Dimensões

03 julho 2017

Caco de Vidro 1 - Terra de Vidro: A Crente

A Crente

“I want you to stay
I want you to believe
I want you to win the battles that are given to you
Don't you want to stay?”

“Eu quero que você fique
Eu quero que você acredite
Eu quero que você vença todas as batalhas impostas a você
Você não quer ficar?”

(The Believer — 30 Seconds to Mars)

A Estalajadeira andava habilmente por entre as mesas redondas e cheias, equilibrando duas bandejas com garrafas e canecas cheias de bebidas variadas, outras duas bandejas flutuando acima de sua cabeça. Ria junto dos hóspedes e frequentadores costumeiros da letra divertida e levemente obscena que dois menestréis dedilhavam no violão e no violino Arcrisiano. Tocavam bem, mas não com a maestria de um Musicista formado na Universidade de Música de Arcris, capazes de trazer lágrimas aos olhos quando tocavam mesmo com as músicas mais alegres.

O gato branco e exótico com ares de silfo da Estalajadeira estava sentado no balcão de cerejeira, balançando a cabeça no ritmo da música, soltando miados longos e sonoros bem colocados em determinados pontos da canção, o que só aumentava a comicidade da situação.

Ela parou diante de uma mesa. Com alguns gestos, as garrafas se ergueram no ar e tornaram a encher as canecas dos ocupantes. Ainda rindo, repetindo os gestos conforme andava, foi servindo os clientes. Por vezes, parava, uma das bandejas abandonando as mãos e flutuando no ar, e sacava alguma carta do Baralho de Vidro aleatoriamente de dentro do corpete e lia o futuro, o passado ou o presente de algum cliente, distribuindo conselhos gratuitamente.

Alguém derramou cerveja no chão de madeira polido e começou a murmurar desculpas, mas ela simplesmente riu; bateu no chão com o salto das botas, e o esfregão e o balde acomodados num canto atrás do balcão se moveram para arrumar a pequena bagunça enquanto ela tornava a encher a caneca do frequentador.

E, naquele ritmo estranho que ela criava todos os dias nos últimos cinco meses, a animação seguiu noite adentro, a lareira crepitante e as canecas cheias de álcool aquecendo aqueles homens e mulheres, endurecidos pela vida: comerciantes membros de caravanas que pretendiam atravessar o Caminho Aberto na Cordilheira do Vento ou descer para Arcris, homens que trabalhavam nas minas da Cordilheira que os Silfos e Ninfas davam permissão de explorar, lenhadores que sobreviviam da extração cuidadosa das árvores do Bosque de Prata e da Floresta dos Espelhos, fazendeiros, pescadores e lavandeiras que sobreviviam graças ao rio Vellum, e até mesmo os quietos caçadores.

Todos, em algum momento do dia, eram bem-recebidos pela Estalajadeira da Espelho Quebrado. Bebiam e comiam do que ela servia e dormiam nas camas que ela preparava, muitas vezes não pagando em dinheiro, mas em favores e mercadoria — buscar ou levar algo para a cidade mais próxima, Cilsan, vigiar a Estalagem em alguma noite que ela precisava sair, coisas assim; ninguém questionava, pois a misteriosa Estalajadeira de pele escura que dizia ter nascido em Silvagenis deixava claro a todos que possuía uma rara doença que a impedia de sair à luz do sol. As pessoas tinham falado no começo, mas conforme ela os acolheu e dirigiu a Estalagem sozinha, os rumores de que podia ser uma Dama-Girassol ou uma Dama-Roseira disfarçada desapareceram.

Foi quando quase todos estavam no estado melancólico que a bebedeira causava que o salão da Espelho Quebrado se acalmou. Os menestréis guardaram os instrumentos e comeram no balcão um pão de ervas e um suculento caldo de carne acompanhado de uma caneca de hidromel, e a Estalajadeira sentou-se no espaço livre, seu gato branco sentando-se em seu colo e começando a limpar as orelhas.

As pessoas olharam para ela. Alguns suspiros se ouviram, e uma jovem lavandeira conseguiu reunir coragem suficiente para expressar o que todos pensavam.

— Vai cantar, Estalajadeira?

A mulher de cabelos negros presos em dois rabos de cavalo ficou pensativa, acariciando as costas do gato, os olhos deslizando pelo local cheio de olhos ansiosos e expectantes. Suspirando, ela balançou a cabeça em afirmativa. Se cantasse, aqueles que se arriscavam a viajar a noite iriam embora logo depois, felizes ou tristonhos, dependendo da música, mas mais leves. Se não, sairiam naquele instante, mergulhados no torpor do álcool, e pesados.

Já fazia uma trezena desde a última canção. Raramente pediam por algo cantado por ela, e apenas quando o fardo era pesado.

O que os Alzú’Frigl estavam fazendo com o reino?, se permitiu perguntar.

— Que música gostariam de ouvir? — as pessoas começaram a cochichar umas com as outras, torcendo-se nas cadeiras, discutindo e tentando chegar num consenso, apesar da maioria não lembrar o próprio nome direito.

Os cochichos se acalmaram, e um homem que não tinha bebido muito expressou o desejo da maioria.

— Conhece a Canção de Nascimento de Lauré Vellum’Frigl? — ele perguntou em tom baixo, olhando ao redor com medo, assim como todos os demais.

A Estalajadeira prendeu a respiração, inconscientemente tensa, balançando a cabeça lentamente, antes de confiar na própria voz. Qualquer um a vendo naquele momento julgaria a tensão como fruto do medo de que homens do atual rei estivessem ali, no salão.

— Os Alzú’Frigl proibiram que a Canção de Nascimento da antiga Princesa-Herdeira  fosse cantada dentro do Reino de Vidro quando ascenderam ao poder. — o tom de voz da Estalajadeira demonstrava medo, enquanto olhava ao redor de forma cautelosa. Seu gato exótico, pressentindo sua tensão, saltou de suas pernas e passou a andar por entre as mesas, como um espião, até ir para a noite fora da Espelho Quebrado; o andar silencioso, rápido e preciso e os olhos sombrios e alertas pareciam querer dizer que procurava sinais de que homens dos Reflexos de Prata estavam entre aquelas pessoas.

— Por favor, Estalajadeira. Você sabe que todos, ou pelo menos quase todos, deste lado da Cordilheira, sempre foram fiéis aos Vellum’Frigl. Eles foram dizimados... Nos deixe lembrar à que Lauré estava destinada... — a mesma jovem lavandeira falou, os olhos brilhantes e suplicantes num rosto sofrido com o trabalho duro todos os dias debaixo do sol inclemente.

— E se houver algum homem deles aqui, ou se os soldados quiserem prendê-la por cantar a Canção, nós lutaremos por você! Você fez mais por todos nós que qualquer um deles! — um bêbado animado gritou no meio dos frequentadores, e berros de concordância se seguiram. Alguém disse que fora um antídoto que ela fizera que salvara seu filho de uma picada de cascavel, e outro que teria perdido a mão num acidente na fazenda se não fosse por ela.

A Estalajadeira era uma dessas feiticeiras que não apenas usava energia mental e espiritual apenas na telecinese, como também era versada na arte da cura; a combinação não era incomum, mas a presença dela longe dos hospitais sim. Em seu pouco tempo na região, salvara vidas o suficiente para se tornar referência para a população local afastada dos centros urbanos.

A mulher suspirou, derrotada. Bateu palmas algumas vezes e fez diversos gestos com as mãos e a cabeça, enviando e controlando fiabos de energia mental e espiritual. O fogo na lareira diminuiu, a iluminação suave criando uma atmosfera com a fronteira indefinida entre o sonho e o pesadelo; um frio pequeno se instalou nos corações e nos corpos presentes, e todos puxaram mais as roupas para perto do corpo; com exceção dela, da Estalajadeira, com os braços e ombros desnudos, descendo do balcão de cerejeira.

Ela deu um passo, as mesas e cadeiras se mexendo suavemente, abrindo caminho, enquanto uma nota aguda e tristonha ecoou; parecia o som de uma lira.

Deu mais um passo, e de novo os móveis se mexeram suavemente, não incomodando seus ocupantes, e a mesma nota aguda de lira soou, dessa vez acompanhada do delicado e triste som de uma cítara. Os frequentadores não sabiam de onde aqueles sons vinham, mas sabiam que era devido à feitiçaria da Estalajadeira. Provavelmente, instrumentos ocultos em algum ponto da estalagem que agora tocavam, incentivados pelas ordens dadas pela sua energia mental e espiritual.

Ela deu mais um passo e parou. Notas tristes e agudas de uma lira e delicadas e harmoniosas de uma cítara começaram a ecoar em sequência. Com algumas notas, a voz delicada da Estalajadeira começou a cantar, evocando as visões que um Vidente tivera sobre a Princesa-Herdeira quando ela nascera e que um Musicista colocara em notas e melodia, de acordo com o costume de Rosean para cada criança que nascia.



O Cavaleiro-Monge balançava sobre o hikmat grande e pesado, o sono e o cansaço arrastando suas pálpebras para baixo, sua própria montaria cansada, os passos mais lentos do que nunca. A noite obscurecida pelas nuvens cinzentas de chuva pesava acima de sua cabeça enquanto seguia pelo Caminho Espelhado, cercas protegendo plantações diversas no lado norte, ao sul a borda da Floresta dos Espelhos a uns quarenta metros. Para a frente, oeste, sabia que as montanhas da Cordilheira do Vento eram visíveis mesmo daquela distância, embora não naquele momento.

Já não parava para acampar fazia dois dias, desde que um grupo de ladrões quase o matara enquanto dormia. Pzia percebera o perigo e o acordara com um cutucão da pata, o que resultou em Einar saltar de pé, alerta, as pistolas de energia espiritual brilhando em tons de verde conforme seus projéteis vermelhos e azuis surgiam e atingiam o grupo. Uma rápida busca revelara que faziam parte de um grupo maior, e que por isso devia se apressar a chegar à cidade mais próxima, onde poderia encontrar abrigo e trabalho — embora soubesse que dificilmente alguém contrataria um Cavaleiro-Monge, muito menos abrigar um. Se não conseguisse trabalho em Cilsan, assim como não conseguira em Virenis, teria de apelar para as minas ou para qualquer outro tipo de trabalho perigoso fora das barreiras.

Pensou com melancolia, enquanto seguia pela terra batida, que três anos atrás, quando os Vellum’Frigl reinavam, ladrões e assassinos precisavam tomar muito cuidado: se fossem pegos, as opções eram o Mosteiro, o carrasco, ou o Deserto de Vidro sem nada que os protegessem. Nenhuma gangue de ladrões teria tido coragem de se formar na época dos Vellum — e nem necessidade, ele admitia.

Suspirando, balançou a cabeça para acordar, se repreendendo por pensar naquela época que nunca voltaria — estavam todos mortos, mesmo a Princesa-Herdeira a quem ele protegera desde o início de seu treinamento como Guarda Real do Palácio Celeste. Ele vira quando a flecha de um Guarda traidor atingira as costas de Lauré quando ela alcançara a borda da Floresta de Vidro. E ele mesmo se esvaindo em sangue naquele momento, nada podia fazer por ela. Espera que as ninfas que dominavam a floresta tivessem dado um enterro digno à princesa

Continuou seguindo seu caminho, dessa vez mais atento aos arredores. Após algum tempo, viu ao longe luzes recortadas contra a noite.

Franzindo as sobrancelhas, Einar puxou um mapa do Reino de um dos alforjes da sela, junto de um vidro-de-luz gravado com uma série de runas. Olhando ao redor cautelosamente, murmurou uma palavra e o vidro brilhou com uma suave luz amarelada. Mantendo o vidro na mão, desdobrou o mapa e o apoiou na parte da frente da sela. Com os dedos sobre o Bosque de Prata, seguiu o Caminho Espelhado até a Floresta dos Espelhos. De acordo com seus cálculos, devia estar chegando ao ponto que o caminho virava e subia até Cilsan, a cidade onde ele nascera e se criara antes de partir para o Palácio Celeste e seu treinamento, e onde esperava encontrar os pais, se estivessem vivos — os três anos no Mosteiro tinham isolado-o de tudo e todos.

Se ele bem se lembrava, existia uma estalagem abandonada naquela curva da estrada.

Dobrando novamente o mapa e apagando o vidro-de-luz, voltou a fitar as luzes recortadas que se aproximavam lentamente. Talvez aquela fosse a Estalagem que ele e as demais crianças de Cilsan cujos pais eram caçadores ou lenhadores brincavam que era assombrada por seres do Espelho. Alguém a ocupara.

— Vamos, Pzia. Logo vamos poder parar e descansar. — só torcia que a estalagem não tivesse se transformado num covil de alguma gangue.

Lentamente, gotas começaram a cair do céu, aumentando a intensidade conforme avançavam na direção da estalagem. A estrada de terra transformou-se em lama, e Einar agradeceu mais uma vez que o Mosteiro tivesse lhe dado um hikmat, e não um cavalo, ou estaria com problemas. As patas largas e de couro grosso davam ao animal pesado uma estabilidade que os cascos de um cavalo não teriam no Caminho Espelhado.

Ao menos, não haviam raios, o que era raro ao se considerar as chuvas típicas do Reino de Vidro.



Quando se aproximou da estalagem, viu uma placa de madeira com um espelho trincado e com um rombo no meio gravado com fogo, as palavras “Espelho Quebrado” abaixo da gravura; desmontou do hikmat, guiando Pzia suavemente pela rédea até a construção mais baixa com portas largas que ele lembrava ser o estábulo — mesmo que antes aquelas portas não existissem —, enquanto a chuva continuava caindo. Por vezes, a lama quase o fez desabar, mas a presença da montaria ao seu lado o estabilizou.

Um gato branco parou à sua frente, fazendo-o estancar no lugar. Piscou, vendo que a água e a lama pareciam não afetá-lo: seus pelos continuavam alvos e esvoaçantes, um sino de opala reluzente em seu pescoço. Os olhos brancos do felino o encararam, sérios e sombrios, e então o pequeno animal correu para o lado, sumindo em névoa e reaparecendo alguns metros à frente. Pulou, e então de novo se desfez e reapareceu, dessa vez em cima de um dos grossos galhos do salgueiro morto que ficava em frente à estalagem.

Inclinou a cabeça, sentindo os músculos do rosto puxarem os lábios num sorriso: um Silfo menor. Quem quer que dirigisse o estabelecimento, tinha um ser do vento ao seu lado. Com certeza não eram ladrões. Einar sabia muito bem que os Silfos nunca apoiariam pessoas que se aproveitavam do suor de outros. Era um alívio constatar que estaria entre pessoas decentes.

Balançando a cabeça, continuou guiando o hikmat para o estábulo. Quando passou próximo à construção que era a estalagem propriamente dita, ouviu o som de uma lira, uma cítara e de uma voz, delicada e que conseguia facilmente interpretar o sentimento que permeava a canção.

A voz lhe pareceu extremamente familiar; por um instante, achou estar ouvindo a Princesa-Herdeira cantando. Ser a Canção de Nascimento da própria, que Lauré estava sempre cantarolando, independente de onde ou do que estivesse fazendo, não ajudou: não fosse a lembrança da Princesa-Herdeira caindo com uma flecha nas costas, teria escancarado a porta da Estalagem para ver com seus próprios olhos.

Respirou fundo.

É alguém com a voz extremamente parecida. É só isso. Procurou se convencer, com pouco sucesso. Seu lado irracional continuava a lhe dizer que era Lauré quem estava lá dentro, cantando, e que as Canções de Nascimento ainda podiam ser reais. Que ainda existia esperança, além da que ele dava a si próprio ao cantarolar aquela melodia em seus piores momentos no Mosteiro-Prisão. Mesmo que não mais acreditasse naquela milenar tradição, não podia negar que só sobrevivera à Orichalcum e aos outros presos, com a mente sã, graças àquela canção e à memória da Princesa-Herdeira cantando-a.

Desistiu de tentar fazer a racionalidade imperar, de dizer a si mesmo que estava delirando e que não era a Princesa-Herdeira, somente alguém de voz incrivelmente parecida, procurando outra coisa em que focar a mente.

Sentiu Pzia cutucar seu braço, interrompendo os pensamentos de forma bem-vinda. Rindo da impaciência do hikmat, caminhou em direção à construção de madeira, empurrando uma das largas portas o suficiente para que o animal passasse, encostando-a assim que estava debaixo do teto.

O animal caminhou lenta e tranquilamente para os fundos do estábulo, empurrando a porteira de uma das baías com sua cabeçorra. Einar seguiu atrás, desfazendo os laços da capa encharcada e a pendurando num gancho de uma das colunas de sustentação, dando um breve olhar aos cavalos de carga, dois kirins e a algumas carroças carregadas de mercadorias que se alojavam no espaço largo.

Andou até a montaria, ansiosa por ter a sela carregada e os cantis de água tirados de si, as patas de metal amassando ainda mais a terra batida e o feno espalhado. Ainda rindo, Einar não demorou em retirar a sela e os alforjes, deixando alguns no canto do espaço e levando só uma das mochilas. O animal começou a comer o feno com plácida calma enquanto o Cavaleiro-Monge trancava a baía, ativando com seus poucos conhecimentos de feitiçaria o encanto de tranca e alarme.

Olhou ao redor por um instante, pensando se levava mais alguma coisa além da capa, antes de sair do estábulo e caminhar no meio da chuva para a porta da estalagem, as botas de couro afundando na lama. Não se preocupou em recolocar o tecido marrom sobre seus ombros: já estava ensopado mesmo, mais um pouco de água não faria diferença.

Empurrou a porta devagar, vendo o salão cheio de homens e mulheres, contemplando uma jovem negra de olhos verdes com um vestido em tons de azul cantando os últimos versos da Canção de Nascimento; as peças que interpretavam o que era narrado evaporaram ao final, quando ela fez o fogo na lareira aumentar e ele terminou de fechar a porta. Sorriu discretamente com a qualidade das ilusões produzidas, que pareciam tão reais quanto as pessoas que assistiam a apresentação.

Einar admitia: só percebera se tratar de ilusões porque vira muitas, tanto quando treinara para ser da Guarda Real, como quando fora transformado num Cavaleiro-Monge. Era um controle quase tão preciso quanto o que os Monges possuíam.

As pessoas começaram a se levantar e a sair da estalagem ou subir para seus quartos. Os que passavam por ele para atravessar a porta, ameaçavam cumprimentá-lo, mas fechavam a boca com um estalo ao ver a cicatriz de ômega no meio de sua testa. Alguns, mais ousados, conseguiam acenar com a cabeça, embora olhassem para os pés. Quase todas as pessoas que encontrara nas últimas trezenas reagiam de modo pelo menos similar.

Aquela forma de agirem fez com que engolisse em seco, a garganta apertada. Sim, estava marcado como um ex-residente de Orichalcum, mas seu único crime fora não jurar lealdade aos Alzú’Frigl quando mataram todos à quem ele servira por sete longos anos. Procurou se consolar: aquelas pessoas, e todas as demais que encontrara desde que saíra do Mosteiro, não sabiam daquilo. Não o conheciam, não sabiam quem era. Viam apenas a marca de que era um traidor.

A mulher olhou para ele com um ar estranho, como que intrigada, o sorriso em seus lábios parecendo tremer antes de se firmar de novo, segundos antes dela começar a andar em sua direção. Imaginou que fosse a dona da Estalagem e que agiria como todos os hospedeiros, estalajadeiros e taberneiros que encontrara nas últimas trezenas: muito educadamente lhe ofereceria comida e então diria que os quartos estavam cheios, mas que não cobraria caso decidisse dormir no estábulo, na cozinha ou algo assim. Era o tratamento comum para Cavaleiros-Monges. Outros eram bem menos educados e se limitavam a expulsá-lo.

A mulher parou diante dele, ainda sorrindo, antes de fazer uma pequena reverência. Einar sentiu surpresa percorrer seu cérebro e membros enquanto retribuía o respeitoso cumprimento. Notou também, com um canto da mente, como o trejeito de apoiar levemente a mão esquerda no quadril e a direita puxar um pouco do tecido da saia do vestido para frente, torcendo-o de leve, lembrava os gestos da Princesa-Herdeira .

Procurou sufocar aquele sentimento de reconhecimento. Aquela mulher nunca poderia ser Lauré.

— Gostaria de conhecer seu quarto antes ou depois de comer algo? — perguntou, acenando as mãos para a mochila e para a capa ensopada, que se agitaram até que ele as soltasse. Ambos os objetos começaram a flutuar próximos à Estalajadeira.

O rapaz sorriu, novamente surpreso com a diferença de tratamento que a mulher lhe dispensara. Aparentemente, estava diante de uma das poucas pessoas no mundo que não considerava todo e qualquer Cavaleiro-Monge um traidor. Era uma bem-vinda mudança.

— Antes. — respondeu, observando os olhos de esmeraldas. Era estranho. Sentia sua pele pinicar e se arrepiar como se milhares de formigas estivessem correndo rapidamente por si.  Uma das sensações de ter Éter próximo de si numa atividade constante que ele aprendera e decorara no Mosteiro.

Olhou ao redor, tentando descobrir o que na Estalagem poderia ter um encanto que necessitasse de tal atividade constante — as barreiras para impedir que seres do Espelho conseguissem entrar nas dependências do estabelecimento produziam uma sensação mais suave, mais parecida com um canto de cigarra mil vezes mais baixo e mais contínuo. Nada ali parecia estar de fato encantado. Focou de novo na Estalajadeira, mais especificamente no colar de ferro com um cristal simples que envolvia seu pescoço fino. Imaginou se a joia não era encantada; talvez um encanto de proteção individual ou de linguagens, que produziam a mesma impressão.

Ela sorriu de volta, balançando a cabeça em afirmação.

— Então vamos. — indicou para que ele a seguisse. Enquanto caminhavam para a escadaria, ela acenou para o esfregão e o balde cheio de água, que começaram a limpar o chão, as cadeiras se erguendo e se pendurando invertidas nas mesas, bandejas passando pelas mesas recolhendo copos, canecas, garrafas e pratos e sumindo através da porta que, provavelmente, levava para a cozinha.

Agia como qualquer feiticeiro dono de uma Estalagem, Hospedaria ou Taberna agiria, e Einar apreciou os objetos se movendo sozinhos; sempre admirara como feiticeiros controlavam bem a própria mente e espírito para fazer as coisas se movimentarem sem precisarem tocar-lhes, às vezes sequer ver, dependendo do quão habilidosos eram, além da capacidade de infundir a energia espiritual ao redor em suas poções e a mental de forma a criar ilusões, enganando o cérebro ao alterar o que ele via no momento.

Tinha alguns conhecimentos, frutos de seus anos de treinamento, mas era consciente de que nunca conseguiria ter o mesmo controle preciso que via na Estalajadeira. Especialmente considerando a quantidade de objetos que ela controlava ao mesmo tempo com tanta precisão, muito acima da média.

Quando alcançaram o andar superior, Einar viu-se num pequeno corredor que se ramificava em dois corredores mais longos e paralelos. As paredes de pedra ao redor eram pontuadas por portas de madeira escura com números pintados em vermelho-vibrante.

— Eu lhe ofereceria uma suíte, mas as poucas que a Estalagem possui estão ocupadas pelos chefes de caravanas no momento... — ela ergueu os ombros com um ar de desculpas, terminando de percorrer o corredor, que acabava num outro, paralelo ao que a escada desembocava. A Estalajadeira parou diante de uma porta que não possuía um número e virou-se para ele novamente. — Essa porta dá para a escada que leva aos salões de banho.

Após lhe indicar a porta, a Estalajadeira pegou o molho de chaves que estava pendurado no corpete e abriu uma porta próxima, na lateral da construção, e entrou no quarto. Era de tamanho mediano; na parede à direita, havia uma pequena lareira apagada; à esquerda, uma cama de solteiro com um cobertor feito aparentemente de algodão-nuvem. Encostado aos pés da cama, um baú da altura de uma mesa, com prateleiras na parede de pedra e um banquinho encostado na parede. O baú, com uma folha de alumínio cobrindo o tampo, podia ser usado como escrivaninha, do jeito que os quartos pequenos de Estalagens costumavam fazer. Na parede de frente para a porta, uma janela simples e ampla com cortinas do mesmo tecido do cobertor.

A mulher acenou as mãos; as toras na lareira se acenderam facilmente com o incentivo mental nas brasas abaixo, e um cabideiro saiu de detrás da porta, se postando a frente do fogo vívido. Deixando um rastro molhado no chão recoberto de madeira, a capa e a mochila se penduraram para secar. Einar a viu olhar ao redor antes de balançar a cabeça com um sorriso satisfeito de quem tinha o controle da situação e fixar a atenção nele.

— Vou preparar... — analisou-o por um instante, antes de tirar um par de cartas do corpete. Com um sorriso brilhante, ela mostrou-lhe Alma e Rio, a primeira representada por uma menina refletida numa poça da água que mostrava uma velha sorridente, e a segunda por um garoto sem reflexo correndo pela superfície de um rio no mesmo rumo da água. — Pão de ervas, caldo de carne, torta de couve e uma caneca de meio-litro de vinho de amora!

Einar riu com um pouco de surpresa. Aquela Vidente era realmente boa. Não sabia como ela interpretara as cartas, mas ela acertara em cheio pelo que ele estava faminto e qual a sua bebida favorita. Podia não acreditar nas Canções de Nascimento há um bom tempo, mas já tivera provas suficientes de que o dom dos Videntes era real.

— Exatamente. Você é boa. Geralmente, erram minha bebida favorita. Falam apenas vinho. — ela deu de ombros. — Meu nome é Einar. — estendeu a mão, que a Estalajadeira apertou sem demora, sorrindo. — Como devo chamar quem me acolheu?

A mulher riu, soltando sua mão, pegando uma chave do molho e entregando-lhe.

— Sou de Silvagenis, então você pode imaginar como meu nome é complicado. Todos me chamam apenas de Estalajadeira.

— Eu insisto. — inclinou-se um pouco, como se fizesse uma pequena reverência. A mulher balançou a cabeça.

— Meus pais me chamaram de Estelia’Fal’Ima. E é só o primeiro. — Einar piscou, reconhecendo os padrões do Reino cuja crença dizia que a simetria era algo que trazia má-sorte: três palavras, todas com número ímpar de letras. Ficou curioso por descobrir que marca e onde ela se encontrava que Estelia’Fal’Ima possuía, que garantiria que o lado direito de seu corpo não fosse igual ao esquerdo e vice-versa. O normal era que tal marca se encontrasse bem visível no rosto, como era com a Rainha Suna, irmã-caçula do Rei de Silvagenis e esposa do Rei Andres Vellum’Frigl.

Talvez o Éter que ele sentia fosse por causa de um encanto para esconder tal marca. Algo que a permitia mesclar-se melhor com o povo de Vidro.

— Estalajadeira é melhor... — acabou falando, e a mulher riu.

— Vou deixar sua refeição pronta no balcão.

— Vou me lavar antes, então, não precisa ter pressa. — apressou-se a falar, vendo-a sorrir.

— Entendo. Bem, você também não precisa ter pressa. Vou ficar acordada por um bom tempo ainda, por causa da chuva. — Estelia’Fal’Ima disse, desviando dele e abandonando o quarto, suas botas soando na madeira conforme ela se afastava e a porta se fechava atrás de suas costas. Ele sabia porque ela demoraria a ir dormir. Caravanas talvez se atrasassem e pessoas que haviam partido retornassem por causa de ladrões ou do aguaceiro que caía do céu.

O rapaz observou novamente o quarto enquanto retirava as peças de armadura, o colete de couro e a túnica e os pendurava no cabideiro para secarem. Procurou na mochila uma muda de roupas, saindo e trancando a porta atrás de si antes de ir até a porta que levava para os salões de banho.

A escada era de pedra, não de madeira como a outra, e terminava num chão igualmente de rocha. O material tinha um tom cinza claro, tão lustroso que refletia a luz elétrica das lâmpadas. Pela primeira vez, imaginou o que forneceria a energia da estalagem. No Mosteiro, o calor e o vapor das forjas de vidro garantiam essa energia; as cidades grandes geralmente eram vizinhas a rios e cachoeiras, onde usavam a força da água para gerar energia, e as que não tinham tal mordomia, queimavam carvão e lixo. Alguns Reinos geologicamente em vantagem usavam-se de gêiseres e vulcões.

Talvez a Espelho Quebrado também usasse carvão e lixo, com uma mini-usina subterrânea.

Enquanto abria a porta que possuía todas as sinalizações possíveis de que era a dedicada aos homens, lembrou-se do Silfo que vira mais cedo. Se Estelia’Fal’Ima possuía o favor dos Silfos e Ninfas, como certos fazendeiros, caçadores e lenhadores tinham, ela poderia ter equipamentos que transformassem a força do vento em energia, ou talvez a luz do sol. Eram tecnologias que os humanos ainda não tinham desenvolvido por si próprios, e os Silfos e Ninfas não achavam prudente compartilhá-las com todos.

O salão de banho era grande e largo, com o teto forrado de madeira e aberturas no alto das paredes para ventilação; o chão e as paredes eram de pedra lisa e ainda do tom cinza-claro. A parede esquerda possuía pequenas cabines para as necessidades fisiológicas; à direita, banheiras de pedra enfileiradas, com bancos integrados à parede entre cada uma. Nos fundos, prateleiras embutidas com produtos de higiene, como sabonetes, toalhas e outra infinidade de coisas. No centro, ao nível do chão, uma piscina cheia de água quente, com o vapor se erguendo e tornando o lugar agradavelmente abafado.

Entrou definitivamente no ambiente, sentindo que atravessara uma parede de Éter, energia de almas, espiritual e mental. Olhou para o chão, vendo runas encantadas na soleira da porta que produziam uma barreira extra, caso algum habitante do Espelho conseguisse atravessar para o mundo físico naquele lugar. Viu que as paredes laterais à porta tinham espelhos cobrindo-as; com tantas superfícies reflexivas no ambiente, não era de surpreender as proteções extras.

Com um suspiro, se encaminhou para a última banheira, deixando a muda de roupas no banco de pedra; tampou o ralo, abriu a torneira e apertou um botão com o símbolo de fumaça gravada. Enquanto o recipiente enchia, foi até as prateleiras no fundo pegar uma toalha e alguns dos produtos.

Despiu-se, jogando as roupas ensopadas e imundas no cesto à frente da banheira. Conhecendo bem os hospedeiros que também eram Videntes, a Estalajadeira não teria problemas para dizer que aquelas roupas eram dele e não de algum outro hóspede. Fechou a torneira, e antes de mergulhar na água límpida e que parecia muito atrativa, com a pedra ao redor ficando embaçada com o calor, tirou o monóculo de seu rosto, expondo o olho direito, castanho-claro.

Uma flecha o atingira três anos atrás, por pouco não alcançando seu cérebro. A demora em ser atendido impediu que conseguissem recuperar o original. Ao chegar cego de um olho no Mosteiro Orichalcum, um dos Monges-Magos, junto de um médico e de um Feiticeiro, usara um encanto perigoso que, se tivesse falhado, o teria transformado num vegetal. O médico colocara o olho de um preso que morrera nele e, com o encanto, o Monge-Mago ligara seu cérebro ao órgão, enquanto o Feiticeiro usou suas poções e demais habilidades para que não ocorresse uma rejeição, nem naquele momento, e nem no futuro. Como resultado, ele podia enxergar quase como antes. O doador era um pouco míope, por isso o monóculo possuía lentes especiais.

Mas era um preço pequeno. Se tivessem usado o mesmo encanto para substituir partes do corpo perdidas que era usado nos Mensageiros treinados em Orical pelos Monges-Magos, estaria com uma placa de metal cobrindo um quarto da cabeça com um olho de autômato como substituto.

Com um suspiro, submergiu na banheira, sentindo os músculos relaxarem quase imediatamente. O corpo era marcado por cicatrizes diversas, a maioria como vestígios de quando os Alzu’Frigl deram o golpe. A maior cortava seu corpo desde o ombro esquerdo e descia até o umbigo, grossa e um tanto pálida. Além da flecha na cabeça, aquele golpe de espada quase o matara por falta de sangue.

Deu-se alguns minutos para apenas aproveitar a água quente, antes de se contorcer para pegar uma esponja vegetal e um sabonete que, pelo cheiro suave que lembrava água da chuva e metal, era feito de flores de Briani, e começar a tirar quase com raiva a sujeira que se acumulara.



Após vestir-se, ao invés de voltar para o quarto, foi direto para o salão da Estalagem, ajeitando o punho da camisa verde-escuro. O esfregão ainda dançava acima do piso, desviando-se dele enquanto Einar caminhava para o balcão de cerejeira; quando estava quase alcançando o móvel, a Estalajadeira surgiu através do batente da porta que separava a cozinha do salão, equilibrando uma bandeja cheia de pratos e uma caneca.

A mulher abriu um sorriso ao vê-lo se aproximar, os pratos e a caneca se erguendo da bandeja e se espalhando pelo balcão, ao redor de onde Einar se acomodara; a Estalajadeira apoiou-se na parede atrás do balcão, observando o homem servir-se com um sorriso discreto.

— Quando tempo pretende ficar na região? — perguntou de repente, saindo de sua posição relaxada para pegar o Silfo deitado no balcão, coçando-o atrás das orelhas. Einar ouviu à distância o ronronado, sorrindo de leve enquanto mastigava um pedaço do pão de ervas mergulhado no caldo de carne.

— Ainda não sei direito... Quero descobrir se meus pais ainda estão vivos em Cilsan. — respondeu com um tom distante, em seguida bebendo um gole generoso do vinho de amora. — Se estiverem vivos, mas não quiserem assumir um filho que seja um Cavaleiro-Monge e me ajudar... — deu de ombros. — Talvez tente achar uma mina onde trabalhar, ou algo assim... — Estelia’Fal’Ima balançou a cabeça de leve, ainda mimando o Silfo em forma de gato em seus braços.

— Entendo... — ficou quieta por um instante. Einar percebeu os olhos verdes deslizando pelo salão, provavelmente verificando se o esfregão fizera um bom trabalho ao limpá-lo. — Sabe... Geralmente eu não cobro dinheiro dos hóspedes, mas sim favores. — o homem sorriu com a declaração, não se surpreendendo: ela era de Silvagenis, cuja prática mais comum era a troca de favores, e não de dinheiro.

— Já está pensando em que favor me pedir? — perguntou com um sorriso, dando uma garfada na torta de couve. Ela ergueu os ombros com um ar culpado.

— O trabalho nas minas é difícil... Lenhador e caçador, muito perigoso... — inclinou a cabeça, um pouco como um cervo, na opinião de Einar. Engoliu em seco ao lembrar que Lauré inclinava a cabeça daquele mesmo modo quando estava prestes a usar a lógica para vencer uma discussão de forma a deixar os demais mudos. — Se seus pais não estiverem vivos ou não quiserem te acolher, a Espelho Quebrado estará sempre de portas abertas. Ela está chamando atenção nas redondezas. Preciso de alguém para me ajudar. — sorriu.

Os olhos de Einar se arregalaram, surpresos. Aquela Estalajadeira realmente tinha nada contra Cavaleiros-Monges, ao que parecia... Não apenas o tinha acolhido na Estalagem, como agora lhe oferecia um emprego. Não exatamente remunerado, provavelmente, mas teria um teto e comida. Mais do que muitos na mesma condição podiam dizer.

Franziu as sobrancelhas, o couro do monóculo se enrugando enquanto a olhava com desconfiança.

— No que eu poderia te ajudar? Você é uma feiticeira muito habilidosa, duvido que precise da ajuda de alguém pra manter a Estalagem funcionando.

O Silfo ficou inquieto nos braços de Estelia’Fal’Ima, e ela o deixou ir; o gato se desfez em névoa e reapareceu na cabeça de Einar, arranhando o couro cabeludo antes de pular para o chão. O homem resmungou um pouco, irritado com o quanto aqueles seres eram temperamentais, sem nem saber o que fizera para irritá-lo, enquanto a Estalajadeira abafava o riso. O Silfo devia ser uma criança ainda, era a única explicação.

— É que eu tenho uma doença que me impede de sair ao sol. Minha pele se queima muito facilmente, formando bolhas. — ela voltara a se apoiar na parede, os braços cruzados à frente dos seios. O Cavaleiro-Monge apoiou o queixo numa mão, curioso, antes de terminar o caldo, o único alimento servido que ele ainda não devorara.  Já ouvira falar em doenças como aquela, normalmente em pessoas de Arcris, Alzú ou Ulier, mas nunca conhecera alguém que a tivesse. — Geralmente, os favores que cobro são a busca de suprimentos e outras coisas em Cilsan, ou produtos das fazendas. Só que Cilsan é longe, e atrapalho algumas pessoas assim, já que tudo que as Ninfas carregam são cartas e Mensageiros são caros. E quanto mais gente para na Estalagem, mais preciso de certas coisas.

— Entendi. Você precisa de alguém cuja tarefa de ir e voltar da cidade e das fazendas não atrapalhe a vida. — endireitou-se no banco, dando uma colherada no caldo, a testa enrugada.

Era uma oferta tentadora.

Einar não era bobo. Sabia que sua condição de ex-morador de Orichalcum o transformava num indesejado.

Não pária, porque as pessoas sabiam que, se tivera permissão para sair, era porque não era realmente perigoso. Mas elas só viam o símbolo em sua testa. Não sabiam quem ele era, de onde viera ou que fizera para ganhar aquele ômega. Mas aquela marca trazia o estigma de “Traidor dos Reinos”, mesmo que ele soubesse que significava muito mais; geralmente, só os acusados desse nível de traição paravam no Mosteiro-Prisão, e ninguém queria ser visto confabulando com traidores. Apesar disso, pessoas conscientes dos jogos de poder da nobreza e de que nem todos eram realmente culpados do que eram acusados davam o benefício da dúvida, o suficiente para que Cavaleiros-Monges tivessem alguma chance de continuar vivendo.

Só que, geralmente, iam parar em trabalhos perigosos. Mineradores, caçadores, lenhadores... Trabalhos cujo principal perigo era a ausência de barreiras contra os seres do Espelho. Raramente a família do acusado o ajudava de alguma forma, caso fosse viva. Os Monges tinham lhe avisado que não seria fácil.

Terminou o caldo, deixando a colher de alumínio repousar na tigela de vidro, observando a silenciosa Estalajadeira de forma intrigada.

— Por que fez essa oferta justo pra mim? — perguntou, afinal, antes de terminar com o vinho de amora na caneca. Viu-a sorrir de relance.

— Porque você é alguém que precisa de um emprego e que ainda não prendeu-se a lugar nenhum. Os outros que passam por aqui, ou já possuem emprego, ou já estão presos a algum lugar.

Deixou a caneca no balcão, a expressão séria se fixando na jovem, pensando. Era uma justificativa válida, mas não o suficiente para ele.

— Vou pensar na proposta... Mas antes, vou tentar descobrir o que foi dos meus pais. — a Estalajadeira de novo inclinou a cabeça como um cervo, sorrindo. Einar se levantou do banco, esticando os braços e pernas. — Boa noite. — fez uma reverência para Estelia’Fal’Ima, que a respondeu, seus mesmos trejeitos presentes, antes de começar a caminhar para a escada lateral ao balcão.

— Não esqueça que me deve uma resposta! — Einar ouviu ela gritar quando estava no meio da escadaria, decifrando um tom de riso em sua voz.

Quando abriu a porta de seu quarto e se enfiou debaixo do cobertor, após tirar o monóculo do rosto, imaginou se ela já não tinha visto sua provável resposta nas cartas antes mesmo de fazer a oferta; era uma Vidente, afinal. Então, adormeceu profundamente, como há anos não dormia.



Fechou a porta da cozinha atrás de si com cuidado, observando a esponja lavar a louça na pia e as panelas tampadas com restos de comida no fogão. Com um suspiro, apoiou as costas na madeira e se deixou escorregar até sentar no chão, as pernas meio espalhadas, os solados de borracha das botas produzindo um longo rangido pelo atrito com a madeira. Piscou os olhos verdes, não sabendo exatamente o que sentir.

Einar estava vivo. Essa constatação, ao vê-lo ali, no salão da Estalagem, fez seu coração dar um salto de alegria em seu peito. Era fácil lembrar os sete anos de sua vida em que ele estivera presente em quase todas as horas de seu dia. Fácil e, depois de tudo, bem-vindo.

Desde que fechara seu pacto com uma Sybilla, fugira de procurar visões com o seu passado. Não queria confirmar quem ainda vivia e quem morrera. A dúvida era mais doce e a fazia continuar em frente. E Einar era um desses elementos de seu passado que ela preferia não descobrir, afinal, se a flechada na cabeça e o corte de espada não o tinham matado.

Sabia, é claro que sabia, que por aqueles dias um Cavaleiro-Monge chegaria a Espelho Quebrado, e que caso tivesse sucesso em convencê-lo, seria um auxílio precioso para a Rebelião. Mas o contrato com o ser do Espelho tinha uma simples especificação: ela não podia ver o rosto ou saber a identidade de alguém que chegaria em seu futuro antes da hora. De acordo com a Sybilla, era para que a Estalajadeira mantivesse seus sentidos alertas e não se acomodasse.

E agora, ele estava ali, no andar de cima. Ironicamente, de estômago cheio com algo que ela preparara com as próprias mãos, em um lugar que lhe pertencia e que ela cuidava sozinha. Tiron e Kamil teriam uma absurda crise de risos só de imaginarem o cenário, caso estivessem vivos.

Um sorriso deslizou por seus lábios. Como gostaria de poder falar quem realmente era, de jogar os braços ao redor de seu pescoço e girar pelo salão da Estalagem como costumavam fazer no Palácio.

Agradeceu às Três Luas por Einar nunca ter sido muito bom com sianen, caso contrário, ele saberia que a Corça de Olhos Vermelhos, nativa de Vidro e da qual seu nome vinha, era chamada de “Estelia’Fal’Ima” no país de onde ela alegava vir, e poderia fazer uma perigosa associação. Muito perigosa, pois ainda faltavam muitas visões se concluírem para que ela pudesse se revelar.

Infelizmente.

Viver sob aquela pele que não era a sua, fugindo do sol, caminhando nas sombras, fazendo o possível para não ser quem era e ainda assim, procurando não se esquecer, estava lhe enlouquecendo.

Com um novo suspiro, disse a si mesma que apenas ficar ali, observando o tempo e desejando ser quem era, não a levaria adiante, à mudança, apenas a manteria na estagnação; levantou-se, tirando o Baralho de Vidro de dentro de seu corpete, embaralhando as cartas e retirando três do finíssimo e resistente vidro, dispondo-as sobre o balcão de pedra. Precisa verificar, uma vez mais. Garantir que tudo estava correndo nas linhas gerais que previra antes de ir para a Estalagem.

A Mensagem, com sua águia mecânica a voar e carregando um pergaminho enrolado em seu bico, os olhos de metal e vidro brilhando num tom ameaçador e de aviso. O Guardião, com sua armadura de vellum, somente os olhos expostos pelo capacete, determinados, os braços estendidos à frente com as mãos apoiadas no punho de uma longa e fina espada vermelho pôr do sol. O Lobisomem, as três luas iluminando um imponente, perigoso e gigantesco lobo negro à beira de um lago, onde um homem de expressão tão perigosa e imponente quanto o lobo era refletido.

Deslizou os dedos pelas superfícies lisas, sentindo as interpretações se encaixarem em seu cérebro conforme o conhecimento intrínseco dos significados de cada carta deslizava por sua memória. Algo impossível de ser ensinado, que só podia ser absorvido do sangue de uma Sybilla. Qualquer não-Vidente que visse aquelas cartas, veria somente as imagens gravadas, e mesmo que soubesse o que, exatamente, representavam e significavam, nunca conseguiriam interpretar corretamente.

O Lobisomem e o Zhuran que vira alguns meses atrás... Aproximavam-se. Em breve, chegariam a Espelho Quebrado. E não eram apenas dois importantes aliados, mas trariam uma mensagem. Não para ela, mas para Einar. E era algo de mão-dupla: o Cavaleiro-Monge também teria uma mensagem para eles. Teve a sensação de que a mensagem lhe serviria também, embora não fosse ser totalmente bem-vinda. Claro, só existiriam mensagens se Einar estivesse ali, na Espelho Quebrado, ajudando-a. Considerou aquela leitura um bom indício de que ele aceitaria a proposta.

Ela não sabia quais eram as mensagens. Não ainda, mas saberia quando a hora chegasse.

Guardou o baralho novamente em seu corpete e verificou o relógio escondido num dos bolsos do vestido. O ponteiro menor apontava o catorze grande e dourado dos dezesseis números, e o maior para o pequeno vinte em preto dos outros sessenta números.

Abriu a porta para o salão, acenando para a placa de madeira pintada e guardada embaixo do balcão se acomodar à vista, um “Volto Logo” escrito numa letra fluída. Então, trancou aquela porta antes de se dirigir para a que se encontrava nos fundos da cozinha, meio oculta por uma cortina cinza-escuro, e descendo em passos rápidos e firmes a escada em caracol atrás de tal porta.



A Estalajadeira mal lhe entregara as roupas limpas e secas mais cedo, e Einar já começara a se preparar para partir; mal era doze da manhã, e já estava terminando de arrumar os alforjes e cantis em Pzia, a capa pendendo de seus ombros, quando viu a Estalajadeira vir em sua direção, carregando um pequeno saco de couro e algumas engrenagens de prata na outra mão.

— Tome. — deu-lhe os três Argentumies que ele pagara mais cedo pela noite, refeição e lavagem das roupas. — Vou cobrar um favor: preciso pagar os impostos do mês, e o rapaz que costuma levar o dinheiro até Cilsan está doente e não vai poder sair de casa por um tempo.

O Cavaleiro-Monge ergueu uma sobrancelha quando ela deixou o pacote cair em sua mão. Tudo bem, ela era uma Vidente, mas ainda assim, era confiança demais em tão pouco tempo.

— E se eu fugir com o dinheiro? — perguntou com um ar de suspeita. A Estalajadeira riu com gosto.

— Você não vai. Não faz parte de quem você é roubar o dinheiro alheio. — cruzou os braços, inclinando o quadril para a direita e atraindo a sua atenção por um instante ao, novamente, o movimento o lembrar da Princesa-Herdeira, que o fazia muito quando aborrecida, o que Estelia’Fal’Ima parecia estar no momento; lembrou o quanto detestava quando Videntes mostravam saber mais sobre alguém do que a própria pessoa.

— Você tem muita fé nas pessoas. — procurou não demonstrar o quão correta ela estava sobre seu caráter, uma expressão fechada no rosto, montando o hikmat rapidamente e vendo um sorriso discreto se formar no rosto dela.

— Sou uma crente inveterada. — descruzou os braços, sinalizando para uma das portas do estábulo se abrir. — Não esqueça a minha oferta.

— Não vou esquecer. — garantiu antes de guiar Pzia para fora do ambiente; passou pelo Silfo em forma de gato, observando-o do lado de fora com seus olhos brancos, uma brisa suave balançando seus cabelos e os pelos do felino.

Com mais alguns passos, alcançou a estrada de terra transformada em lama pela chuva que caíra durante toda a noite, percorrendo-a para o norte, em direção à Cilsan, sua cidade natal, o barulho do sino no pescoço do Silfo despedindo-se dele conforme se afastava da Espelho Quebrado. O fato da Estalajadeira em momento algum ter dito “Adeus” o fez imaginar se ela realmente já não sabia a resposta que lhe daria, algo que nem mesmo ele tinha certeza ainda.

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Gabi: Tá, tá... ¬¬