23 janeiro 2015

Elysium 1: Fenris Fenrir - Capítulo 4

Vi-me dentro de uma sala completamente branca e estéril. Não fossem as sutis sombras que a iluminação provocava e as linhas escuras que pareciam junções de placas, eu estaria me sentindo no meio do nada.
Reparei, com o canto do olho, que Ben tinha um sorriso no mínimo psicótico no rosto enquanto digitava uma série de comandos no espectro alaranjado que tinha se estendido por seu braço direito. Ouvi diversos clicks, e quando olhei ao redor, vi diversas daquelas linhas escuras afundarem e então se separarem, deslizando para as laterais, deixando o que só posso descrever como um protótipo de arsenal à vista.

Uma das paredes – a maior – exibia uma variedade de elmos, capacetes, óculos e visores que eu considerava absurda – nem em meus sonhos mais loucos existiam tantas variedades. Outra, possuía armas. Muitas armas. Pistolas, arcos, luvas, rifles, escopetas, metralhadoras, espadas, facas, adagas, bombas, granadas, arcos... Acho até que vi um lança-chamas portátil – sim, um lança-chamas portátil. E a última parede possuía uma série de modelos de exoesqueletos – que eram um tanto padrões para todas as espécies. De corpo inteiro ou diversas formas de conjuntos, com mais ou menos suportes magnéticos de armas, do azul meia-noite que Lobisomens costumam usar, com os circuitos por onde o mitril escorreria e cobriria o corpo de quem estivesse usando-o de um azul claro, suave, mas de um jeito estranho, brilhante como néon. Abaixo desses exoesqueletos, as botas, um pouco mais altas que sapatos padrões devido aos amortecedores e aos patins à base de turbinas.
Com exceção dos exoesqueletos, todo o mais ali eu nem sonhava como funcionava realmente. Eram feitos por Lobisomens e para Lobisomens. Cada raça possuía armas e adicionais exclusivos, adaptados para sua própria morfologia. E todas protegiam essas informações com afinco.
Senti cutucarem minhas costas, vendo Luís quando me virei parcialmente.
- Escolha um daqueles. – ele disse, apontando para a maior parede, em seguida me empurrando na direção dela de leve.
Dei mais alguns passos, encarando os suportes de acrílico que sustentavam cada elmo, capacete, visor e óculos. De primeira, alguns pareciam iguais, mas se observados mais atentamente, eu podia distinguir pequenas diferenças.  Não sei dizer se eram diferenças funcionais ou apenas na aparência, mas estavam lá.
Minha atenção se fixou num simples, azul meia-noite. Parecia metade de um óculos, com a haste atrás da orelha envolvendo-a completamente, com uma ramificação com um fone de ouvido minúsculo no final. Na frente, a haste terminava numa semi-armação, que possuía um vidro fino preso, de forma que cobriria apenas um olho. Aquele monóculo me parecia ideal.
“Esse não. O do lado.”
Olhei para o que fera me dissera para escolher. A única diferença visível era que não possuía um vidro preso – provavelmente, produzia um espectro como visor. Minhas sobrancelhas subiram quase que instantaneamente.
Não são tão diferentes assim...
“Vai por mim. O que está sem vidro é o correto pra gente.”
Mas...
“Amadeus. A gente ainda não se conhece tanto, é verdade, mas por favor, me ouça. Pelo menos dessa vez.”
Por que o faria?
“Porque isso é o melhor para Eliana.”
Golpe baixo...
“Eu sei...”
Fiz uma careta depois da conversa com minha fera interior e mudei o trajeto da minha mão para o que ele tinha me dito.
Peguei o monóculo, analisando-o mais de perto, localizando um botão na haste, no ponto onde saia a ramificação do fone. Imaginei que devia ligar o espectro através do qual um dos meus olhos veria.
Olhei ao redor, vendo um olhar espantado no rosto de Luís – sem brincadeira, os olhos dele deviam estar do tamanho de pratos – enquanto Ben sorria discretamente por entre o emaranhado loiro, parecendo quase esperar aquilo. De algum jeito, aquele sorriso, junto do olhar divertido nas pupilas dourado-claro, dava-lhe um ar solene, apesar dos fios amarelos que apontavam para todo lado como num cientista louco.
- O que? – ouvi minha voz falar. Luís piscou, sendo então balançado por um empurrão/soco do tio, que começou a vir na minha direção. Me encolhi instintivamente quando um de seus braços envolveu meus ombros e me espremeu contra seu tronco, sentindo minha coluna estralar em diversos pontos.
- Rá! Joshua vai gostar de saber disso! – falou olhando para o sobrinho, e então olhou para mim. – Melhor se preparar, rapaz, porque não vai ser fácil!
Minhas sobrancelhas subiram, minha expressão facial o mais confusa possível.
- Explique, por favor.
- Esse tipo de visor é usado por Lobisomens que são Infiltrados e Assassinos. Lobisomens geralmente são só um ou outro, e esses já são relativamente raros. – Era Luís quem falava, atraindo meu olhar para sua figura magra. – Por exemplo, eu sou um Infiltrado. Faz uns bons dois ou três anos que não aparecem recrutas que possuem as habilidades de um aqui no Fenris Fenrir. – ele deu de ombros, quase como se não ligasse. – Se prepare para conversar muito com o Major, porque ele é um Assassino e Infiltrado.
- Espera aí. – os dois olharam para mim. – Como podem ter certeza de quais são minhas habilidades? Que não escolhi esse visor por ser, sei lá, mais bonito ou coisa do tipo?
Ben soltou-me, o braço que tinha envolvido meus ombros coçando a massa disforme que cobria sua cabeça.
- É algo muito técnico, mas vou tentar simplificar: cada um desses visores produz uma espécie de som que nossos ouvidos humanos não conseguem ouvir, mas de algum jeito, as feras sim, mesmo que estejamos na forma humana. Os sons são diferentes de visor para visor, e cada fera se sente mais atraída por um ou outro. – ele fez uma pausa, agora coçando a barba. – Até hoje, a forma como cada um foi previamente configurado ajustou-se perfeitamente às habilidades naturais do Lobisomem que o escolheu, então, é um processo válido para definir o que cada um estudará. É mais simples, fácil e rápido do que fazer os recrutas realizarem um milhão de tarefas até descobrir o que melhor se adequará às habilidades demonstradas. Agora, responda sinceramente: você escolheu esse visor por que a fera o convenceu à isso, correto?
Ele tinha o ponto. Contanto que fosse um método confiável – e era o que parecia –, era muito melhor do que a alternativa.
Suspirei de um jeito cansado, meus ombros cedendo.
- Sim, foi a fera quem me convenceu. – a fala pareceu mais um resmungo, sendo quase impossível definir o que eu falara. O cientista sorriu de um modo louco antes de colocar a mão com força no meu ombro, fazendo-o ceder mais para aquele lado... Preguiçoso com a postura como só eu posso ser, nem tentei me endireitar.
- Vamos tirar suas medidas e terminar de configurar o seu anel antes de Luís te mostrar os campos de treinamento e encher sua cabeça com regras e mais regras.
Murmurei algo ininteligível até mesmo pra mim enquanto me deixava ser guiado pela sala, a fera resmungando “regras” num tom de “quem precisa de regras?” ao fundo.

Luís me mostrou os campos de treinamento rapidamente, ao mesmo tempo recitando uma infinidade de regras e me fazendo repeti-las – Lobisomens com coleira não podem se transformar sem supervisão; brigas entre os alunos não são exatamente proibidas, mas a intenção de matar é terminantemente proibida e pode garantir um mês preso, etc... Se eu errava, ele enviava uma onda de choque através de meu anel de sem clã no dedo médio. Então voamos para o quarto que dividiríamos, nos arrumar para o jantar – mais porque eu ainda usava as roupas da enfermaria que qualquer outra coisa.
Era um retângulo de paredes de metal, com exceção de uma, que era um vidro fosco cheio de circuitos – uma espécie de placa solar – inteiriço. Duas camas de metal com colchões altos, um tanto maiores que camas normais de solteiro, estavam encostadas às paredes, a parte dos pés para a janela. Uma porta deslizante na parede à direita levava ao banheiro, e na parede oposta, um armário para duas pessoas, todo cinzento.  O chão, como boa parte de Fenris Fenrir, era forrado com carpete cinza-escuro, macio contra meus pés descalços.
Luís mal me deu tempo para pensar depois que a porta do quarto fechou atrás de nós; voou para o guarda-roupa, abrindo as duas repartições; numa delas, com suas seis gavetas ao lado do cabideiro e prateleiras para sapatos na região mais baixa, estavam minhas roupas: jaquetas e calças, de couro e jeans, meus tênis e coturnos e, com certeza nas gavetas, minhas camisetas. É, investiram muito tempo em mim, trazendo as minhas coisas também... Olhando rapidamente os arquivos no meu anel, encontrei tudo que eu guardava na pulseira em São Paulo. Até mesmo as organizações dos exércitos para o jogo de simulação de guerra.
O Sonnenblume jogou algumas roupas na minha direção, me fazendo cair sentado numa das camas quando me desequilibrei ao pegá-las. Luís jogou algumas roupas na outra cama e entrou no banheiro, e só então olhei bem o que ele tinha me jogado: minha calça e jaqueta de couro, mais velhas e confortáveis, pretas de um tom meio fosco, e uma camiseta azul-escuro.
Não tinham passado cinco minutos antes que o rapaz saísse do banheiro, uma toalha enrolada na cintura, o cabelo pingando e vapor seguindo-o. Ele parou e me olhou com os olhos semicerrados, como se considerasse me jogar pela janela.
- Por que ainda não começou a se arrumar?! O jantar é em vinte minutos! – o tom irritadiço da voz do Lobisomem agiu como um chute no meu traseiro: pulei da cama e voei para o banheiro, tropeçando no meio do caminho e quase despencando no carpete.


Eu e o Sonnenblume praticamente voamos pelos corredores e por uma das pontes que interligavam os prédios, antes de pegar o elevador.
Eram exatamente sete da noite quando chegamos ao salão onde as refeições eram servidas. Não diferia muito dos refeitórios do colégio em São Paulo: mesas pra todo lado, gente para todo lado, vozes, gritaria, espectros de jogos. Se o jantar já estivesse sendo servido, provavelmente teria comida voando e gente brigando por causa da tal também. Como um todo, podia ser considerado os três refeitórios juntos e mais metade de um deles. De resto... Nada muito diferente.
Espera... Sim. Além de mim, Davi e Larissa usando as coleiras, vi pelo menos mais uns seis com os anéis de prata ao redor do pescoço. Recém-transformados como eu.
E também uma briga que diferia muito, porque as duas pessoas – uma garota e um rapaz – se transformaram no meio do refeitório. A cena fez um arrepio percorrer minha espinha, enquanto a fera soltou um uivo animado, então me falando que queria ver melhor e que eu devia me aproximar. Quase sem perceber, me aproximei, me enfiando no meio do grupo que se formou para ver a briga de perto.
A garota tinha se transformado num Lobisomem esguio de patas longas, mais alto que o outro, seu corpo que mesclava características humanas e lupinas coberto de longos pelos castanhos com uma faixa negra ao longo da coluna vertebral. O rapaz já possuía maior massa corporal, embora fosse mais baixo, o corpo coberto de pelos amarelo-claro, tons mais escuros no topo da cabeça e, como a moça, ao longo da coluna. Ambos não conseguiam ficar com as costas totalmente eretas quando de pé, andando um tanto encurvados quando não estavam com as quatro patas no chão.
Aliás, as patas frontais nem pareciam tanto patas. Eram mais como mão humanas. Dava até pra eu ver os anéis de identificação de ambos, brilhantes em meio ao pelo.
Os dois se deixaram cair, apoiando-se totalmente no chão, alguns pedaços das roupas rasgadas encontrando o carpete cinza-chumbo e então começaram a rodear um ao outro, os olhos de tons de dourado – ela com um de tons de castanho-esverdeado – com um brilho quase assassino. Só quase.
Luís parou ao meu lado, os olhos brilhando de um jeito que achei que era animação.
- Ok. E agora?
- Como assim, “e agora”?
- É, ué. Quem separa a briga? – perguntei, e então o braço dele pousou em meu ombro com peso, me fazendo entortar a coluna. O Sonnenblume riu.
“SEPARAR A BRIGA?! Você REALMENTE quer impedir o momento mais excitante desde que nos transformamos de acontecer?”
A fera berrou dentro da minha cabeça, e vi estrelas com a súbita onda de dor que acompanhou sua voz.
- Enquanto eles não tentarem se matar seriamente, tanto faz... – ele limitou-se a dizer, se inclinando mais, praticamente entrando no círculo improvisado ao redor da dupla. – Só aprecie o show, Amadeus. É o meu primo contra uma Vosien! Tem ideia de como é difícil provocar os Vosien para uma luta?! Faz quase um ano desde a última vez que um deles nos deu um espetáculo! – a mão livre de repente me apertou um dos ombros, os olhos vidrados no enfrentamento que ainda ocorria. – Você tem sorte, assistir um Vosien lutando no seu primeiro dia... – ele resmungou, ainda sorrindo, antes de ficar em silêncio.
Soltei um bufo, desistindo de tentar conseguir informação e virando a cabeça para observar os dois Lobisomens.
A fêmea arreganhou os dentes numa careta feroz, os pelos no pescoço se arrepiando, fazendo-a parecer ainda maior, e então, quando o macho pensou em mostrar os próprios dentes, ela o atacou, pulando e aterrissando em cima dele, derrubando-o.
Os dois começaram a trocar golpes, rolando no chão e arrancando pedaços de carpete com as garras, assim como pele e pelo com mordidas, sangue respingando e sujando seus dentes e o chão e espectadores mais próximos com um vermelho vívido de cheiro forte.
Esse cheiro, de metal e violência, deixou a fera louca, quase literalmente falando; queria se soltar e encontrar algo para estraçalhar, algo que morder.
Ela não era a única sendo afetada; de algum jeito, apesar de eu ser humano, o cheiro e a visão de sangue estavam mexendo com meu cérebro de uma forma desconcertante. Estava começando a me sentir elétrico, cheio de energia, adrenalina correndo por minhas veias e artérias tão rápido que estava me deixando zonzo, minha visão desfocando nas laterais enquanto a vontade de correr e lutar me invadia, uma ansiedade por... por...
- Amadeus? – mãos me apertaram os ombros com força. Pisquei, acordando e percebendo que eu inclinara meu corpo na direção do ringue improvisado, e então olhei para Luís. De algum jeito, ele me pareceu preocupado, um brilho estranho em seus olhos de girassol.
- Que foi? – me endireitei conforme fazia a pergunta, sentindo minha garganta apertada, dificultando a voz de sair. Repentinamente, o brilho estranho sumiu e um sorriso que me pareceu selvagem se abriu no rosto do Sonnenblume.
- É tentador, não é? – franzi as sobrancelhas, não entendendo muito bem o que ele queria dizer. – O sangue e a violência. Parecem oferecer liberdade. Fica tentador deixar o instinto dominar. – desviou o olhar, fixando-o na luta uma vez mais. – Se deixar ser um com a fera sem reservas... – ele apertou meu ombro de novo, um pouco mais forte, e abri a boca para falar, mas ele me cortou. – É por isso que estamos aqui, Amadeus... – ele ia falar mais alguma coisa, mas uma vaia geral o cortou, e quando olhei ao redor, tentando descobrir o motivo daquilo, vi o macho de barriga no chão, as patas dianteiras torcidas para trás, a fêmea pressionando-as contra a coluna com o joelho e usando um dos antebraços para empurrar a cabeça dele contra o chão.
Um silêncio caiu sobre o refeitório, completamente inesperado para mim, todos olhando com atenção para a dupla. Uma série de rosnados alcançou meus ouvidos, e para mim, eram apenas isso.
“Ela está perguntando se ele se rende.” A fera começou, parecendo cheia de expectativas, antes de fazer silêncio, aparentemente tentando ouvir a resposta. “Ele disse não.”
O desejo de uivar da fera nesse ponto era tão forte que quase cedi. Era tentador. Muito tentador.
Isso quer dizer o quê? Mais briga pra sua diversão?
A fera meio riu meio uivou no fundo da minha mente. E então, contra todas as minhas expectativas, a fêmea se levantou, membros se contorcendo e pelos caindo conforme a carne ondulava debaixo da pele, voltando à forma humana. O macho, ainda esparramado no chão, sangrando de mordidas nos ombros e braços, também voltou à forma humana, antes da garota esguia de pele morena lhe estender a mão e ajuda-lo a se erguer.
Ela passou o braço pelo pescoço dele e o arrastou pelo refeitório, um sorriso estranho e gigante no rosto de ambos, cortes e mordidas pingando sangue pelo caminho, as roupas esfarrapadas.
Pelas expressões nos rostos dos outros Lobisomens, aquele tipo de cena era comum, rindo de leve enquanto voltavam a se espalhar pelo refeitório, lançando olhares que me passavam uma sensação de orgulho e felicidade para a dupla, sentada numa mesa não muito distante e destrinchando o que me parecia um enorme pedaço de carne crua – que eu não tinha ideia de onde surgira – com quase nenhuma dificuldade.
A cena me deu fome, e a fera resmungou em concordância.
- Não entendi... – resmunguei quando Luís começou a me arrastar, praticamente me forçando a sentar numa das mesas.
- As amizades mais fortes entre os Lobisomens costumam surgir de brigas. Alfas frequentemente escolhem seus Betas com base em brigas durante os treinamentos nas bases. Mesmo companheiros são escolhidos com base em brigas. – ele com certeza percebeu minha expressão confusa, pois suspirou e fez uma careta engraçada. – Não dá pra explicar; não é algo pra ser explicado. Você vai entender, assim que sentir o que e como é ser um Lobisomem. – com isso, ele apertou meu ombro. – Espera aqui. Vou pegar comida pra gente. – e então, com passos rápidos que me fizeram pensar num cachorro correndo atrás de um osso, ele sumiu para onde quer que pudesse pegar nossas refeições.


Luís dormia ruidosamente na outra cama, frequentemente chutando o lençol que o cobria. O ronco dele me fazia pensar numa britadeira. Tipo... Argh. Muito rítmico e muito alto.
Desisti de tentar dormir, me sentando na cama e puxando a calça de moletom para cima. Não desisti apenas por causa do ronco de meu colega de quarto, mas por realmente estar com a energia lá no alto. Nem mesmo passar todo o tempo depois do jantar revisando clãs e suas cores ajudou a queimar toda a energia acumulada;
A fera resmungando que a prata e as runas da coleira estavam deixando-o mais irritado também não ajudava. Era um meio-rosnado constante no fundo da minha cabeça, me chutando para fora do estado de quase-sono quando ele chegava.
Como eu queria estrangulá-lo com minhas próprias mãos até que ele ficasse quieto... Infelizmente, teria de me estrangular para isso.
O Sonnenblume tinha me dito que não era proibido zanzar pela base durante a madrugada, mas sim desaconselhado: nunca se sabe quando algum dos professores ou militares mais imperdoáveis te arrancaria da cama às quatro da madrugada para fazer o que quer que fosse. Ele também tinha me mostrado um pouco mais dos arredores dos dormitórios dos... Alunos? Recrutas? Enfim, ele me mostrara uma espécie de sala de estar com vista para a plataforma entre os três prédios que ficava ao nível do chão, de onde as naves decolavam e onde pousavam. Era um ambiente largo, dedicado para os raros momentos de folga onde grupos grandes demais para os quartos se reuniam, com sofás, pufes e almofadas espalhados.
O lugar também tinha marcas de brigas entre Lobisomens, mais visíveis que no refeitório – pedaços do carpete estavam faltando, as paredes tinham arranhões longos... Luís tinha dito que era consequência de juntar muitos Lobisomens com pouco tempo de transformação num mesmo ambiente. Hormônios demais, controle ainda deficiente e muitas alianças por forjar.
Nada muito diferente dos humanos nesse caso, embora eu ainda não entendesse como uma amizade podia surgir de uma briga.
Puxei o maior pufe que pude encontrar para perto do vidro cheio de circuitos sem me preocupar em acender a luz; meus olhos estavam muito mais sensíveis, e só à noite, quando as luzes se apagaram, eu realmente percebera isso.
Era estranho.
As cores estavam mais vívidas, enquanto as luzes estavam muito mais brilhantes e as sombras, mais claras.
Só assim eu entendera porque as cores tinham tanta importância na sociedade Lobisomem, em como elas influenciam nos clãs e em sua arquitetura. Lera nos livros do colégio sobre como tudo era tão bem definido, decorara as cores dos clãs que eram divulgados, mas não tinha ideia do motivo.
As cores contavam histórias e pulsavam vida, essa era verdade. Notei isso quando, depois do jantar, olhei novamente para o anel vermelho pôr do sol de Luís e quase pude ouvir um murmúrio, intensificado quando reparei em seus olhos e cabelos. O murmúrio contava da energia dos Sonnenblume, de como o clã fora o primeiro a conseguir quebrar as barreiras das noites de lua cheia, conseguindo se transformar ainda durante o pôr do sol, cada vez mais perseguindo o astro como o girassol em seus olhos. Algumas partes eu não compreendia, mas a fera completava solicitamente; naquele momento, ele ficara quase solene.
Ok, não era exatamente um murmúrio. Não existe uma forma correta de explicar como aquele “código de cores” foi traduzido por meu cérebro, mas ele contou uma história tão antiga quanto o início das raças.
Quando pergunte à Luís, ele dera um sorriso estranho antes de bagunçar meu cabelo e falar que só estava começando, que eu logo entenderia mais. A frase tinha feito um arrepio percorrer minha coluna.
Era também o motivo para tons de cinza imperarem na construção da base e, pelo que Luís dissera, nas cidades. O cinza contava de neutralidade e união, de como construções de pedra e aço tinham sido os lugares onde os Alfas entraram em acordos e evitaram guerra entre os clãs, de primeiro contato com outras raças e de conversas civilizadas com elas, evitando outras guerras. Fenris Fenrir era um lugar para se forjar alianças e paz, mesmo que fosse uma base militar.
Afundei no pufe, observando os circuitos percorrendo o vidro e que lançavam uma luz difusa em mim, antes de focar o olhar na plataforma centenas de metros abaixo. Havia algumas naves pousadas no escuro, com um espaço considerável ainda livre. Os outros dois prédios do complexo só estavam visíveis por causa dos circuitos e de luzes que acendiam e apagavam constantemente nos andares mais altos.
Olhei para o anel em meu anelar esquerdo, de um tom puro de dourado. Tinha evitado fazê-lo desde que notara como as cores falavam.
Aquela cor era difícil de entender, de interpretar. Em um determinado momento, parecera ter falado sobre um templo dourado e prateado invadido e manchado de sangue. Em outro, falara sobre algo ancestral jurando vingança. E naquele momento, falava sobre perseguir o Sol e a Lua. Era como se houvesse uma centena de coisas ligadas à ela.
Suspirei, olhando de novo para fora. Segundos depois, uma nave não muito grande estabilizou acima da plataforma e pousou lentamente. Com a distância e o escuro, só pude perceber a porta se abrir e silhuetas contra a luz interior, com o que parecia uma maca sendo levada para fora.
Esperando que não se tratasse de algo sério, voltei a atenção para o meu anel de sem clã de novo, ativando-o; a interface espectral apareceu, se espalhando pelo meu braço em tons de verde. Deslizei os dedos pelas teclas, descobrindo o que era igual e o que era diferente da pulseira de identificação que eu tinha em São Paulo.
Repentinamente, uma luz amarela piscou num canto antes de se expandir automaticamente no que me parecia uma espécie de caixa de mensagens. Entupida de mensagens de Eliana e de meus pais, Isabel e Anderson. Mensagens. Demais.
“Acho que estão preocupados com você...” havia um tom divertido na voz da fera; resmungando, comecei a abrir as mensagens mais recentes da minha família.
Eu devia ter perguntado pro Luís como entrar em contato com eles antes dele apagar... Respondi tardiamente para a fera enquanto escrevia uma mensagem única para os três, respondendo as dúvidas mais urgentes, falando que eu acordara, estava bem e que depois entrava em contato com eles, encerrando com um autêntico “Com saudades e Eliana, não fique acordada até tarde” – minha irmãzinha enviara sua última mensagem não muito tempo antes de eu descobri-las. A fera resmungou alguma coisa sobre ser impossível controlar crianças com um riso contido.
Uma vez que a mensagem estava enviada, me levantei, voltando para o quarto e determinado à dormir. De alguma forma, depois de enviar a mensagem, o sono me alcançara.

Só esperava que Luís tivesse parado de roncar...

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