O
espírito observou o Bruxo Branco — Abel, se ele lembrava corretamente dos pensamentos
superficiais de Alanna sobre ele — pegar o corpo adormecido da garota do
veículo estranho, e seguiu-o quando ele a levou para o interior da construção,
passando por um cômodo onde a única coisa que ele conhecia era um tapete
colorido, até alcançar o que ele deduziu ser um quarto, embora muito diferente
do que o espírito conseguia se lembrar; o rapaz colocou a Shaman na cama, tirou
os calçados estranhos dos pés dela e então a cobriu com um lençol fino.
— Seu
pai vai me matar quando souber tudo que aconteceu... — Jaguar o ouviu resmungar
enquanto fechava as cortinas, deixando o quarto escuro. O Bruxo Branco ainda
verificou a temperatura da garota com as costas das mãos contra a testa dela
antes de sair, resmungando algo como “Ainda bem que não está com febre”.
Jaguar
pensou em seguir Abel quando ele saiu do quarto, mas aquela sensação estranha
de reconhecimento e de amarra o
impediu. Ele não sabia explicar direito, mas no momento que Alanna aparecera na
sala onde ele tinha estado desde quando ele se lembrava, era como se um nó
firme e final tivesse sido feito na ponta de duas cordas, uma amarrada a ele e
outra amarrada a ela, unindo-as. Um estalo em sua consciência sinalizando que o
tempo havia passado e a hora de alguma
coisa que ele não sabia o que era chegara. Aquela sensação tinha começado
antes da garota aparecer, algo brilhando próximo e se aproximando e que o tirou
de um longo torpor e espera. Uma mudança. E então aquela amarra. Ele não entendia, mas esperava que Alanna sim e pudesse
explicar.
E até
entender, zelaria pela segurança dela.
Talvez
o fizesse mesmo depois, ou mesmo que não houvesse o que entender. Algo em sua
mente, do pouco que lembrava, falava que era sempre bom ajudar Shamans.
Sentou-se
na cama, apoiando as costas na cabeceira, e observou o rosto adormecido da
garota. A ponta de uma mecha de cabelo, uma dentre muitas que se soltaram da
trança, encontrara de alguma forma a boca da Shaman, sendo mastigada. O
espírito por um momento seguiu o impulso de afastar a mecha, mas os dedos
apenas afundaram na carne da bochecha.
Jaguar
franziu as sobrancelhas, afastando a mão e observando o rosto de Alanna se
contorcer, como se tivesse sentido aquela tentativa de toque, antes de voltar a
relaxar. Cruzou os braços e reclinou a cabeça, encarando o teto escuro. Como
ele pudera esquecer, mesmo que por apenas um momento, que estava morto, era
apenas um espírito e, portanto, incapaz de tocar nos vivos sem reunir uma grande
dose de vontade? Devia ser efeito dos
longos minutos que passara ocupando o corpo da Shaman, manejando suas armas
para acabar com os malditos filhotes
de Tzitzimime. O desacostumara com a realidade de sua existência.
O
espírito não sabia dizer quanto tempo exatamente tinha se passado desde o momento
que haviam chegado quando ouviu um som que ele desconhecia ecoar pela casa, brevemente,
com um fim abrupto. Era estridente e incomodo e o fez ficar curioso o
suficiente para levantar da cama e atravessar as paredes desprotegidas.
—
Senhora Ravi, obrigado por retornar a ligação. — o homem estava sentado num dos
móveis estranhos no cômodo do tapete e segurando algo contra a lateral do
rosto. Jaguar se aproximou com cuidado, consciente da possibilidade do Bruxo
Branco ser capaz de sentir espíritos. — Sim, logo devo terminar o relatório e
enviar, mas antes tem algo que aconteceu e queria notificar logo.
O
Bruxo Branco se levantou repentinamente e começou a andar pela casa. O espírito
o seguiu, tanto pela curiosidade do que era o objeto nas mãos do homem, como
pelo interesse no que ele falava. Especialmente pelo tom de voz que parecia
ficar cada vez mais nervoso
—
Então... Nós fomos atacados por Sem-Peles ao chegarmos às ruínas. Consegui
fazer Alanna entrar usando um elemental do ar e fiquei na porta para
atrasá-los. Nisso o grilhão do
elemental acabou se quebrando e fui nocauteado. Acordei com Alanna me chutando,
sendo hóspede para algum espírito que estava na ruína. — nesse ponto o homem
sentou numa cadeira simples diante de uma mesa num cômodo cheio de coisas
estranhas que fizeram Jaguar torcer o nariz. — Ela realizou materialização, senhora.
A voz,
de nervosa, passou para preocupada, o que fez a atenção do espírito voltar rapidamente
para o homem vivo.
—
Armas e armadura de Guerreiro-Jaguar, sólidas o suficiente para nos dar uma chance,
espirituais o bastante para saber que eram de outra frequência.
Jaguar
rolou a palavra em sua mente. Materialização.
Carregava peso, importância. Parecia algo que ele deveria saber. Ou Alanna: se
era algo que se referia ao que acontecera no templo, com os objetos que ele
usava, e ela tinha conhecimento, a palavra deveria ter surgido nos pensamentos
superficiais da Shaman, um reconhecimento. Não era esse o caso; pelo contrário,
ela tinha estado tão surpresa quanto ele.
—
Tenho certeza do que vi, senhora Ravi. Era
materialização. Foi a única coisa que feriu os Sem-Pele. — uma pausa.
Jaguar começava a desconfiar que aquilo era algum tipo de aparelho de
comunicação. Como o tempo passara. — Por isso que liguei. Não havia nada do
tipo nos arquivos dela, e a base de dados da Stella Bianca fala que os
Espirituais que sabiam como realizar materialização
morreram há mais de dois séculos.
Outra
pausa, essa mais longa. O espírito começou a recuar lentamente, cuidadosamente
gravando as informações. Não sabia se o Bruxo Branco diria tudo aquilo e mais à
Shaman responsável por sua “liberdade”, e queria garantir que pudesse falar
caso ele ficasse calado sobre.
— Sim
senhora. Vou providenciar. — o homem riu de leve de um jeito que fez o espírito
pensar em “amargura”. — Pelo menos agora sabemos do que precisamos para lutar
contra os Sem-Pele. Não vou esquecer. Até mais.
Jaguar
viu o homem colocar sobre a mesa o que tinha segurado contra o rosto — um
objeto retangular cheio de pequenos quadrados que pareciam botões com coisas
desenhadas e que ele não entendia —, antes de afinal voltar para o quarto onde
Alanna estava.
Perdeu
novamente a noção de tempo. Não havia muito que ele pudesse fazer, como
espírito, além de observar, e foi o que ele fez: observou a Shaman adormecida,
atento aos possíveis sinais de que o sono não era tranquilo.
A
única interrupção foi o Bruxo Branco entrar no quarto, deixar um pedaço de algo
cheio de rabiscos na mesinha ao lado da cama, acrescentar um cobertor por cima
do lençol e então sair do cômodo. Não muito depois Jaguar ouviu o barulho do
estranho veículo que tinham usado para se afastar do templo, partindo e partindo.
Depois
da saída do homem, a casa ficou silenciosa, apenas o barulho da cama rangendo
quando Alanna se mexia interrompendo a quietude. Percebeu o dia terminar e a
noite começar quando grilos e outros animais noturnos passaram a dar sinais de
existência do lado de fora, o silêncio deixando de imperar.
Pouco
tempo depois, o espírito notou algo
de diferente. Não era o retorno do Bruxo Branco — cuja demora estava começando
a cutucar sua mente —, nem algo mais material,
mas sim... Uma sensação familiar de poder,
tão próxima que parecia deslizar contra ele, pinicar, sugar.
Saltou
de sua posição com a súbita pontada de dor, como se algo houvesse tentado beber
de sua energia e apaga-lo da existência.
A
sensação veio de novo, dessa vez mais aguda, e o fez chiar com a súbita e
estranha dor tomando seu ser. Ele sequer conseguia lembrar a última vez que
sentira dor, o que indicava que ainda era vivo quando ocorrera.
A
atenção foi atraída para a Shaman, quando a dor aliviou. O sono tranquilo havia
partido; ela se remexia na cama, a cabeça indo de um lado para o outro, os
olhos girando loucamente debaixo das pálpebras, a respiração rápida como a de
alguém fugindo.
E o
medalhão dourado que tinha estado no templo havia dissolvido o tecido debaixo
dele até alcançar pele, se fincando com tanta força a ponto de fazer verter
sangue; parecia pulsar com cada batida do coração da garota.
A
agonia de algo sugando sua energia veio de novo, mais desesperada, mais esfomeada, e a amarra que o ligava à Shaman se esticou com uma sensação de
urgência, como que tentando arrastá-lo em direção à Alanna. Resistiu àquilo,
desnorteado quanto ao que estava acontecendo e ao que devia fazer. Era difícil
pensar, com as duas sensações puxando-o cada uma numa direção — a amarra para possuir o corpo da Shaman
sem permissão, o poder para ser
sugado e servir de... Alimento? Era o que parecia.
O
medalhão brilhou em tom vermelho, o que deveria ser impossível. E então as linhas
do desenho do sol asteca, de simples entalhes, passaram a se tingir de sangue.
De uma
forma que não devia ser possível, afinal estava morto, Jaguar sentiu a garganta
se fechar. A amarra agora era um
berro de desespero contra ele, sobrepujando brevemente a agonia de energia
sugada, e sua mente enevoada conseguiu raciocinar que o medalhão devia parar de
ter contato com Alanna.
Juntou
o máximo de vontade que conseguia e
estendeu a mão para a peça de ouro, mas só conseguiu afundá-la no peito da
garota. Um grito de raiva rasgou caminho através de seu peito; o que quer que
estivesse sugando sua energia o deixara fraco demais para conseguir interagir a
tal nível com o plano físico.
A amarra puxou de novo, dessa vez mais
fraca e ecoando o frio que parecia ter começado a tomar o quarto.
Estava ficando sem tempo.
Trincando
os dentes, se rendeu ao puxão da amarra.
A
primeira coisa que Jaguar notou na mente da Shaman foi o estado deplorável do labirinto,
com buracos nas paredes e escombros dificultando o caminho. Como se algum monstro
gigantesco estivesse andando por entre os corredores sem muito cuidado.
Armadilhas haviam sido ativadas aqui e ali, mas não pareciam ter ajudado muito.
Andou
a esmo pelo labirinto em ruínas, preocupação por Alanna o cutucando cada vez
que o chão tremia como se um terremoto houvesse atingido o labirinto. Esses
tremores pareciam ficar mais fortes, e o espírito engoliu em seco com a
possiblidade muito real de que, o que quer que fosse, acabasse esmagando a
mente da Shaman.
Pouco
tempo devia ter se passado até Alanna aparecer, o cabelo preso firmemente,
armas penduradas nas costas e braços e usando roupas que não prendiam o movimento.
Vestida para guerra. O rosto, carregando tensão e raiva, o encarou com o que
parecia uma pontada de medo.
— O
que está fazendo aqui?! Como entrou?! — o espírito notou ela erguer a mão e se
preparar para expulsá-lo, e recuou um passo, recusando-se a parecer fraco.
— Fui
arrastado por...! Eu não sei o quê, para cá! — sons possantes e que tomavam
todo o labirinto começaram a preencher o ar, forçando-o a gritar. Pareciam
trovões, mas muito mais altos e intensos. — Tem algo errado com o medalhão que
você achou no templo!
Alanna
semicerrou os olhos cinzentos na direção dele, empunhando uma das armas longas
e estranhas facilmente; a ponta estava na direção dele casualmente, e Jaguar
mordeu o interior da bochecha, impaciente com a demora dela em decidir.
Outro
estrondo, mais próximo que os outros; o olhar da Shaman se desviou na direção
do chão por um segundo, acompanhado de uma maldição dita de forma entrecortada
pela jovem. A mão livre sinalizou para ele segui-la, e então ela deu as costas
para ele e começou a correr.
A
corrida através do labirinto e de portas ocultas foi seguida de perto por
terremotos e trovões. Algo definitivamente querendo destruir a Shaman.
— O
que é isso?! — Jaguar perguntou, mergulhando num prédio estranho e cinza e sem
vida logo atrás de Alanna.
— Eu
não sei, mas está passando pelas minhas defesas como se elas fossem manteiga! —
o grito resposta acompanhou o fechar da porta por onde tinham entrado logo
atrás dele. Estavam num cômodo vazio e praticamente fechado, apenas finas e
longas janelas cortando as paredes. Ali, os trovões e terremotos estavam mais
abafados. —Você disse que tem algo de errado com o medalhão. Descreva.
Por um
momento, o foco e o modo sucinto em alguém tão novo o surpreendeu. Não parecia correto que ela tivesse tanto controle
sobre si mesma quanto ele, um guerreiro de outro tempo que lutara em guerras e
morrera com pelo menos o dobro da idade da garota. Ao menos era o que os fragmentos
nebulosos de memória diziam. Então ele fez como ela: empurrou a surpresa e confusão
e todo o mais para longe e se focou.
— O
medalhão dissolveu o tecido da roupa que você usava e afundou na pele, fundo o
suficiente para verter sangue. Então ele brilhou vermelho e as linhas do entalhe
começaram a se encher de sangue. Começou depois que anoiteceu. Tentei
arrancá-lo, mas algo está sugando minha energia e não consegui me materializar
o suficiente para isso. — respondeu e se juntou a ela para espiar o exterior por
entre as janelas estreitas.
Percebeu
os lábios da garota se franzirem e se torcerem numa expressão estranha e, ele
tinha quase certeza, raivosa.
—
Sabia que aquilo era perigoso. Muita burrice minha continuar usando depois de
sair das ruínas. Certeza de que algum tipo de consciência foi imbuída no
medalhão e é isso que está me atacando. — o tom era mal humorado, quase grunhido.
— É
possível isso? — o espírito perguntou, ainda espiando pelas frestas, esperando
algum vislumbre do responsável pela devastação do labirinto.
— E
como. Alguns dos itens mágicos mais perigosos já registrados só o são por isso,
pelas consciências imbuídas e aprisionadas serem dos tipos mais deturpados
existentes e que sempre procuram tomar controle do usuário, muitas vezes
destruindo completamente a mente original. — a resposta tinha um tom amargo, e
Jaguar sentiu um calafrio subir por sua coluna. Definitivamente não queria ver
o que quer que fosse tomando controle da Shaman. — E não é apenas isso. É a
consciência me atacando aqui e alguma outra coisa sugando a minha vida. Preciso
acordar e tirar o medalhão. — ela olhou por mais um instante para fora e então
virou para ele.
—
Imaginei. — Jaguar resmungou, e testou sutilmente o peso do chimalli. — Como?
— Primeiro
tenho de expulsar essa consciência, depois acordar e arrancar o colar. Se acordar
com a consciência aqui, não vou ter chance alguma, vou ser totalmente apagada.
Tive muita sorte de estar dormindo, ou não teria tido chance de lutar. — Alanna
pausou após a declaração, e algo no olhar cinzento o fez imaginar que ela
estava considerando alguma outra coisa.
Um
mapa em relevo do labirinto se ergueu no chão entre eles, incluindo as paredes
e prédios destruídos. Uma das poucas construções de pé estava marcada em
vermelho, quase colada na parede exterior. Presumiu que era onde se
encontravam.
— A
consciência tem rasgado o labirinto tentando me encontrar, mas parece que perdeu
a paciência de vagar a esmo e decidiu destruir seção por seção até não sobrar
nada. O que está funcionando, porque dá pra sentir minhas forças mentais se
esgotando. Não vai demorar muito até meu cérebro desligar.
— Ou
agimos agora, ou você morre. — o espírito forneceu em voz plana, e ganhou um
olhar atravessado da Shaman.
— Sim.
— a voz soou ligeiramente irritada, mas controlada. Alguém com a cabeça no
lugar e capaz de ser focar. — Preciso me aproximar para conseguir expulsá-lo,
sem ser apagada no processo.
— Vou
distraí-lo. Mais alguma coisa que precisa que eu faça?
Alanna
balançou a cabeça em negativa e bateu um dedo contra o material brilhante da
arma.
—
Basta mantê-lo distraído. — ela se aproximou do mapa e observou as paredes que
desmoronavam em tempo real por alguns segundos. — A consciência está avançando
do norte. As portas do labirinto vão se abrir conforme você precisar. Vou
chegar pelo leste. — A Shaman mal terminou de falar antes de abrir a porta e
sair do cômodo.
Jaguar
seguiu a garota, e assim que estava de volta no labirinto, um leve empurrão
surgiu em suas costas. A mente da Shaman, indicando onde o Norte se encontrava
em seu subconsciente. Soltou um suspiro e aceitou o empurrão, realizando alguns
golpes experimentais e amplos com o maquauhuitl.
Quanto
mais para o norte ia, mais o labirinto parecia se desmoronar ao redor dele
apenas do impacto do que quer que a consciência estava fazendo. Esperou que a
Shaman pudesse reconstituir as proteções mentais facilmente.
E
então as paredes sumiram, uma clareira de escombros no labirinto. Não sabia o
que esperar aao alcançar o responsável pela destruição, mas definitivamente não
era parecido com a sombra dourada de formato humanoide, se transformando em
névoa e atacando as paredes e chão, então voltando para a forma humanoide.
Agora
mais perto da consciência, Jaguar conseguia ouvir uma espécie de grito rouco e
agudo ecoar cada vez que o invasor era barrado ou no mínimo atrasado na busca.
Jaguar
inspirou fundo, mesmo não precisando, e avançou na direção da sombra fazendo o
máximo de barulho possível.
Levou
alguns segundos para a consciência o notar, mas quanto o fez, imediatamente
avançou na direção do espírito em saltos nevoentos, o grito agudo alto o suficiente
para ofuscar os demais sons.
Jaguar
fez uma careta, incomodado com o barulho, mas manteve o avanço, erguendo o chimalli. Quando a sombra estava perto o
bastante, desviou para o lado, realizando um arco amplo com o maquauhuitl e cortando a névoa dourada.
Não demorou para eu alcançar o rombo que a consciência
estranha abrira nas defesas de minha mente. Por alguma razão além de ter
certeza de me encontrar eventualmente, o invasor parara de vagar pelos
corredores e focara em destruir tudo. Imaginava que talvez fosse uma tentativa
de me atrair para campo aberto.
Enxerguei uma sombra, dourada e humanoide e sem traços
definidos, determinada a destruir tudo. Jaguar apareceu pouco depois, e logo
atraiu toda a atenção da consciência.
Dei alguns segundos, trincando os dentes para não reagir ao
som agudo do grito da consciência invasora. Infelizmente não havia nada a ser
feito pelo barulho que já estava em minha mente.
Enquanto esperava para garantir que a consciência estava totalmente
focada na luta, aproveitei para admirar a fluidez dos movimentos de saltos e
desvios de Jaguar por entre os escombros; às vezes ele parecia virar tão névoa
quanto o invasor, tão veloz eram os ataques.
Molhei os lábios e não me dei tempo para repensar na
insanidade, avançando rapidamente e garantindo que os escombros abrissem
caminho.
Quando a consciência invasora notou a minha proximidade, já
era tarde: agarrei a forma de sombras e impus a minha vontade, expulsando-a.
Sentei na cama num impulso ao acordar, a força de Jaguar me
ajudando. Meu peito queimava e doía e eu sentia minha camiseta se grudar ao meu
corpo e o cheiro férrico de sangue inundando meu nariz. Meu sangue. O sentia
escorrendo do corte circular entre os meus seios enviando mensagens de dor ao
meu cérebro. Onde o medalhão afundara, como que tentando se incrustar a mim.
Puxei o ar com certa dificuldade para os meus pulmões e
levei minhas mãos, geladas e tremendo, até a peça de ouro. Sentia meu corpo
dolorido e cansado e gelado e querendo desistir. Querendo aceitar o abraço da
morte.
Trinquei os dentes e comecei a tentar arrancar o medalhão,
as pontas dos meus dedos grudando no sangue, coagulado e fresco, envolvendo a
peça. Meus braços tremeram com o esforço, mas o medalhão não deu a mínima
mostra de ter afrouxado. Apenas pareceu se fincar com mais força e provocar um
novo fluxo de sangue.
Jaguar, ainda dividindo o corpo comigo, veio à superfície. A
energia sugada causara um cansaço nele que era estranho e intenso e que
provocava uma sensação aguda e incômoda no fundo do meu cérebro. Como se a
morte estivesse mais perto do que nunca de nós dois, em busca do meu corpo e do
espírito dele.
Apesar disso, o Guerreiro me emprestou a força que
carregava, tanto a que se concentrara em seus músculos até o momento de sua
morte e fora passada para o espírito, como a sobrenatural que o imbuía e lhe
permitia existir. Ambas muito mais limitadas comparado ao que ele fizera nas
ruínas, mas era ajuda, ainda assim.
Juntos, eu e Jaguar puxamos a peça; senti cortes se abrirem
nos meus dedos e travei o maxilar, ignorando a nova onda de dor. Lâminas
pareciam se estender do medalhão, tentando mantê-lo ancorado ao meu peito.
E então, numa espécie de pico de força, conseguimos. O
medalhão se soltou de minha carne, parecendo rasgar a pele, mas saiu. Depois, Jaguar
foi o único que conseguiu ter forças para conseguir puxar a peça, o cordão de
couro arrebentando num estalo contra meu pescoço, e o jogar contra o chão
inerte.
Apoiei as mãos no colchão e por um instante achei que meus
braços não conseguiriam me manter sentada, de tanto que tremiam. E então eu e
Jaguar encaramos o medalhão.
O outro estava praticamente todo coberto pelo tom
vermelho-escuro e marrom-preto de sangue venal tanto fresco como coagulado, indicando
quanto tempo eu ficara presa em minha mente. Lâminas minúsculas, triângulos pontiagudos,
envolviam toda a circunferência. Não apenas uma impressão então.
E o entalhe do sol asteca provocou um arrepio de assombro.
Sangue preenchia as linhas num tom vívido e brilhante de
sangue arterial não-coagulado, o que não fazia o melhor sentido, e que fazia a
peça parecer esfomeada.
Engoli em seco e pedi para Jaguar nos fazer ir até o
medalhão. O espírito cumpriu minha vontade, os pensamentos dele de que ele não
concordava com aquilo e que eu devia me manter longe da joia pesando em meu
consciente.
Peguei o medalhão pelo cordão e o ergui; por um instante,
ele pareceu tentar se esticar na minha direção, atraído pelo sangue quente correndo
em meu corpo, e estiquei o braço até afastá-lo o máximo possível.
Soltei um suspiro esgotado — qualquer sono que eu tivera
mais cedo para me recuperar da fuga tinha sido inutilizado pela batalha contra o
medalhão. Minha única vontade era dormir por uma semana e acordar apenas
ocasionalmente para comer até explodir.
O último favor que pedi a Jaguar antes de liberá-lo foi ser
deixada em minha cadeira de rodas. Os sentimentos e pensamentos que o espírito
deixou em minha mente, antes de sair, foram de preocupação e pedidos para que
eu tivesse cuidado.
Alanna
molhou os lábios e precisou se esforçar para erguer o braço para a maçaneta da
porta; o membro estremecia e parecia mais pesado do que nunca. O recado deixado
por Abel ao lado da cama confirmava suas suspeitas de que ele não apareceria
tão cedo e que ela teria que se virar para notificar o que acabara de acontecer
para Miranda e Annanda.
Jaguar
a acompanhou, parecendo menos matéria e mais espírito que nunca, considerando
que ele não estava apenas levemente transparente, mas sim era quase que apenas
uma impressão contra o fundo, uma silhueta; até os olhos pareciam expressar
mais cansaço que qualquer outro sentimento. A Shaman desconfiava que o medalhão
se aproveitara da estranha conexão que ligara o espírito a ela e o fizera ajuda-la
para sugar energia de Jaguar. Se fosse o caso, não tinha dúvidas de que só conseguira
resistir e lutar tanto por conta disso.
Empurrou
o joystick da cadeira, e o objeto moveu-se pela casa até alcançar a cozinha.
Colocou o medalhão sobre a mesa, tendo cuidado para não tocá-lo.
Puxou
o celular do bolso da calça e, lutando contra os tremores e o peso em sua mão,
fotografou a peça. Gravou um áudio contando tudo que acontecera, a voz cansada
e rouca e velha aos seus ouvidos, e mandou os dois arquivos pelo email da Ordem
para a comandante e para a Fada Madrinha. Acabou enviando um segundo email
pedindo para que não contassem a Nilton, que o faria ela mesma ao fim da
missão.
Mal
tinha clicado em “enviar”, ouviu a porta da frente se abrir. Abel devia ter
acabado de chegar.
Não
conseguiu reunir energia o suficiente para chamá-lo antes dos passos dele ecoarem
na direção dos quartos e então a voz dele chamar o nome dela num tom meio
desesperado.
— Na
cozinha. — conseguiu grasnar após juntar forças, e torceu para ele ter
escutado.
O
mexicano logo surgiu no cômodo. Um palavrão soou em seguida.
Alanna
apenas suspirou, e antes de deixar a exaustão alcança-la e dominá-la, colocou o
áudio gravado para rodar. Então apoiou os braços cruzados sobre a mesa, a
cabeça neles, e dormiu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬