“And you keep saying
That you don't want to live like this
But then you go on like you always do
And when I listen to all the foolish things you say
I just feel the need to walk away”
“E você continua
dizendo
Que você não quer viver
assim
Mas então você continua
como você sempre faz
E quando eu ouço todas
as coisas tolas que você diz
Eu apenas sinto a
necessidade de me afastar”
(Whenever
— Nemesea)
Empurrou
a porta de madeira da estalagem, pisando na pedra cinza-grafite que revestia o
chão. O metal do salto das botas ressoou a cada passo, atraindo a atenção dos
outros frequentadores, o som de conversas e de canecas batendo na madeira
diminuindo gradativamente até parar.
Caminhou
diretamente na direção do balcão claro de goiabeira, se inclinando para apoiar
os cotovelos na superfície, quase deitando sobre a peça devido aos seus um
metro e oitenta; o corpete de couro tratado e liso em nada atrapalhou apesar da
aparente rigidez, somente o metal que protegia a região dos seios incomodando
um pouco ao pressioná-los contra as costelas. Não demorou para que o hospedeiro
caminhasse em sua direção e parasse à sua frente, secando meticulosamente um
copo de vidro; usava uma camisa cinza protegida por um avental branco com
algumas manchas de bebida e comida, era mais gordo que musculoso, e a olhava de
forma cautelosa.
—
Olá, Zhuran. — o homem deu uma pausa, olhando ao redor
como se procurasse que algum cliente o chamasse urgentemente e o impedisse de
ter de interagir com a mulher praticamente toda protegida por metal vermelho
pôr do sol — o famoso vellum. Todos permaneceram em silêncio, olhando para
dentro de seus copos e canecas, ignorando-o. —
Demorou um pouco em sua missão...
Asa
suspirou, cansada. A grossa corrente de prata pendurada em seu tronco, aliada à
sacola preenchida com roupas extras e argentumies suficientes para ela trocar
por três aurumies que recebera por pelo menos resgatar o corpo do menino
sequestrado e entregar a cabeça da Dama-da-Noite, pesavam de forma
inimaginável, e a cada segundo pareciam pesar mais. Seu corpo ainda tinha um
limite, mesmo com o duro treinamento e exercícios diários por ser uma Zhuran e
com as vantagens que seu sangue Demoníaco proporcionava.
—
Imprevistos. — franziu as sobrancelhas finas, pensando em tudo que ocorrera, especialmente
sobre Sigried. — Algum problema com o meu quarto? Ou algum recado?
—
Nenhum problema. Mantive a porta fechada e proibi meus funcionários de
entrarem, mesmo para limpar, como você instruiu. — inclinou-se e remexeu um
pouco embaixo do balcão, erguendo-se pouco depois. — Recado nenhum.
Balançou
a cabeça, satisfeita. Sabia realmente que, além de Sigried, que entrara algumas
horas atrás pela janela, mais ninguém afetara as simples barreiras de alarme
que agitariam seu espírito; perguntara para passar a impressão de que realmente
se importava: diminuía os riscos de um dia suas instruções serem desobedecidas
naquela estalagem. E recados... Bem. Ela tinha de ir para a Fortaleza depois do
que acontecera, mas a pressa em fazê-lo era inexistente.
Não
estava ansiosa para ouvir um dos infindáveis sermões de Mestre Dell. Nem para
se meter em alguma pesquisa ou qualquer coisa em que os estudiosos da ordem com
certeza a envolveriam. Só Átria, os Primeiros Reflexos e os próprios Seres do
Espelho para saberem o quanto esses estudiosos conseguiam ser insuportáveis
durante suas investigações.
—
Foi uma trezena cansativa. — endireitou-se, estralando o pescoço. — Daqui dois
dias vou partir em direção à Fortaleza. A menos que eu saia do quarto ou chame
alguém, não quero ser incomodada por esse período, por motivo algum. — procurou
dar ao seu olhar um ar duro e inquestionável; o hospedeiro estremeceu
momentaneamente.
—
Claro, claro. — ele apressou-se em dizer. Asa sentiu vontade de rir, não
sabendo se o que assustava o homem era o fato de ela ser uma Zhuran, ou ser uma
descendente tão recente de Demônios, como as pupilas brancas declaravam. Se
fosse devido à segunda opção, ela realmente estranharia, considerando o fato de
Vidro ter prestado culto aos Seres do Espelho alguns milênios antes, como Riuma
e Szan ainda faziam, se misturando inclusive com os Demônios. Ela apostava que
o hospedeiro tinha algum antepassado Demônio em sua genealogia; a maioria dos vidrenses
tinha.
—
Obrigada.
E
subiu a escada que se apoiava na parede ao lado do balcão, estralando os ombros
e o pescoço enquanto andava, um alívio momentâneo se espalhando por seus
músculos.
Antes,
Asa achava que exigir suítes — muito mais caras por serem totalmente diferentes
da cultura geral do reino — nas estalagens onde parava era um comportamento
idiota que ela tinha, resquícios de seus primeiros seis anos em Riuma e das
mordomias da Fortaleza, mas naquele momento, quando viu Sigried na forma que
ela vira crescer no Espelho, sentado na cama, agradeceu aos Primeiros Reflexos
por sua mania. Seria complicado levá-lo até as salas de banho, tendo de
explicar a coleira em seu pescoço e correndo o risco de que, o que quer que acontecesse,
chegasse aos ouvidos de algum outro membro da Ordem — como o responsável por
Linuan, que lhe entregara a missão e a recompensa e perguntara mil vezes onde
Sigried estava. Teria o triplo de problemas, se não mais.
Ela
conseguira improvisar algo que escondesse o corpo magro e delineado por
músculos com a capa que usara para se cobrir nas noites frias durante a
perseguição à Dama-da-Noite e encontrara um lago dentro do próprio templo que
livrou-o do grosso do sangue, mas não pudera fazer nada pelo cabelo e pela
barba, não sem sabão e muito menos sem como desembaraçá-los.
Ao
menos, ela não precisava se preocupar que os ferimentos que a habitante do
Espelho provocara infeccionassem, nem que voltassem a sangrar, muito menos com
os ossos quebrados: a habilidade sobrenatural de cura e resistência dos
Lobisomens era absurda até mesmo para ela, apesar dos séculos que a “infecção”
era transmitida somente pelo sangue de Lobisomens aos humanos que possuíam
reflexo; teria tido problemas apenas se ele houvesse sido ferido com prata ou
por um Lobo de Ferro.
Ainda
assim, apesar dessa aptidão, no começo ela via lágrimas de dor nos olhos de Sigried;
pelo sangue que ele tossia nas primeiras horas, Asa soube que pelo menos uma
costela tinha quebrado e perfurado um dos pulmões. Só imaginar o quanto devia
ter doido sentir a costela voltando ao lugar e saindo do órgão fez a Zhuran
sentir tontura.
Não
era à toa que ele uivara: pelo que se lembrava, ele nunca havia perfurado o
pulmão.
E,
mesmo assim, eram problemas a menos, o que fazia o seu cérebro agradecer, mesmo
tendo se atrasado por ter de esperar os ossos voltarem ao lugar e começarem a
se colar — algo que durou em torno de dois dias.
—
Tome. — jogou as roupas extras que comprara na direção de Sigried, então
deixando as próprias coisas em cima da cama. — Tome um bom banho. — fitou os
olhos azuis-claros de um tom de gelo, notando o Lobisomem se mexer, incomodado
com a total atenção repentina. — Depois vou fazer a sua barba e cortar o seu
cabelo.
Asa
olhou de novo para a cama, tirando a corrente de seu corpo e deixando-a cair
pesadamente no chão, sentindo as costas e o ombro agradecerem imediatamente.
Quando percebeu que Sigried ainda estava sentado, olhando-a por entre as mechas
negras, girou os olhos com enfado.
—
O que está esperando?
Bastou
indagar para o rapaz se levantar e andar na direção do banheiro anexo, levando
as roupas entregues, o passo leve e um tanto ausente, como se ainda não
entendesse onde estava ou não sentisse direito o chão abaixo de seus pés, como
tinha sido desde que a fera fora para o Espelho.
Asa
— e qualquer um que pudesse caminhar pelo Espelho por algum tempo — entendia
muito bem o que ele passava.
Aqueles
que escapavam com vida do Espelho ficavam um tempo aproximado daquele que
passaram na dimensão com a sensação de surrealidade que tinham no lugar
entorpecendo-os de modo estranho: o cérebro parecia não aceitar totalmente os
estímulos recebidos e, embora decifrasse todos corretamente, parecia não
acreditar.
Considerando
que o corpo humano de Sigried passara em torno de dez anos no Espelho, levaria
algo próximo desse tempo para seus neurônios acreditarem que ele estava — novamente
— no mundo físico, em Rosean. Em teoria. Ela não sabia de ninguém que passara
mais de um mês lá e retornara vivo. Teria de esperar para ver.
Asa
suspirou — talvez pela vigésima vez no dia — com aquelas conclusões. Era um estado
perigoso. Dor, frio, calor, pressão e todo o mais que provocasse alguma
sensação praticamente inexistia, ignorado. Por causa disso, Zhurans que
entravam no Espelho eram praticamente obrigados a permanecerem quietos e longe
de perigo quando voltavam pelo período de tempo que tinham caminhado na
dimensão. Descumprir isso podia provocar que esses morressem e praticamente não
sentirem. Torceu para que Sigried não ficasse daquele jeito por dez anos. Os
dois ficariam loucos.
A
mulher afastou os pensamentos pessimistas e, em certa medida, realistas, e
puxou com o pé a alça da mochila encantada que guardara debaixo da cama, usando
seu fraco controle mental para erguê-la e colocá-la em cima do colchão.
Abriu
o objeto e vasculhou o interior, até encontrar uma afiada faca de oricalco, bem
cuidada e numa bainha de couro gasta. Puxou um pedaço de pano velho e
desembainhou a lâmina, testando o fio no tecido; sorriu satisfeita quando a
arma deslizou facilmente como se cortasse papel, dividindo o pano em dois.
Voltou a encaixar a lâmina na bainha e guardou um dos pedaços de tecido na mochila.
Respirando
fundo, a Zhuran fez um coque com as tranças, antes de começar a soltar as
correias das manoplas e dos guarda-braços e as correntes que prendiam as
ombreiras ao corpete e ao peitoral, deixando as peças de metal em cima da cama.
Alongou
os braços; o alívio por sentir o peso fora de seus membros era indescritível.
Pretendia
retirar o cinturão com os coldres das armas, o peitoral e o corpete, quando o
rangido da porta do banheiro se abrindo atraiu sua atenção; virou somente o
tronco, vendo Sigried atravessar o batente, usando somente as calças que ela
jogara-lhe, algumas gotas de água escorrendo pelo torso marcado de cicatrizes e
fios do líquido escorrendo do cabelo e da barba, que ele parecia ter
desembaraçado — provavelmente com o pente que as suítes costumavam ter —, a
coleira de prata marcada com runas pendendo folgada em seu pescoço de homem.
Asa
franziu as sobrancelhas, acompanhando com os olhos o caminho que ele fez até a
cama, onde deixou a camiseta e a capa, antes de virar-se e fixar os olhos
claros nela do mesmo jeito que o Lobo fazia quando esperava alguma ordem que
parecia não vir: uma mescla de ansiedade, medo, rebeldia, e vontade de fugir e
de matar.
—
Já? — a voz dela ecoou, as sobrancelhas se erguendo.
O
Lobisomem deu de ombros, ainda se recusando a falar; Asa desconfiava que ele
ainda não estava certo de que lembrava como falar e que talvez recordasse muito
pouco dos anos transformado; enquanto tinham esperado os ossos dele se curarem,
ela procurara explicar quem ela era e o que acontecera, mas dez anos de
história não podiam ser resumidos em poucos dias. Zhurans nunca tinha lidado
com um Lobisomem que voltara à forma humana, embora rumores dissessem que os
Magos do Protetorado do Açougueiro já; ela estava totalmente no escuro a como
agir.
—
Venha aqui. — um banco se arrastou até a frente dela com o empurrão de energia
espiritual. A mulher acompanhou, com o olhar, Sigried atravessar o quarto até o
objeto.
O
Lobisomem sentou-se no banco, com as costas retas e parecendo sentir uma
mistura de tensão e relaxamento, como se estivesse preparado para sair correndo
ou atacar ao menor sinal de perigo. Asa tirou a faca da bainha e pegou um
punhado do cabelo preto do rapaz, a lâmina de oricalco cortando facilmente os
fios. Mechas e mais mechas negras caíram e forraram o chão, até que o cabelo
estava todo cortado mais ou menos na altura do queixo, com exceção das mais
frontais, cortadas na altura das sobrancelhas. Agora, ela podia ver que ser um
Lobisomem tinha garantido-lhe orelhas pontudas como as de um Demônio — orelhas
que ela não herdara.
Pegou
um punhado do sabão líquido na pia do banheiro, passando-o na base da barba até
gerar uma quantidade razoável de espuma; ajoelhou-se para fica na altura dele,
e pegou a faca novamente.
—
Fique parado. — avisou, deslizando o fio de corte suavemente pela bochecha
direita até quase alcançar o queixo, limpando a lâmina no tecido cortado mais
cedo. Girou o punho da faca, invertendo o lado do fio, e então o passou do lado
esquerdo do rosto. Ergueu-lhe o rosto com um dedo no queixo, expondo a
garganta. — Não engula nem respire. — quando deixou de ouvir a respiração de
Sigried, a lâmina passeou rente pela pele.
Ver
e fazer aquilo fez Asa lembrar-se de sua infância em Riuma, vendo sua mãe fazer
a barba do pai usando uma navalha de prata, nos Dias do Luto, antes da família
ir aos templos do Espelho. A lembrança agridoce a fez engolir em seco.
—
Pronto. Pode relaxar. — finalizou a barba, a pele morena ligeiramente
avermelhada e irritada, mas sem nenhum corte. Asa ergueu-se, terminando de
limpar a faca e guardando-a na bainha. — Lave o rosto com cuidado; a pele ainda
está sensível.
Ela
avisou, antes de se virar para suas coisas e continuar a retirar a armadura.
Ouviu o som de água correndo enquanto soltava os elos de corrente que fechavam
o corpete à frente do corpo, depois de tirar o peitoral. Tinha acabado de jogar
a peça na cama quando ouviu seu nome numa voz grossa, não de forma totalmente
natural, mas como se fosse resultado de anos de falta de uso. Foi instintivo
sua cabeça de forma lenta e calculada virar para ver quem tinha chamado seu
nome, mesmo só existindo uma opção, ao invés de apenas responder.
O
Lobisomem estava logo atrás dela, a cinco passos de distância, os braços
cruzados, parado, levemente encurvado, como se todo o tempo transformado o
tivesse desacostumado a andar com a coluna ereta. O rosto carregava uma
expressão estranha, como se não estivesse certo de que devia ter feito o que
fez.
—
Sigried? — sua voz, naquele momento instintivamente baixa, ecoou meio
assustada, as pupilas claras rodeadas do cinza-negro se fixando nos olhos azuis
claros. Sentiu um arrepio subir por sua coluna com a intensidade do olhar que o
rapaz lhe dirigia.
Aquele
olhar... Era igual à primeira vez que ela o vira, com dez anos, a primeira vez
que encarou aquele azul-claro gélido, quase inumano.
Pura
loucura.
Ensandecimento
provocado por dor e pelo despedaçamento de tudo o que se conhece.
Ela
lembrava muito bem que pouco depois ele quase lhe arrancara a perna direita
acima dos joelhos — a cicatriz gigantesca, esbranquiçada contra a pele negra,
acenava para ela toda vez que se despia, marcando onde um dia existira carne
destroçada e sangue jorrando aos borbotões. Asa lembrava também de como seu
coração martelara contra seus ouvidos naquele dia, quando ela pode sentir os
dedos ferventes da gangrena e da morte tocarem o tornozelo direito, subindo
lentamente, e do sentimento que preenchera seu espírito.
Medo.
Aquele medo puro e selvagem, capaz de aguçar os sentidos e de te preparar para
despedaçar o braço de alguém se isso significar viver. No caso, tinha lhe
permitido se manter presa às costas do Lobisomem, segurando as patas dianteiras
contra o peito e a corrente que mantinha a boca fechada, enquanto esperava
socorro dos Zhurans responsáveis por ela.
Por
cinco segundos, enquanto aquele olhar enlouquecido se fixou nela, Asa pode
sentir esse mesmo medo lentamente abrindo caminho, cortando devagar, de dentro
para fora, primeiro um dedo, depois mais um e mais outro. Por cinco segundos,
seu corpo estava preparado para reagir ao menor sinal de ameaça para puxar a
arma de energia espiritual e atirar o mais rápido que ela era capaz.
E
então, Sigried baixou o olhar para as mechas negras caídas na madeira polida.
Foi como se nuvens de tempestade tivessem se afastado, levadas pelo vento,
deixando apenas o sol e um céu claro para trás.
—
Quer que eu limpe? — piscou, surpresa. Imaginava que ele quisesse sentar na
janela, sentindo o vento bater contra a pele e o calor do sol o aquecendo. Era
o que ela gostava quando voltava do Espelho. Despertava uma emoção semelhante a
alívio.
—
Por que quer limpar? — ela revidou com outra pergunta. Sigried deu de ombros.
—
Você precisa tomar um bom banho. — ela percebeu um leve franzir da pele ao
redor das narinas do rapaz; teve vontade de rir: não era necessário um olfato
sobrenatural para deduzir que ela precisava entrar debaixo da água. — Além
disso, você mal dormiu nessa última trezena, e a corrente e a armadura não são
leves. Você precisa descansar.
Asa
trocou de pé, desconfortável com a preocupação exibida da parte dele. Com exceção
das raras situações em que realizava alguma missão com Mestre Dell ou algum
Zhuran de patente maior — ou seja, mais velho —, ninguém estava ao lado dela falando
que precisava descansar.
A
mulher inclinou a cabeça, olhando-o de forma intrigada.
—
Por que de repente resolveu falar tanto? E por que tanta preocupação?
O
Lobisomem deu de ombros novamente.
—
Você, querendo ou não, cuidou de mim nos últimos dez anos, como me contou nos
últimos treze dias... Agora posso retribuir. — Asa piscou quando achou ter
visto um levíssimo alongamento dos lábios, que sumiu tão rápido quanto
apareceu.
Suspirou,
derrotada. Afinal, ele tinha razão: ela mal tinha dormido e a corrente e a armadura
não eram leves.
Resolveu
deixá-lo “vencer”. Mas só até dormir por doze horas seguidas e encontrar o
bordel com Senhores-Salgueiros mais próximo.
Sigried
observou a Zhuran tirar as grevas, os coxotes e as botas antes de pegar uma muda
de roupas na mochila e se fechar no banheiro, os olhos azuis-claros seguindo os
movimentos rápidos e econômicos, do jeito que alguém que crescera treinando
para ser tecnicamente uma máquina rápida de matar se moveria, apesar do
cansaço.
Contou
lentamente até dez depois que a porta se fechou. Mesmo depois de dez anos, ela
pouco mudara em seus hábitos: aquele era o tempo que ela levava para se despir
e entrar debaixo do chuveiro. No instante em que chegou ao dez, seus ouvidos
captaram o som da água caindo, e suspirou aliviado, recolhendo os fios de
cabelo caídos no chão, colocando-os no pano que ela usara para limpar seu rosto;
ao final, enrolou o tecido e jogou no lixo ao lado da porta.
Começou
a mexer as mãos inquietamente, parando em frente à janela, os olhos deslizando
primeiro pelas casas mais baixas e ruas que se entrecruzavam e então alcançando
o início da grama verdejante até certo ponto, se tornando amarelada
gradativamente, até, no ponto mais longínquo do horizonte, começar a ser
substituída por terra, sem nenhuma muralha de pedra que as outras cidades do
reino possuíam.
Aquela
grama marcava o início das Planícies Vazias, não totalmente exploradas depois
que surgiram, cheias de vestígios do tempo em que Vidro adorara os seres do
Espelho e antes — exceto, é claro, as cerulines. Na região em que a grama
começava a perder a vida, por vezes pequenos reflexos surgiam, como se a luz
batesse em lascas de vidro e espelho.
Aquela
era a barreira que protegia Linuan. Era aquela barreira, que existia desde que
as primeiras fundações da cidade mineira tinham sido feitas, que impedia que os
habitantes do Espelho com más-intenções adentrassem, independentemente de em
qual dimensão estivessem. Ele lamentava que o menino que rastreara tivesse
ultrapassado a barreira, mesmo sabendo que não devia tê-lo feito, mas logo
procurou limpar a mente, não culpando o garoto; fazia o mesmo antes de se tornar
um Lobisomem e entendia a sensação de liberdade que vinha acompanhada do ato.
Sigried
preferia deixar seus olhos se perderem para lá das Planícies, na direção de
onde tinham chegado, a pensar no garoto, no que sua nova condição provocava ou
na sensação de irrealidade que o rodeava. Sua mente logo seguiu seus olhos,
dando voltas e voltas pela terra nua e avermelhada, alcançando os pontos mais
secos, em que a terra era tão compactada que parecia pedra, e indo além em sua
mente, para lá de onde pedra e terra se misturavam e onde o templo em que sua
atual condição fora permitida se encontrava.
Pronto.
Bastou
pensar no templo para que seus olhos se desviassem das Planícies para suas
mãos, apoiadas no batente da janela, a mente chegando segundos depois.
Ergueu
a mão direita à frente do rosto, flexionando os dedos finos, com unhas um pouco
compridas, pouco pelo, algumas marcas amareladas, quase douradas, contra a pele
morena, percorrendo-os como raios, e tão, tão humanos. A outra mão logo também
estava diante de seu rosto, sem os raios amarelados, mas ainda assim, humana
demais. Estendeu-as, analisando o conjunto que faziam com os pulsos, os
antebraços e os braços.
Pele
morena, músculos delgados, ossos finos, cicatrizes claras de batalha, mas mais
escuras que as marcas de raios que o cobriam do cotovelo para baixo no braço
direito. Não apenas os membros dianteiros, mas o corpo inteiro.
Ele
parecia tão frágil, tão exposto, tão fraco, quando comparado com a besta que tinha sido por dez
anos. Mas ainda assim, sabia que era apenas aparentemente.
Naquela
trezena, quando estavam rumo à Linuan, viu os ferimentos da luta contra a
Dama-da-Noite se fecharem na mesma velocidade de quando transformado, e antes
de começarem a viagem, sentira os ossos quebrados voltarem aos seus lugares e
se colarem, e respirar ficara mais fácil quando o pulmão perfurado se
reconstituíra. O veneno mortífero de um dos minúsculos escorpiões que habitavam
as Planícies não fizera mais do que cócegas nele. Esmagar o crânio de uma gárgula
continuava tão fácil quanto pisar numa barata.
Por
vezes, sentia a fera à espreita num canto de sua mente. Mais fraca do que
quando sua forma era a da besta, mas ainda assim, sussurrando, influenciando
discretamente. Desde que assumira a forma humana. E minutos atrás ele quase
perdera a batalha e atacara Asa — agora seria tão mais fácil, mesmo com a
coleira... Naquele instante, ela estava com a guarda baixa, e não importava que
logo depois ela estavisse tão atenta como quando era a besta que dominava,
ainda assim seria fácil. E foi quando
notou que a fera quase assumira o controle, e abençoou o instinto aguçado da
mulher.
Ele
continuava um Lobisomem, mas na pele de um humano, a parte louca e selvagem de
ser do Espelho um pouco mais fraca que a parte racional de um nascido no mundo
Físico, ao invés de levemente mais forte, como antes. Era, de certa forma,
irritante: ficara tanto tempo na forma quadrúpede, desejando a forma que andava
sobre duas pernas que ele via cada vez que encarava o próprio reflexo, e agora
não conseguia se acostumar de novo com a forma diferenciada que aquele corpo
tinha de se mover; além disso, não esperava ter de estar atento a besta que o
rondava à cada segundo em sua mente. Teria de ter o triplo de cuidado e
vigilância; na forma lupina, era mais fácil mantê-la controlada, mesmo que
fosse mais forte. Aparentemente, o enfraquecimento
a deixara mais rebelde.
Bufou,
cruzando os braços, irritado consigo mesmo. Pelo menos era capaz de falar, embora
fosse estranho voltar a fazê-lo, com sua garganta ansiando por transformar as
palavras que ele tentava dizer nos rosnados e uivos que ele não se permitira
soltar quando na forma de fera.
Olhou
de novo para além da barreira de Linuan. Asa acreditava que ele não se lembrava
dos últimos dez anos. De certa forma, ele queria não lembrar de certas coisas:
da dor da transformação que quase o matara, que sua primeira vítima fora um
jovem de sua cidade com quem ele e seu irmão brincavam na infância, do sabor
doce e férrico do sangue daquele humano, de que quase arrancara a perna da
Zhuran, o cheiro de medo que a cobrira naquela vez, da dor que a Hrinma e a
Sripati tinham causado ao unir o seu espírito e o de Asa... E tanto mais.
Por
alguns segundos, se passou em sua mente a ideia de dizer-lhe que lembrava de
tudo desde sua transformação, mas empurrou-a de lado pelo medo do que Asa faria.
Por enquanto, ela tinha agido de forma apenas ligeiramente mais gentil ao que
costumava— mas ainda como se ele continuasse sendo a besta agora no Espelho, o
que, de certa forma, era verdade —, pensando em fazer o caminho mais longo
possível rumo à Fortaleza. Se ela descobrisse que ele lembrava, podia mudar os
planos e usar o caminho mais curto, pretendendo entregá-lo aos estudiosos Zhurans
o mais cedo possível.
Ele
não queria aquilo.
Precisava
de mais tempo para entender sua nova situação, no que ela implicaria dali por
diante em sua convivência com Asa... E descobrir o que exatamente acontecera
com a mulher três anos atrás. Não sabia se sua condição era passageira ou
permanente, mas a aproveitaria para resolver esse mistério que vinha
atormentando-o.
A
terceira lua, Átria, brilhava cheia, a maior das três, avermelhada como vellum,
com anéis da mesma cor rodeando-a. Uma fatia da segunda, Asmara, estava à
vista, com seu discreto brilho verde, e não existiam rastros da primeira,
Fedra, a menor de todas de tons de azul. Sigried viu um sorriso esticar os
lábios da Zhuran que estava parada diante da janela. Ela virou-se, se
espreguiçando enquanto caminhava em direção à porta.
—
Vou sair. Provavelmente demoro, mas ainda assim... Quer alguma coisa? — ela perguntou,
a mão na maçaneta.
O
Lobisomem pensou um pouco. Na hora do almoço, mais cedo, ela tinha trazido comida
da cozinha da estalagem. Uma carne cozida que ele não identificou e que caíra
como pedra em seu estômago, além de ter gosto de serragem. Estava claro: ou era
influência do tempo que seu corpo passara no Espelho, como ela lhe explicara
mais cedo, prevenindo-o para tomar cuidado, ou sua fisiologia tinha se alterado
totalmente por ser um Lobisomem, o que parecia mais provável.
—
Vamos tentar carne de Javali. O mais crua possível. — enrugou o nariz,
lembrando que, de todos os animais que tinha devorado nos últimos dez anos, a
carne levemente adocicada de javali era a que mais o agradara.
—
Imaginei. — ela disse, um sorriso maior se abrindo em seus lábios, antes de
sair do quarto.
Contou
até vinte, andando lentamente até a janela, amarrando a capa que Asa lhe comprara
sobre os ombros e observando a noite que cobria Linuan. Inclinou-se, analisando
a rua e as janelas das casas ao redor da estalagem.
Quando
chegou em vinte, apoiou todo o peso nos braços e impulsionou as pernas, saltando
através da janela num único movimento, fluído e leve, girando e caindo com as
mãos sustentando seu peso contra a pedra úmida e coberta de limo e musgos.
Uma
expressão de certa surpresa passou por seu rosto quando conseguiu realizar o movimento
sem provocar um acidente, considerando que ainda estava se acostumando ao corpo
humano e que fazia uma trezena desde que quebrara pelo menos três costelas e a
ulna direita. E sem comentários sobre como tudo ainda parecia irreal aos seus
sentidos.
Endireitou-se,
colocando o capuz e ajeitando a capa para esconder a coleira, as orelhas
pontudas, as marcas no antebraço direito e as demais cicatrizes que o cobriam,
começando a andar num passo silencioso e rápido.
Apesar
de tudo, ele devia agradecer por aquele corpo. Era mais fácil passar despercebido
no meio de uma cidade, sem precisar se aproveitar de cada sombra e fresta,
embora ele ainda tivesse um pouco de dificuldade para coordenar perfeitamente
seus movimentos e andar de forma tão silenciosa e rápida como fazia em sua
forma anterior.
Alcançou
a rua principal e a entrada da Estalagem, onde o cheiro de girassol, areia
quente e mel da Zhuran ainda pairava. Parou por um instante, pensativo, notando
que a queimação em seu antebraço direito aumentava lentamente, não de forma a
doer, mas apenas um incômodo leve, fácil de ser ignorado, indicando que ela se
afastava dele num passo lenta. Ela perceberia que ele a estava seguindo, como
sempre fizera cada vez que saía nos últimos dez anos, quando a sensação das
marcas permanecesse constante ao invés de aumentar. Provavelmente, continuaria
sem condená-lo por isso, ciente da dor que a distância provocava, embora talvez
desconfiasse.
Perguntou-se
se, agora estando ele numa forma humana, isso a impediria de fazer o que
costumava fazer nas noites que passava em cidades nos últimos três anos, mas
duvidou. Ela nunca parecera ligar de fato que ele a seguisse.
Suspirou,
começando a seguir o cheiro da Zhuran, embora soubesse que ela costumasse frequentar
o Reflexo da Terra quando em Linuan. Era o hábito que o levava a sair do
quarto, seguir o cheiro de Asa e vigiar se tudo permaneceria bem.
Sigried
viu, de seu lugar no topo da árvore que ocupava a viela lateral ao Reflexo da
Terra, quando Asa passou na frente da janela escancarada e se acomodou num sofá
de dois lugares ao lado de um Senhor-Salgueiro, que começou a paparicá-la quase
imediatamente. Com uma garrafa de dois litros de rum na mão que tinha apenas um
quarto da bebida, ela ria de modo estranho. O ser ao lado dela também ria, mas
estava claramente mais sóbrio, apesar das duas garrafas de dois litros vazias
aos seus pés e ainda segurasse uma terceira.
Por
um instante, o Lobisomem se perguntou se sua natureza mista lhe daria uma resistência
ao álcool similar à dos demais seres do Espelho, talvez até maior que a de Asa;
notou a besta no canto de sua mente se animar com o pensamento, e cortou o
álcool de sua vida: não se arriscaria a baixar a guarda para que a fera o
controlasse.
A
dupla riu mais um pouco, o ar parado auxiliando ao cheiro de ressaca, álcool,
alucinógenos, doença e sexo a alcançá-lo, dando-lhe náuseas; o odor era forte,
especialmente para seu nariz sensível. Além da vontade de vomitar, sentiu sua
mão se contrair involuntariamente, os dedos abrindo fendas na casca do
carvalho, quando o habitante do Espelho começou a beijar a Zhuran, que
correspondia enquanto deslizava as mãos por ele. Viu ainda os dois se
levantarem e então sumirem para o interior do bordel.
O
Lobisomem não percebeu sua... Irritação, até olhar para as próprias mãos: uma
estava coberta com a seiva da planta, os dedos tão fundos no interior do caule
que ele teve alguma dificuldade para conseguir tirá-los, e a outra estava
fechada em punho tão fortemente que, quando desdobrou os dedos, viu pequenos
rubis escorrendo dos cortes que as unhas tinham deixado na pele.
Ela
não percebia que aquilo estava destruindo-a por dentro? O sangue Demoníaco não
tornava-a imortal, nem imune à todas as doenças. Resistente, sim, mas não imune.
O
cheiro dela vinha se alterando lentamente, conforme o álcool corroía seu fígado
e as substâncias alucinógenas exaladas pelos Seres do Espelho alteravam e
destruíam as células nervosas. Ele podia dizer isso somente pelo cheiro.
Aquelas substâncias matavam um humano normal em três meses, caso seguisse o
ritmo de Asa. Ela só estava viva por causa do sangue não-humano.
E
o pior é que ele tinha a resposta: sim, ela sabia que estava sendo destruída
por dentro. E ainda assim, não parava.
A admiração que ele alimentava pela Zhuran,
por tudo que a vira suportar e sobreviver durante o treinamento, o impedia de
aceitar a forma como ela se matava de forma lenta e consciente, quase como se
quisesse isso.
Desde
a ascensão dos Alzú’Frigl, Sigried tentara entender o que fizera Asa alterar em
tanto sua forma de ser. Mesmo tendo estado ao seu lado quase todas as horas do
dia dos últimos dez anos, ele pouco sabia de seu passado. Conhecia-a como
ninguém, mas apenas a partir de quando ela o capturara.
Sabia
que ela nascera em Riuma, e que o avô era um Demônio. Sabia que seus pais tinham
morrido quando ela tinha seis anos, assim como praticamente toda a sua família.
Mas só.
Ninguém
nunca falara mais que aquilo quando ele estava por perto, e ele não sabia
quantos nem quais de seus parentes ainda eram vivos, e algo cutucava seu
cérebro dizendo que a resposta estava ali, no passado desconhecido.
Com
o olhar preenchido de decepção e raiva e os lábios franzidos numa linha fina de
angústia, desceu pelos galhos e começou a voltar a passos lentos para a
Estalagem. Suas marcas começaram a queimar conforme se afastava, e a besta, a
pressionar as barras que a mantinham no lugar, ciente de ele ficava mais
vulnerável quanto mais distante de Asa.
Doía
e ardia terrivelmente, quase fazendo-o voltar só para parar com aquilo, mas a
fúria de ver a Zhuran se destruir o fez continuar a se afastar com determinação
e teimosia de uma forma que não lembrava de ter feito antes.
Buscou
na memória como fazia para ignorar aquela sensação que o fazia querer arrancar
o braço fora a base de mordidas — sempre que ela adentrava o Espelho, a dor
chegava ao máximo para seus padrões, como se estivessem em cantos opostos do
continente. Devagar, foi colocando tijolos de outros pensamentos ao redor da
mensagem de dor: listou os pontos fracos dos seres que ele enfrentara e ainda
enfrentava, lembranças do treinamento... Tudo que não envolvesse dor.
Concentrou-se nesses tijolos e revestiu-os com as sensações de visão, som e cheiro
ao seu redor, trincando os dentes com o esforço de se manter concentrado em
tudo isso, enquanto enfrentava a besta e fortalecia a cadeia que a mantinha no
lugar; com a mente dividida nesses dois assuntos, seu corpo, quase
inconscientemente, guiava seus passos pela cidade até a estalagem.
Mal
acreditou quando percebeu que estava na mesma rua onde aterrissara mais cedo,
debaixo da janela do quarto de Asa.
Respirando
fundo, tomando cuidado para que a parede que o protegia do pior da dor não
desmoronasse e para a gaiola da fera não ceder, olhou ao redor rapidamente
antes de pegar impulso e saltar, suas mãos alcançando o batente e
sustentando-o. Apoiou os pés na parede e içou-se para dentro do cômodo, parando
no interior escuro, iluminado apenas pela luz exterior.
Com
o antebraço queimando de forma suportável graças ao muro, olhou para fora, a
barreira lançando brilhos e reflexos mais frequentemente, parecendo quase
sólida na noite, o luar de Átria batendo no encanto e parecendo escorrer como
vellum líquido pela superfície, tornando as Planícies nebulosas como que vistas
através de um véu fino de algodão tingido de vermelho.
Respirou
fundo, esfregando as marcas, e então se encolheu no canto onde o lençol, o
travesseiro e o cobertor que a Zhuran lhe dera estavam cuidadosamente
esticados. Do lugar, ele conseguia tanto ver a porta como o céu lá fora.
Concentrou os olhos nas duas luas visíveis, a parte da mente que estava livre
da dor e da besta girando e girando, tentando pensar em como fazer Asa parar de
se destruir.
Asa
entrou no quarto e fechou a porta atrás de si com cuidado para a peça não
ranger. Confirmou a presença de Sigried no cômodo, encolhido no canto onde
tinha dormido nos dois últimos dias, a luz suave do amanhecer entrando pela
janela e iluminando os cabelos negros.
A
cabeça dele se ergueu de repente. Os olhos estavam injetados, o vermelho do
sangue rodeando o azul, uma joia de vellum com uma safira muito clara e
transparente incrustada. O braço direito estava caído ao lado dele como um peso
morto, como que para impedir-se de fazer alguma loucura.
A
pele ao redor das narinas se enrugou, e aboca se torceu num esgar de nojo. No
instante seguinte, ele ficou de pé e virou o rosto para a janela, a coleira em
seu pescoço balançando com os movimentos.
—
O que foi? — a mulher perguntou, as sobrancelhas franzidas acima dos olhos escuros.
—
Não existe salão de banho naquele bordel?! Pelas três luas, você tá fedendo
mais que uma mina de oricalco!
Asa
cruzou os braços, consciente do quão insultada tinha sido enquanto franzia as sobrancelhas.
Ela não podia estar cheirando pior que a mistura de urina, fezes e decomposição
com altas porções de enxofre que era o cheiro característico das minas de
oricalco.
—
Exagerado… — limitou-se a falar, agradecendo mentalmente o fato de estar desarmada
ou teria respondido o insulto com violência.
Sigried
virou o rosto para Asa, e ela identificou um olhar de maníaca certeza do que dizia
no azul-claro.
—
Você tá cheirando a tanto alucinógeno diferente que dá pra saber que dormiu com
no mínimo três Senhores de espécies diferentes. E bebeu tanto que parece um bar
ambulante... E também parece que acabou de sair da emergência de um hospital,
de tanto cheiro de infeção e mais um monte de doenças. Espero que seja só o
cheiro, e a doença tenha ficado lá... — Asa piscou, sentindo o queixo afrouxar.
— Quer o meu olfato emprestado?
Por
alguns segundos, ela observou a expressão maníaca e de nojo no rosto de Sigried,
antes de fechar a boca com um estalo e balançar a cabeça em negativa.
Aquela
reação explicava porque, quando na forma de Lobisomem, ele ficava tão inquieto
e agitado quando ela voltava de suas noitadas. Tantos cheiros diferentes e
fortes numa única pessoa... Anotou mentalmente para sempre tomar um banho bem
demorado e para praticamente arrancar a pele de tanto esfregar antes de sair dos
bordeis que frequentava, para evitar ouvir que fedia mais que uma mina de
oricalco de novo.
Com
um suspiro, endireitou a postura e tirou a sacola de couro do ombro, jogando-a
para o rapaz, que a pegou sem dificuldade.
—
É a carne de Javali... Comprei agora de manhã, então ainda tá fresca... — olhou
ao redor, pensativa. — Me espere fora da cidade, perto da saída leste. Te
encontro em uma hora. — deu uma pausa, fitando-o. Nos últimos dois dias, ele
demonstrara lembrar bem de mapas de antes de se transformar e de saber tomar
direções, o que era um alívio para ela. — E, por Átria, se não estiver lá, te
entrego pros estudiosos da Ordem.
Sigried
sabia que ela estava falando sério ao jurar pela terceira lua, a única que não
aparecia no Espelho. Os Zhurans acreditavam que Átria possuía alguma relação
com o Vellum e o Espelho, e era o mais próximo de um deus que possuíam. Quando
queriam ser levados a sério, juravam por ela. O Juramento da Ordem era em seu
nome. Ela aparecia até mesmo no brasão.
Por
isso, quando Asa falou que o encontrava em uma hora, fora da cidade, ele pulou
pela janela sem titubear.
Querer
escapar do cheiro que tinha começado a se fixar no quarto provavelmente ajudou
a decidir que atravessar o retângulo fora a melhor ideia que tivera na trezena.
A
pior com certeza fora dizer que ela fedia mais que uma mina de oricalco...
Sabia que, em algum momento, teria de contar a ela que ela estava longe de
cheirar bem quando voltava de suas noitadas, mas não tão já e não com termos
tão literais, se ele tinha amor à própria vida: a única coisa que não mudara nos
últimos três anos era o quão vingativa Asa era capaz de ser.
Riumenses...
Quando
terminou de lamber o sangue dos dedos, decidiu que era realmente uma questão de
fisiologia Lobisomem. A carne continuava tão saborosa quanto se lembrava, e
fora um alívio para seu estômago vazio. Até mesmo a besta ficara mais calma em
sua gaiola.
A
distância que estava de Asa era maior do que a da noite anterior, mas depois
das vezes que teve de esperar uma trezena até que ela saísse do Espelho, ele
aprendera a fazer a muralha durar quanto maior a distância. Tudo bem, às vezes
ele não aguentava e se jogava contra a superfície mais dura ao redor,
procurando desmaiar, mas geralmente suportava muito bem.
Assim
sendo, não deixou de apreciar o Bosque do Vento, que se estendia desde a base
da Cordilheira, suas monstruosas montanhas visíveis mesmo a quatro dias de
caminhada em linha reta. As árvores eram variadas, a maioria alta e de copas
frondosas e coloridas, mas algumas brianis com suas folhas cobertas de pó
prateado e curativo e tronco branco como leite eram visíveis de vez em quanto,
diversas com os ramos cheios de botões lilases. Um sinal da proximidade do inverno.
Perguntou-se
se passariam pelo Bosque de Prata quando a estação fria chegasse e as flores se
abrissem. Já tinha visto o lugar todo colorido de roxo e lilás com as flores
duas vezes antes; era uma das visões mais lindas que já tivera e que gostava de
repetir.
Sua
mente se desviou das flores de briani quando sentiu a dor começar a abrandar. Observou
o antebraço, que afora as marcas em formato de raios, estava intacto, enquanto
tirava um tijolo de cada vez, conforme a dor diminuía.
Esperou
até a muralha ter praticamente deixado de existir antes de pular do galho onde
tinha estado deitado para o chão coberto de folhas secas.
Começou
a caminhar na direção que a sensação de braço em chamas diminuía. Ao mesmo
tempo, preparou-se psicologicamente para a provável vingança pelo insulto
acontecer quando ela colocasse os olhos nele.
A
certa altura do caminho, o vento soprou em sua direção, trazendo o cheiro da
Zhuran e, junto, o aroma doce e alcoólico de licor de avelã negra, uma das
bebidas mais fortes e caras graças ao processo para se neutralizar o veneno que
o fruto possuía. Uma careta se formou em seu rosto ao pensar que, àquela hora
do dia, Asa já estava bebendo.
Era
tão difícil assim ficar longe do álcool por muito tempo? Não fazia duas horas
que ela parara de beber no bordel... E quando imaginou que ela pagara pelo
menos dezenove argentumies na bebida, quase um aurumie, socou a árvore mais
próxima, deixando uma marca funda na casca.
Sigried
não era bobo; sabia que Asa controlava suas finanças. Sete anos assistindo-a
anotar compulsivamente seus gastos e ganhos, enquanto murmurava os valores, num
caderno encantado para que somente ela pudesse enxergar o que estava escrito, o
tinham feito descobrir que ela procurava guardar até mais que o um terço
obrigatório para sua aposentadoria. Mas também tinha notado que, nos últimos
três anos, ela relaxara até demais.
Suspirou.
Agora não teria apenas que enfiar na cabeça cada dia mais oca para que parasse
de se autodestruir, como também teria de martelar para que ela tomasse mais
cuidado com seus gastos, ou teria que começar a tirar de suas economias
pessoais — dinheiro que sobrava do terço para se manter e que ela guardava com
cuidado — para cobrir o terço dos Zhurans e de sua aposentadoria.
Após
alguns minutos, os dois finalmente se encontraram. O Lobisomem franziu, novamente,
a pele ao redor das narinas ao contemplar a mulher escorada numa árvore e
entornando a tal garrafa de licor. A corrente de prata que geralmente estava
presa à sua coleira estava enrolada e colocada em transversal no seu tronco.
Usava a versão leve de sua armadura, sem peitoral, com as manoplas integradas
às luvas de couro, sem precisarem de correias para se prenderem aos seus
membros; o mesmo valia para as grevas, integradas às botas.
—
Ainda não é nem metade da manhã, e você já tá enchendo a cara? E se precisar
lutar e estiver com os sentidos embotados? — viu-a sorrir de um modo brilhante,
começando a andar em sua direção e apoiando um braço em seu ombro, a mão
roçando a coleira.
—
Não se preocupe. É só hoje. E além disso, você está sóbrio, então...
Sigried
ergueu uma sobrancelha.
—
Só hoje? Duvido. Pessoas que bebem antes do meio do dia nunca bebem “só hoje”.
— Asa bufou, uma expressão de ira chegando ao seu rosto, as pupilas brancas se
dilatando.
—
Será que dá pra parar?! Mal voltou a forma humana! Primeiro o meu cheiro, e agora
o fato de eu beber...! Se você era assim aoz onze antes de se transformar, não
me surpreende que seus pais disseram pra todo mundo que tinha morrido, ao invés
de falar que era honrosamente um Lobisomem da Ordem! Deve ter sido um alívio
pra eles se livrarem de você! — Asa tocou as runas da coleira numa determinada
ordem, prendeu a corrente no elo e começou a se afastar, puxando a outra ponta
com força.
Sigried
apenas observou, incrédulo, quando ela começou a puxá-lo, forçando-o a se
movimentar. Ele não queria, mas quando sentiu uma picada de dor se irradiar do
pescoço, soube que, se resistisse, logo estaria caído no chão, em convulsões.
Já tinha resistido antes, quando sua forma era a de um lobo monstruoso, e não
queria experimentar aquele tipo de dor novamente.
Então,
limitou-se a segui-la, os olhos azuis e gélidos perfurando as costas de Asa com
um sentimento puro de raiva. A besta no canto de sua mente implorou para ser
libertada e atacá-la. Ele sentiu-se tentado a soltá-la, mas sabia que, se realmente
representasse um perigo para a Zhuran com as runas ativadas, a coleira lançaria
um encanto de paralisação. Outra coisa que aprendera na prática.
Após
alguns minutos de caminhada, em direção à estrada que os levaria para Vulna e
para o Caminho Aberto, sua mente começou a refletir no que ela contara sobre
seus pais.
Nunca
soubera o que fora deles após sua transformação. Nem deles nem do irmão mais
velho, embora imaginasse que ele havia ido para o Palácio Celeste tentar se
tornar um Guarda Real, como sempre sonhara. Se fosse o caso, esperava que ele
não fosse uma das centenas de pessoas que haviam morrido no golpe. Imaginou se
ela falara a verdade sobre seus pais, ou se fora apenas uma forma de irritá-lo.
A
curiosidade levou a melhor, forçando as palavras para fora de sua boca.
—
Eles realmente falaram que eu morri? — Asa parou de andar e se virou para
observá-lo. Sigried sabia o que ela veria em seu rosto: confusão, curiosidade e
um pouco de medo.
—
Sim. Você estava sendo levado para a Fortaleza, mas eu e meu mestre ficamos,
para descobrir quem você era e dar a notícia. Depois que Mestre Dell terminou,
eles conversaram baixo por um tempo e então sua mãe foi falar com o seu irmão,
que ainda não tinha se recuperado da catapora. Ela deixou a porta aberta, então
ouvi quando ela falou que você tinha morrido. — ela virou-se para continuar andando,
e ele a seguiu. — Ouvi quando ele chorou e amaldiçoou as Canções de Nascimento,
falando que elas eram mentiras, já que você não tinha cumprido nada do que a
sua dizia. Eu quis falar que ela estava mentindo, falar que o Humano ainda
existe dentro do Lobisomem, mas Mestre Dell me segurou e me disse que aquilo
não era assunto dos Zhurans. Fomos embora logo em seguida.
Sigried
pensou sobre o que Asa lhe contara. Não era difícil imaginar porque os pais preferiram
matá-lo de vez.
Era
melhor matar o filho do que admitir que tinha se transformado num monstro que
matara uma criança.
O
meio do dia chegou e passou, sem que parassem para comer ou descansar. Asa
tinha terminado a garrafa de licor por volta das da catorze da manhã, quando
ela a guardou em sua mochila encantada e tirou outra, cheia. Agora, às quatro
da tarde, com a segunda garrafa vazia, eles finalmente tinham parado, por
insistência de Sigried. Ela afirmava que estava bem, mas a insistência e a
teimosia do Lobisomem a venceram.
Sentaram
na beira do bosque, aproveitando a sombra e a brisa suave que vinha do sul por
entre as árvores, refrescando-os e trazendo o cheiro de eucalipto, hortelã e de
outras ervas e árvores. Asa abriu sua mochila e pegou a sacola de provisões.
—
Acho que foram os temperos da carne que não caíram bem em você. — conseguiu
dizer ao jogar um pedaço de queijo branco para Sigried. A Zhuran o observou
mordiscar com cuidado o laticínio, só comendo o próprio pedaço quando ele
devorou o queijo com uma expressão de alívio.
Ficaram
em silêncio por um tempo, saboreando a refeição frugal na companhia de água.
Com o cérebro ainda cheio de álcool, não percebeu quando a boca se abriu e a
voz saiu através de seus lábios.
—
Sabe, Sigried... Eu queria parar com tudo isso, sabe... Com as noitadas nos
bordeis, com a bebida praticamente a todo momento que não estou trabalhando...
— parou. O rapaz a observava, uma expressão difícil de ser decifrada no rosto.
— Eu sei que os alucinógenos tão destruindo a minha cabeça, mas eles me fazem
lembrar com mais detalhes, e sonhar o que nunca vai acontecer... É bom lembrar
e sonhar, mas depois fica doloroso... E aí eu bebo, porque só quero apagar e
esquecer... Mas depois quero lembrar e sonhar de novo... E aí corro pra um Senhor.
E fico assim... Lembra-esquece, lembra-esquece... — suspirou, deitando na grama
e fechando os olhos. — Eu queria poder parar... — murmurou, colocando o
antebraço sobre os olhos.
Um
tempo depois, notou que a mente começou a desanuviar e que seu senso de equilíbrio
estava melhorando. Bufou por ter a comprovação de que Sigried estava certo: a
bebida tinha lhe subido a cabeça.
E
então soltou um som estrangulado, consciente da “conversa de bêbada“ que tinha
acabado de produzir. Existiam verdades nessa conversa que ela não queria encarar
agora que a comida estava ajudando seu cérebro a pensar com mais do que dois
neurônios. Por isso, limitou-se a se levantar, puxar a corrente de Sigried
atrás de si e deletar tudo que dissera da mente, como sempre fazia.
Sigried
quis rir histericamente quando ela começou a ladainha bêbada. Asa a repetira
incontáveis vezes nos últimos três anos, as mesmas coisas sobre lembrar e
esquecer e que queria parar. Geralmente, antes de um coma alcoólico de
dezesseis horas em cima de suas costas. Ela gostava de alugar seus ouvidos
quando bêbada.
Nas
primeiras vezes, tivera esperanças de que ela falava sério e de que pretendia
parar de se destruir. Mas conforme tudo se repetia, deixou de acreditar e deu
os créditos das palavras ao álcool, e não à Asa.
Com
uma expressão de desgosto, o Lobisomem a seguiu, procurando manter a maior
distância possível. Ela ainda cheirava a licor de avelã negra, e ele detestava
o cheiro.
Queria
poder jogá-la num rio, talvez assim o cheiro saísse.
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Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
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