Ah, Teorias... Como pode ver, aconteceu muita coisa. E não tenho ideia
de como você ainda tem tantas folhas, depois do tanto que escrevi em nove anos,
sendo você tão fino...
Mas, enfim...
Aconteceu tanta coisa, e eu descobri tanto nesse meio tempo...
Ainda me custa acreditar que matei dois seres. Independente do motivo,
matei.
E pelo que sei, matar é um pecado sem perdão. Será que, se eu morresse
agora, ainda seriam Beija-Flores do Paraíso a me indicar o caminho?
E já faz 4 meses que enterramos vovó... 4 meses em que ainda acordo de
vez em quando pensando que tenho de ligar ou escrever pra ela. Às vezes também
acordo pensando que tenho de descobrir um jeito de ajudar mamãe. E quando a
realidade me atinge, duas lágrimas escorrem. Uma por mamãe e outra por vovó.
Elas fazem uma falta...
Contratamos tia Verônica de novo. E eu vejo papai se afundar mais no
serviço, como que para esquecer que, quando chegar em casa, mamãe não vai estar
ali nem vai ter como ligar para vovó e saber como ela está. Ele as amava
demais. E provavelmente ver eu ou Devon praticando também o lembre disso, por
isso procura não ficar perto da gente.
Eshe tem me ajudado mais do que nunca – embora por conversas de vídeo
via o PC que passou por um upgrade –, agora que sei que tenho um lado Vampiro
que pode se manifestar se eu não souber me controlar. Ainda mais levando em
conta que, por dentro, meu corpo não é adaptado como o de um Vampiro – transformado/mestiço/whatever
– para absorver sangue – mas produz o vírus capaz de transformar do mesmo
jeito. Por isso, se eu me descontrolar e beber sangue, vou passar muito mal.
Isso sem considerar a parte de sair soltando raios e minhas asas se ferirem por
causa do veneno Vampírico que meu corpo produz se eu me descontrolar. Por isso
elas tinham se despedaçado.
Mas a única coisa que realmente mudou com essa de “sangue Vampiro ativo”
foram meus olhos. Continuam verde-folha, mas possuem pintas e riscos
azul-elétrico nos dois. Rashne diz que ficaram ainda mais bonitos, mas ele é
suspeito porque é meu namorado.
Não contei sobre esse lado Vampiro para Devon, Papai, Thaíze ou qualquer
outro. Só Rashne, Eshe e Despertador sabem. Para os demais, para todos os
efeitos, todas essas fortes emoções geraram uma manifestação tardia de
heterocromia – e Eshe apoiou a teoria, o que não gerou muitas perguntas, graças
à Deus.
Mas, sem dúvida alguma, algo que realmente me deixou tranquila foi saber
que Devon não me traiu.
OK, eu sabia que meu irmão jamais me trairia, mas ter certeza disso,
receber confirmação de que ele não tinha passado pro lado de Adriane me deixou
tão aliviada – pelo jeito, a Gnoma queria me deixar com a pulga atrás da orelha
e conseguiu.
E não precisei de visões.
Bastou chamar Alessa e conversar um pouco com a namorada do meu irmão.
Sentamos na varanda do meu quarto – já de volta a São Paulo, no início
de Fevereiro e das minhas aulas –, observando o céu não-estrelado e tendo a
sinfonia de buzinas, acelerações, queimações de pneus e trocas de marchas de
Sampa como companhia sonora. Lindo, não?
− Sabe, Alessa, estou até agora tentando entender como Adriane soube que
eu tinha voltado, antes que eu fosse até ela... – procurei dar a minha voz um
tom calmo e casual, embora eu estivesse só nervos por dentro.
Alessa suspirou de um jeito estranho, mudando de posição como se algo a
incomodasse demais. Até que me olhou, suspirou de novo e começou a falar.
− Adriane falou que foi o Devon, não é? – limitei-me a balançar a cabeça
afirmativamente. Minha futura cunhada suspirou de novo – De certa forma, foi
mesmo... – franzi as sobrancelhas, e ela se deixou apoiar na mureta da varanda
como se a coluna não a sustentasse mais. – Enquanto Adriane lutava com você,
Kai colocou um feitiço de alarme ao redor de Devon. Quando você voltou, o
feitiço disparou.
− E ninguém detectou o feitiço?! – explodi.
Caramba, NINGUÉM tinha detectado um MÍSERO feitiço de Alarme?!
− Nem tentamos... Achamos que Adriane tinha se livrado de você pra
sempre... Que ela não pensaria na possibilidade de você voltar... – Alessa
parecia assustada e com medo que eu a atacasse. Talvez pelo estado que Adriane
ficou. – Somente Rashne, Despertador e talvez Hadassa tinham certeza de que
você estava viva.
Naquela hora, meu queixo caiu. Todo mundo achou que eu estava
morta. Menos meu namorado. Minha Mantícora. E a garota que me convidou para ser
sua Juradora no casamento. Até mesmo Devon e Vovó acharam que eu tinha morrido.
Não é a toa que vovó foi atrás de Adriane sozinha. Ela queria vingança
por eu supostamente estar morta.
Depois daquilo, fui até Rashne, Despertador e Hadassa e os abracei com
força, agradecendo por acreditarem que eu estava viva. Eles não entenderam
muito na hora...
Então fui até Devon, Thaíze, Eshe e Sammuel e soquei seus ombros – não
com muita força – xingando-os por terem me dado como morta. Devon riu de um
jeito envergonhado antes de me abraçar pelos ombros e beijar minha testa num
pedido mudo de desculpas. Eshe e Thaíze fizeram cara de choro e me abraçaram
como se EU fosse um bichinho de pelúcia, pedindo desculpas por sua falta de fé.
E o Elfo idiota deu de ombros, falando que eu já tinha morrido uma vez, antes
de me chamar pra ver um campeonato de luta entre Elfas, que Hadassa
participaria – ela pegou 2º lugar; Sammuel ficou doido, falando que o Elfo que
presidiu as lutas – que são definidas por habilidades, e não por nocaute – estava
protegendo quem pegou o 1º lugar – coisa de marido super-protetor a reação
dele, só pode – mas foi só o Eshe dar um pedala naquela cabeça grande que ele
acalmou.
Eshe e Thaíze realmente estão namorando firme; ela até convenceu a mãe a
deixar ela ir pro Marrocos ficar com ele nas férias. Ele viria para o Brasil,
mas como o Sammuel agora vive com o clã da Hadassa lá pras bandas de Manaus, o
pai deles precisa de mais ajuda no negócio próprio, principalmente porque o
irmão caçula – Iori, e que pela foto que o Eshe mandou é uma fofura! – rouba
toda a atenção da mãe.
O futuro já tinha me assustado demais com todas essas visões e o
pergaminho de Aine que vovó guardou, mas Aine fez questão de me assustar mais
ainda.
Quando estávamos nos despedindo, ela disse que eu devia me preparar. Ser
forte. Ficar cada dia mais forte. E nunca abandonar quem
quer que seja, independente de suas ações no passado.
Aquilo me fez ter um arrepio.
Porque todo mundo me acha com cara de mártir desde que meus poderes
despertaram?
Aliás, falando no pergaminho, além de Hadassa, só o dividi com Rashne.
Até quis falar com Eshe ou com Thaíze, mas meus instintos berraram NÃO.
Ah, e uma excelente notícia em meio à tudo isso!
Contei pra Thaíze minhas desconfianças sobre o vizinho, e ela falou que
também tinha leves desconfianças. Nos unimos e PIMBA! Conseguimos provas
suficientes pra denunciar o desgraçado! Ele não perde por esperar...
Enfim, Teorias, até mais tarde! Eu e Thaíze vamos denunciar o monstro
abusador de crianças.
Afinal, sou uma Fada.
E Fadas devem ajudar quem precisa. Somos feitas pra isso.
Subi a escada
tranquilamente, assoviando aquela música do filme do Garfield que diz “I Fell
Good” ou algo assim que nunca descobri o nome, satisfeita pela polícia ter
ouvido a nossa denúncia e aceitado nossas provas sem precisarmos usar muita magia – só um toquezinho de Sereia
na fala da Thaíze – e terem nos garantido que seríamos testemunhas se o
desgraçado fosse a julgamento, independente de localizarem as crianças que
tinham sofrido com o desgraçado ou não.
Perguntaram se queríamos
sigilo de nossos nomes até lá, e negamos. Enfrentamos tanta coisa – tipo um
Djin e uma Gnoma Caçadora doida-varrida – que não é um humano pedófilo que vai
nos meter medo.
Quando abri a porta de meu
quarto, encontrei Rashne sentado na minha cama, com Teorias no colo.
Despertador, a Mantícora que supostamente deveria impedir invasões de
privacidade, estava deitada aos pés do meu baú como se nada estivesse acontecendo.
Voei para a cama – quase
literalmente, minhas asas não conseguiam bater direito num espaço tão pequeno –
tentando tirar Teorias de Rashne, mas meu namorado foi rápido o bastante para
tirá-lo do meu alcance. E, em minha ânsia por pegar meu diário/whatever, quase
que nós dois caímos da cama!
− Me devolve o Teorias! –
berrei, beliscando o braço de Rashne. Ou pensei que belisquei, porque na
verdade só peguei o tecido da blusa dele mesmo, considerando que ele não
esboçava outra reação que não fosse rir.
Ajoelhei no colchão e
cruzei os braços, fazendo careta. Rashne riu, colocando Teorias de lado e se
inclinou na minha direção, tencionando me beijar, mas virei a cara. Depois de
me zoar tanto, ele que sonhe que vai me beijar tão fácil!
Ele sorriu, como se
esperasse aquilo, antes de pegar Teorias e o abrir a esmo sobre o colo.
Reconheci os “coraçõezinhos” e as “asinhas” que eu desenhara ao redor da
página. E senti meu rosto aquecer.
Fora naquela página, antes
de Rashne me pedir em namoro, que eu enumerara cada uma de suas qualidades e
defeitos e cada uma de minhas reações quando o via... Resumindo: dizia o quão
apaixonada por ele eu estava na época e ainda não tinha percebido muito bem.
Hoje era amor. Mas porque cargas d’água ele tinha de abrir bem ali?!
− Sabe... Eu tava me
perguntando, antes de você entrar, porque guardar um caderno tão fino com as
páginas em branco debaixo do travesseiro... – ele foi passando as páginas,
olhando-as de modo... Confuso?!
Confusa agora tô eu! Ele
NÃO ESTÁ VENDO os garranchos que cobrem cada página de Teorias?!
− Você tá tirando mais uma
da minha cara, Sr. Rashne Mahtab? Teorias possui muita coisa escrita. – ergui
as sobrancelhas, e então me aconcheguei ao lado dele quando seu olhar caiu em
minha direção de modo desolado e jeito de quem não está entendendo nada. – Você
realmente não vê nada escrito aqui, Rashne? – perguntei mais dócil, tentando
entender aquilo. Ele balançou a cabeça negativamente.
Apertei os lábios diante
daquela situação. Será que ele só está fazendo uma pegadinha comigo?
Peguei uma caneta qualquer
que estava na cabeceira, risquei minha mão para ver se estava funcionando e
então escrevi numa página qualquer um coração com asas e nossos nomes dentro –
meio infantil, eu sei, mas até que ficou fofo...
Ele perguntou se a caneta
estava com defeito.
Quando falei que não, ele
franziu as sobrancelhas, ficando pensativo – e destaco que ele fica muito sexy
pensativo; fiquei morrendo de vontade de beijá-lo, mas não o fiz pra não cortar
o raciocínio – embora ele ficasse igualmente sexy quando irritado por ter o
raciocínio cortado... Ennnnfim... Ignorem meu momento “adolescente apaixonada
com hormônios à flor da pele”. Ou momento taradice, tanto faz...
− Você comprou ou ganhou
esse caderno? – ele perguntou depois de um tempo, fechando Teorias.
− Ganhei de vovó quando fiz
6 anos. – respondi, pegando Teorias e o analisando com cuidado.
Eu tinha de admitir que ele
era diferente. Tirando os últimos Dezembro e Janeiro, escrevi nele todo dia
desde que ganhei. E eu não escrevo pouco. E ele sempre tem folhas limpas! E é
da grossura de um caderno de 96 folhas grandão. Nove anos e o dito cujo ainda
tem folhas? It’s possible?
Meu caderno é normal?
− Você acha que seu caderno
pode ser um Livro Branco? – ele falou de repente após alguns minutos de
silêncio.
E aquela possibilidade foi
um baque. Com direito à acelerada estilo “Pânico” quando se vê um nome daqueles...
Será?
Toquei Anoen – eu não me
separava dele, do colar que ganhei de Rashne e nem da corrente onde todos os
meus pingentes estavam – com a ponta dos dedos, e uma memória que eu nunca
lembrei muito bem nem dei muita importância se destacou. De quando ganhei o
Teorias.
Quando apareceu com o
caderno, a capa não era aquela psicodélica e Art Nouveau e colorida. Era branca
com palavras em negro que não tentei ler. Nem conseguiria, ainda não lia bem. E
também não conhecia aquela língua.
Vovó pediu que eu pensasse
num nome. Sem hesitar, falei Teorias de Conspiração. E então Eurídice o encapou
com aquela estampa e escreveu o nome escolhido com canetão fluorescente.
Abri a capa, vendo o durex
que, em nove anos, nunca precisei trocar pra manter a capa firme – e nos meus
livros de colégio não dura nem o ano letivo...
Com cuidado, soltei-os até
ver a capa original branca.
E, na língua da Teia,
estava escrito “Livro Branco – Pertenceu: Anastásia Rune – Pertence: Stacy
Greeneyes.”
Vi o queixo de Rashne cair.
E acho que o meu também caiu.
Vovó cuidou para que não
soubessem que eu possuía um Livro Branco. Para que, para todos os efeitos, ele
não passasse de um caderno qualquer ainda não usado.
E o mais incrível: ele já
pertenceu à Anastásia, mas não tem como eu ler o que ela escreveu.
Recoloquei a capa de
Teorias. Me aconcheguei melhor a Rashne, abraçando-o e sentindo algo como
plenitude quando ele enlaçou meus ombros com um dos braços, se inclinando para
me beijar. Lembrando de novo da menina chamada Esperança. Ela tinha tanto
dele...
− Te autorizo a ler meu
Livro Branco quando bem entender. – disse, vendo-o abrir Teorias. Ele riu ao
ler meus garranchos bobos de quando tinha uns sete anos. E fechei os olhos. –
Pode ler em voz alta aquilo que for interessante? – senti o peito dele se
agitar com o riso de alguma besteira infantil.
Não sei por que, mas depois
de saber que Teorias é o Livro Branco onde escrevi minha vida e sentimentos,
quero dividir tudo que está nele com Rashne.
− Claro. – e então, ele
começou a ler aquilo que eu já escrevi de minha história, beijando-me de vez em
quando.
Eu só aproveitava a
sensação de segurança, de felicidade, de plenitude, só por ter ele ali, do meu
lado, num sábado normal em que eu só queria aproveitar ao lado do meu namorado
porque não tinha trabalhos ou tarefas ou o que quer que fosse, tanto do colégio
como de magia... E sem um doido querendo me matar.
Apenas tendo certeza que é
por causa de pequenos momentos de felicidade como esse que a vida vale à pena.
E que vovó e mamãe iriam querer que eu tivesse momentos assim: normais – embora
papai de vez em quando fizesse questão de interromper... Coisa de pai ciumento,
só pode... Devon já desistiu.
Mamãe e vovó: muito obrigada por terem existido, pois muito do que sou e
sei, devo à vocês. Estejam num lugar melhor, pois vocês merecem.
Me apertei mais contra
Rashne, sentindo seu calor, seu cheiro, ouvindo seu coração bater e sentindo
sua respiração. No mesmo ritmo do meu coração e da minha respiração.
Coloquei uma das mãos sobre
seu peito, e ele parou de ler, soltando Teorias para segurar minha mão e entrelaçar
nossos dedos. Ergui meu rosto para olhar seu rosto que iluminava minha vida e
enchia meus sonhos de beleza, felicidade e amor. Ah sim, e algumas quedas de
nuvens...
− Sempre juntos, até o Sol
e todas as estrelas se apagarem? – murmurei, olhando em seus olhos de céu de
verão que sempre me faziam voar por entre nuvens até que seu beijo chegasse e
me arrastasse de volta para o chão. E eu não sabia dizer de que lugar eu
gostava mais.
− Sempre. – ele riu de
leve. E, antes de se inclinar para me beijar, o vi reluzir e brilhar como eu
sempre via desde o episódio com os Beija-Flores. Bastava uma declaração de amor
de manhã, um beijo-surpresa ou algo assim.
E os beijos dele tinham
sabor de chocolate. E sempre me faziam ficar a meio caminho entre cair e voar,
porque ora me puxavam para o céu, ora me puxavam para abismos em que eu me
perderia e ficaria entregue ao sentimento que nos unia.
Obrigada, Todo-Poderoso,
por colocar Rashne no meu caminho.
Ah, não só ele. Mas todo
mundo que me ajudou e ainda me ajuda.
Mas principalmente ele.
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Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬