquanto tentava afastar
Tyvan, mas logo fingiu que eu não estava ali.
- Você
acordou menos de vinte e quatro horas depois do fim da primeira transformação,
Guilherme! Isso não é normal, ainda mais pra um mestiço! O veterano que o Major
designou pra você nem voltou da missão ainda! – o mal-humorado parecia no
limite com Guilherme; eu estava até mesmo ouvindo alguns rosnados da parte
dele...
O mestiço
resmungou algo e ficou quieto, deixando Tyvan continuar a examiná-lo, embora
tudo pra mim parecesse normal. Nem as máquinas ligadas em Guilherme acusavam
algo errado...
Não sei
quanto tempo o Zuri ficou examinando o rapaz, só sei que quando ele resmungou
que estava aparentemente tudo bem, dando alta, e saiu do quarto, me dando um
olhar azedo, o sono estava quase me fazendo voltar pro quarto de Débora e
avisar Luís que estava indo dormir.
Exato, nem
ele tinha dado sinal de vida.
O mestiço,
ainda deitado na cama, acenou pra eu entrar enquanto começava a tirar as
agulhas e sensores.
Contorci
um pouco a boca, pensando, antes de finalmente me aproximar e ajuda-lo com a parafernália
de hospital.
- Minha
mãe comentou sobre os rumores de um mestiço com humano aqui no Fenris Fenrir...
– ele parou quando terminou com aquele monte de fios, seus olhos perfurando os
meus; quase parecia que tentava ler minha mente.
Eu teria
me preocupado seriamente com essa possibilidade se ele fosse mestiço com um
Totem, e não com Ninfa.
Dei de
ombros com sua declaração, me afastando dois passos e enfiando as mãos nos
bolsos da calça, sem falar nada. Não tinha ideia de que, fora de Fenris Fenrir,
minha existência se aproximava mais de um rumor não confirmado. Achava que
estava longe disso, por causa do que Curupira dissera sobre Iara.
- O Major
deve estar tomando cuidado com a divulgação sobre isso... Alguns clãs poderiam
tentar algo contra sua família humana, afinal eles não estão exatamente
protegidos pelos tratados dos clãs... – falou casualmente, enquanto testava se
as pernas tinham força suficiente para permanecer de pé.
Sem nem
perceber, um rosnado escapou da minha garganta. Só o pensamento de algo
acontecendo com meus pais, ou pior, com Eliana, me fazia querer entregar as
rédeas para a fera, se isso pudesse protegê-los.
“Se alguém encostar um dedo neles...”
Morre. Dolorosamente. Preferencialmente
torturado antes.
“Que tal cobri-los de mel e acorrenta-los
num lugar cheio de saúvas? Ou de formigas-cabeçudas?”
Ou tudo isso e marimbondos também.
Minha
pacífica conversa sobre tortura utilizando o que a natureza tinha de melhor com
a fera foi interrompida por uma risada baixa, que identifiquei como sendo de
Guilherme.
Quando
foquei de novo minha atenção nele, um sorriso leve e maroto quebrava as feições
neutras de seu rosto.
- Aceita
um conselho?
Dando de
ombros, balancei a cabeça em afirmativa.
- Continue
agindo assim.
Assim
como? Feito um idiota que para pra conversar com o outro lado dele mesmo e
ignora o resto ao redor?
Felizmente
ou infelizmente, Deus sabe, não tive tempo de perguntar.
- Tem um
buraco na minha barriga... Onde como? – a declaração não me surpreendeu: embora
ele não tivesse as feições do rosto magras ou afundadas, algo nele ainda me
fazia pensar na palavra “esfomeado”. Não tinha relação nem com os olhos
estreitos, que nada revelavam, nem com os lábios grossos, muito menos com o
rosto ovalado... Sei lá. Ele só passava a mensagem de fome.
- Não
sei... Agora já pararam de servir o jantar, e meu veterano não falou nada sobre
comer fora do horário das refeições... – realmente. Nem mesmo uma palavrinha
sobre, e o besta aqui também não perguntou.
- Deve ter
algo sobre no seu anel de identificação... Eles sempre colocam, pelo que ouvi. Seria
estranho não ter como comer a qualquer momento num centro de treinamento
Lobisomem. – ele apontou para o anel dourado-puro no dedo médio da minha mão
esquerda, e só então percebi que ele não possuía um anel.
- Ué...
Você não chegou com um anel de clã? – perguntei enquanto deslizava os dedos
pelo teclado espectral que se estendera em meu braço, procurando algo sobre
comida nas plantas do complexo.
- Não era
certeza que eu me transformaria, então os Vosien não me deram um anel de
identificação do clã, embora tenham um semi-preparado, pelo que meu pai me
falou. – a resposta veio rápida, com ele mal respirando depois da minha
pergunta.
- Então os
laboratórios de tecnologia devem estar terminando de configurar ele. –
semicerrei os olhos, caçando mais um pouco as informações, até finalmente achar
que existia uma espécie de lanchonete no térreo daquele mesmo prédio. – Achei!
Vou s... – Guilherme me interrompeu, cutucando meu braço para chamar a minha
atenção, e então apontou com a outra mão para a parede perto da porta.
Uma tela
de comunicação estava aberta, mostrando o rosto do Major. Ele parecia calmo, os
lábios esticados discretamente, mas isso não me impediu de engolir em seco
antes de me aproximar.
- Senhor.
– ele balançou a mão, como quem diz para parar com formalidade.
Isso só me
fez engolir em seco de novo. Nem mesmo a fera ousou dar algum palpite: eu quase
podia ouvir sua respiração, pesada de ansiedade.
- Bom ver que você e Guilherme já se
conheceram. – Joshua pareceu se
recostar contra a cadeira onde estava, o sorriso ainda presente. – Seu veterano só chega amanhã à tarde, rapaz.
– notei com o canto do olho os ombros do mestiço caírem. – Amadeus, você pode levar Guilherme até
Bernardo? Ele acabou de me informar que o anel de identificação dele já está
quase pronto, falta só uma informação. – nesse ponto, ele deu uma piscada
marota que fez um arrepio percorrer minha espinha ao entender que faltava
descobrir qual a aptidão natural do mestiço. – O anel já tem registrado o seu quarto, Guilherme, então não precisa se
preocupar.
- Posso,
senhor. Ainda tenho um pouco de tempo livre. – respondi à pergunta com um leve
tom de apreensão.
- Obrigado, rapaz. Ah, não precisa se
preocupar com dinheiro, já avisei a lanchonete que o que você comer hoje é por
minha conta, Guilherme.
”Dinheiro? Você lembra de Luís falar algo
sobre ‘dinheiro’?”
Nem uma palavra. Tenho de xeretar tudo
que tem no anel, aposto que tem algo explicando isso...
-
Obrigado, senhor. – falamos ao mesmo tempo, e os dentes do Major apareceram.
- Não precisa avisar Luís. Já estou enviando
uma mensagem para ele. – ele deu uma pausa, os olhos dourado-mel com um
brilho estranho que me parecia ser uma pontada de orgulho enquanto nos
observava. – Dispensados e bom-apetite.
Ben tinha
feito festa quando Guilherme escolheu o próprio visor, uma coisa estranha que
parecia uma espécie de “diadema” que ficava preso acima das sobrancelhas, de um
lado um visor de acrílico, do outro um visor espectral surgia, como no meu. O
Sonnenblume abraçou o mais novo membro dos Vosien pelos ombros e o levantou,
provocando uma expressão confusa no rosto do Lobisomem mais novo.
Quando ele
conseguiu se acalmar, explicou, como uma criança contando sobre o presente
novo, que aquilo significava que Guilherme era um Estrategista e um Especialista
em Bombas nato. Finalizou perguntando se o rapaz acreditava que teria aptidão
para magia de cura, ao que recebeu um hesitante aceno afirmativo, e então gritou
um “Uhu!”, seguido de “Aquele idiota perdeu a aposta!”.
Depois
disso, enquanto Guilherme esvaziava a despensa da lanchonete, tentei imaginar
se Ben também não tinha feito apostas sobre o que eu seria. Não cheguei a uma
resolução definitiva.
E então
nos separamos nos corredores do andar onde nossos quartos estavam. Luís já
roncava quando cheguei, e não demorei pra estar dormindo feito uma pedra depois
que me enfiei debaixo do lençol.
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Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
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