A Crente
“I want you to stay
I want you to believe
I want you to win the battles that
are given to you
Don't you want to stay?”
“Eu quero que você fique
Eu quero que você acredite
Eu quero que você vença todas as batalhas
impostas a você
Você não quer ficar?”
(The Believer — 30 Seconds to Mars)
A
Estalajadeira andava habilmente por entre as mesas redondas e cheias,
equilibrando duas bandejas com garrafas e canecas cheias de bebidas variadas,
outras duas bandejas flutuando acima de sua cabeça. Ria junto dos hóspedes e
frequentadores costumeiros da letra divertida e levemente obscena que dois
menestréis dedilhavam no violão e no violino Arcrisiano. Tocavam bem, mas não
com a maestria de um Musicista formado na Universidade de Música de Arcris,
capazes de trazer lágrimas aos olhos quando tocavam mesmo com as músicas mais
alegres.
O
gato branco e exótico com ares de silfo da Estalajadeira estava sentado no
balcão de cerejeira, balançando a cabeça no ritmo da música, soltando miados
longos e sonoros bem colocados em determinados pontos da canção, o que só
aumentava a comicidade da situação.
Ela
parou diante de uma mesa. Com alguns gestos, as garrafas se ergueram no ar e tornaram
a encher as canecas dos ocupantes. Ainda rindo, repetindo os gestos conforme
andava, foi servindo os clientes. Por vezes, parava, uma das bandejas
abandonando as mãos e flutuando no ar, e sacava alguma carta do Baralho de
Vidro aleatoriamente de dentro do corpete e lia o futuro, o passado ou o presente
de algum cliente, distribuindo conselhos gratuitamente.
Alguém
derramou cerveja no chão de madeira polido e começou a murmurar desculpas, mas
ela simplesmente riu; bateu no chão com o salto das botas, e o esfregão e o
balde acomodados num canto atrás do balcão se moveram para arrumar a pequena
bagunça enquanto ela tornava a encher a caneca do frequentador.
E,
naquele ritmo estranho que ela criava todos os dias nos últimos cinco meses, a
animação seguiu noite adentro, a lareira crepitante e as canecas cheias de
álcool aquecendo aqueles homens e mulheres, endurecidos pela vida: comerciantes
membros de caravanas que pretendiam atravessar o Caminho Aberto na Cordilheira
do Vento ou descer para Arcris, homens que trabalhavam nas minas da Cordilheira
que os Silfos e Ninfas davam permissão de explorar, lenhadores que sobreviviam
da extração cuidadosa das árvores do Bosque de Prata e da Floresta dos
Espelhos, fazendeiros, pescadores e lavandeiras que sobreviviam graças ao rio
Vellum, e até mesmo os quietos caçadores.
Todos,
em algum momento do dia, eram bem-recebidos pela Estalajadeira da Espelho
Quebrado. Bebiam e comiam do que ela servia e dormiam nas camas que ela
preparava, muitas vezes não pagando em dinheiro, mas em favores e mercadoria — buscar
ou levar algo para a cidade mais próxima, Cilsan, vigiar a Estalagem em alguma
noite que ela precisava sair, coisas assim; ninguém questionava, pois a
misteriosa Estalajadeira de pele escura que dizia ter nascido em Silvagenis
deixava claro a todos que possuía uma rara doença que a impedia de sair à luz
do sol. As pessoas tinham falado no começo, mas conforme ela os acolheu e
dirigiu a Estalagem sozinha, os rumores de que podia ser uma Dama-Girassol ou
uma Dama-Roseira disfarçada desapareceram.
Foi
quando quase todos estavam no estado melancólico que a bebedeira causava que o
salão da Espelho Quebrado se acalmou. Os menestréis guardaram os instrumentos e
comeram no balcão um pão de ervas e um suculento caldo de carne acompanhado de
uma caneca de hidromel, e a Estalajadeira sentou-se no espaço livre, seu gato
branco sentando-se em seu colo e começando a limpar as orelhas.
As
pessoas olharam para ela. Alguns suspiros se ouviram, e uma jovem lavandeira conseguiu
reunir coragem suficiente para expressar o que todos pensavam.
—
Vai cantar, Estalajadeira?
A
mulher de cabelos negros presos em dois rabos de cavalo ficou pensativa,
acariciando as costas do gato, os olhos deslizando pelo local cheio de olhos
ansiosos e expectantes. Suspirando, ela balançou a cabeça em afirmativa. Se
cantasse, aqueles que se arriscavam a viajar a noite iriam embora logo depois,
felizes ou tristonhos, dependendo da música, mas mais leves. Se não, sairiam
naquele instante, mergulhados no torpor do álcool, e pesados.
Já
fazia uma trezena desde a última canção. Raramente pediam por algo cantado por
ela, e apenas quando o fardo era pesado.
O que os
Alzú’Frigl estavam fazendo com o reino?, se permitiu
perguntar.
—
Que música gostariam de ouvir? — as pessoas começaram a cochichar umas com as
outras, torcendo-se nas cadeiras, discutindo e tentando chegar num consenso,
apesar da maioria não lembrar o próprio nome direito.
Os
cochichos se acalmaram, e um homem que não tinha bebido muito expressou o desejo
da maioria.
—
Conhece a Canção de Nascimento de Lauré Vellum’Frigl? — ele perguntou em tom
baixo, olhando ao redor com medo, assim como todos os demais.
A
Estalajadeira prendeu a respiração, inconscientemente tensa, balançando a
cabeça lentamente, antes de confiar na própria voz. Qualquer um a vendo naquele
momento julgaria a tensão como fruto do medo de que homens do atual rei
estivessem ali, no salão.
—
Os Alzú’Frigl proibiram que a Canção de Nascimento da antiga
Princesa-Herdeira fosse cantada dentro
do Reino de Vidro quando ascenderam ao poder. — o tom de voz da Estalajadeira
demonstrava medo, enquanto olhava ao redor de forma cautelosa. Seu gato exótico,
pressentindo sua tensão, saltou de suas pernas e passou a andar por entre as
mesas, como um espião, até ir para a noite fora da Espelho Quebrado; o andar silencioso,
rápido e preciso e os olhos sombrios e alertas pareciam querer dizer que
procurava sinais de que homens dos Reflexos de Prata estavam entre aquelas
pessoas.
—
Por favor, Estalajadeira. Você sabe que todos, ou pelo menos quase todos, deste
lado da Cordilheira, sempre foram fiéis aos Vellum’Frigl. Eles foram
dizimados... Nos deixe lembrar à que Lauré estava destinada... — a mesma jovem
lavandeira falou, os olhos brilhantes e suplicantes num rosto sofrido com o
trabalho duro todos os dias debaixo do sol inclemente.
—
E se houver algum homem deles aqui, ou se os soldados quiserem prendê-la por cantar
a Canção, nós lutaremos por você! Você fez mais por todos nós que qualquer um
deles! — um bêbado animado gritou no meio dos frequentadores, e berros de concordância
se seguiram. Alguém disse que fora um antídoto que ela fizera que salvara seu
filho de uma picada de cascavel, e outro que teria perdido a mão num acidente
na fazenda se não fosse por ela.
A
Estalajadeira era uma dessas feiticeiras que não apenas usava energia mental e
espiritual apenas na telecinese, como também era versada na arte da cura; a
combinação não era incomum, mas a presença dela longe dos hospitais sim. Em seu
pouco tempo na região, salvara vidas o suficiente para se tornar referência
para a população local afastada dos centros urbanos.
A
mulher suspirou, derrotada. Bateu palmas algumas vezes e fez diversos gestos
com as mãos e a cabeça, enviando e controlando fiabos de energia mental e
espiritual. O fogo na lareira diminuiu, a iluminação suave criando uma atmosfera
com a fronteira indefinida entre o sonho e o pesadelo; um frio pequeno se instalou
nos corações e nos corpos presentes, e todos puxaram mais as roupas para perto
do corpo; com exceção dela, da Estalajadeira, com os braços e ombros desnudos,
descendo do balcão de cerejeira.
Ela
deu um passo, as mesas e cadeiras se mexendo suavemente, abrindo caminho, enquanto
uma nota aguda e tristonha ecoou; parecia o som de uma lira.
Deu
mais um passo, e de novo os móveis se mexeram suavemente, não incomodando seus
ocupantes, e a mesma nota aguda de lira soou, dessa vez acompanhada do delicado
e triste som de uma cítara. Os frequentadores não sabiam de onde aqueles sons
vinham, mas sabiam que era devido à feitiçaria da Estalajadeira. Provavelmente,
instrumentos ocultos em algum ponto da estalagem que agora tocavam,
incentivados pelas ordens dadas pela sua energia mental e espiritual.
Ela
deu mais um passo e parou. Notas tristes e agudas de uma lira e delicadas e
harmoniosas de uma cítara começaram a ecoar em sequência. Com algumas notas, a
voz delicada da Estalajadeira começou a cantar, evocando as visões que um
Vidente tivera sobre a Princesa-Herdeira quando ela nascera e que um Musicista
colocara em notas e melodia, de acordo com o costume de Rosean para cada
criança que nascia.
O
Cavaleiro-Monge balançava sobre o hikmat
grande e pesado, o sono e o cansaço arrastando suas pálpebras para baixo, sua
própria montaria cansada, os passos mais lentos do que nunca. A noite
obscurecida pelas nuvens cinzentas de chuva pesava acima de sua cabeça enquanto
seguia pelo Caminho Espelhado, cercas protegendo plantações diversas no lado
norte, ao sul a borda da Floresta dos Espelhos a uns quarenta metros. Para a
frente, oeste, sabia que as montanhas da Cordilheira do Vento eram visíveis
mesmo daquela distância, embora não naquele momento.
Já
não parava para acampar fazia dois dias, desde que um grupo de ladrões quase o
matara enquanto dormia. Pzia percebera o perigo e o acordara com um cutucão da
pata, o que resultou em Einar saltar de pé, alerta, as pistolas de energia
espiritual brilhando em tons de verde conforme seus projéteis vermelhos e azuis
surgiam e atingiam o grupo. Uma rápida busca revelara que faziam parte de um
grupo maior, e que por isso devia se apressar a chegar à cidade mais próxima,
onde poderia encontrar abrigo e trabalho — embora soubesse que dificilmente
alguém contrataria um Cavaleiro-Monge, muito menos abrigar um. Se não
conseguisse trabalho em Cilsan, assim como não conseguira em Virenis, teria de
apelar para as minas ou para qualquer outro tipo de trabalho perigoso fora das
barreiras.
Pensou
com melancolia, enquanto seguia pela terra batida, que três anos atrás, quando
os Vellum’Frigl reinavam, ladrões e assassinos precisavam tomar muito cuidado:
se fossem pegos, as opções eram o Mosteiro, o carrasco, ou o Deserto de Vidro
sem nada que os protegessem. Nenhuma gangue de ladrões teria tido coragem de se
formar na época dos Vellum — e nem necessidade, ele admitia.
Suspirando,
balançou a cabeça para acordar, se repreendendo por pensar naquela época que
nunca voltaria — estavam todos mortos, mesmo a Princesa-Herdeira a quem ele
protegera desde o início de seu treinamento como Guarda Real do Palácio Celeste.
Ele vira quando a flecha de um Guarda traidor atingira as costas de Lauré quando
ela alcançara a borda da Floresta de Vidro. E ele mesmo se esvaindo em sangue
naquele momento, nada podia fazer por ela. Espera que as ninfas que dominavam a
floresta tivessem dado um enterro digno à princesa
Continuou
seguindo seu caminho, dessa vez mais atento aos arredores. Após algum tempo,
viu ao longe luzes recortadas contra a noite.
Franzindo
as sobrancelhas, Einar puxou um mapa do Reino de um dos alforjes da sela, junto
de um vidro-de-luz gravado com uma série de runas. Olhando ao redor
cautelosamente, murmurou uma palavra e o vidro brilhou com uma suave luz
amarelada. Mantendo o vidro na mão, desdobrou o mapa e o apoiou na parte da
frente da sela. Com os dedos sobre o Bosque de Prata, seguiu o Caminho
Espelhado até a Floresta dos Espelhos. De acordo com seus cálculos, devia estar
chegando ao ponto que o caminho virava e subia até Cilsan, a cidade onde ele
nascera e se criara antes de partir para o Palácio Celeste e seu treinamento, e
onde esperava encontrar os pais, se estivessem vivos — os três anos no Mosteiro
tinham isolado-o de tudo e todos.
Se
ele bem se lembrava, existia uma estalagem abandonada naquela curva da estrada.
Dobrando
novamente o mapa e apagando o vidro-de-luz, voltou a fitar as luzes recortadas
que se aproximavam lentamente. Talvez aquela fosse a Estalagem que ele e as
demais crianças de Cilsan cujos pais eram caçadores ou lenhadores brincavam que
era assombrada por seres do Espelho. Alguém a ocupara.
—
Vamos, Pzia. Logo vamos poder parar e descansar. — só torcia que a estalagem
não tivesse se transformado num covil de alguma gangue.
Lentamente,
gotas começaram a cair do céu, aumentando a intensidade conforme avançavam na
direção da estalagem. A estrada de terra transformou-se em lama, e Einar
agradeceu mais uma vez que o Mosteiro tivesse lhe dado um hikmat, e não um cavalo, ou estaria com problemas. As patas largas
e de couro grosso davam ao animal pesado uma estabilidade que os cascos de um
cavalo não teriam no Caminho Espelhado.
Ao
menos, não haviam raios, o que era raro ao se considerar as chuvas típicas do
Reino de Vidro.
Quando
se aproximou da estalagem, viu uma placa de madeira com um espelho trincado e
com um rombo no meio gravado com fogo, as palavras “Espelho Quebrado” abaixo da
gravura; desmontou do hikmat, guiando Pzia suavemente pela rédea até a
construção mais baixa com portas largas que ele lembrava ser o estábulo — mesmo
que antes aquelas portas não existissem —, enquanto a chuva continuava caindo.
Por vezes, a lama quase o fez desabar, mas a presença da montaria ao seu lado o
estabilizou.
Um
gato branco parou à sua frente, fazendo-o estancar no lugar. Piscou, vendo que
a água e a lama pareciam não afetá-lo: seus pelos continuavam alvos e esvoaçantes,
um sino de opala reluzente em seu pescoço. Os olhos brancos do felino o
encararam, sérios e sombrios, e então o pequeno animal correu para o lado,
sumindo em névoa e reaparecendo alguns metros à frente. Pulou, e então de novo
se desfez e reapareceu, dessa vez em cima de um dos grossos galhos do salgueiro
morto que ficava em frente à estalagem.
Inclinou
a cabeça, sentindo os músculos do rosto puxarem os lábios num sorriso: um Silfo
menor. Quem quer que dirigisse o estabelecimento, tinha um ser do vento ao seu
lado. Com certeza não eram ladrões. Einar sabia muito bem que os Silfos nunca
apoiariam pessoas que se aproveitavam do suor de outros. Era um alívio
constatar que estaria entre pessoas decentes.
Balançando
a cabeça, continuou guiando o hikmat para o estábulo. Quando passou próximo à
construção que era a estalagem propriamente dita, ouviu o som de uma lira, uma
cítara e de uma voz, delicada e que conseguia facilmente interpretar o
sentimento que permeava a canção.
A
voz lhe pareceu extremamente familiar; por um instante, achou estar ouvindo a
Princesa-Herdeira cantando. Ser a Canção de Nascimento da própria, que Lauré
estava sempre cantarolando, independente de onde ou do que estivesse fazendo,
não ajudou: não fosse a lembrança da Princesa-Herdeira caindo com uma flecha
nas costas, teria escancarado a porta da Estalagem para ver com seus próprios
olhos.
Respirou
fundo.
É alguém com a
voz extremamente parecida. É só isso. Procurou se
convencer, com pouco sucesso. Seu lado irracional continuava a lhe dizer que
era Lauré quem estava lá dentro, cantando, e que as Canções de Nascimento ainda podiam ser reais. Que ainda
existia esperança, além da que ele dava a si próprio ao cantarolar aquela
melodia em seus piores momentos no Mosteiro-Prisão. Mesmo que não mais
acreditasse naquela milenar tradição, não podia negar que só sobrevivera à
Orichalcum e aos outros presos, com a mente sã, graças àquela canção e à
memória da Princesa-Herdeira cantando-a.
Desistiu
de tentar fazer a racionalidade imperar, de dizer a si mesmo que estava delirando
e que não era a Princesa-Herdeira, somente alguém de voz incrivelmente
parecida, procurando outra coisa em que focar a mente.
Sentiu
Pzia cutucar seu braço, interrompendo os pensamentos de forma bem-vinda. Rindo
da impaciência do hikmat, caminhou em
direção à construção de madeira, empurrando uma das largas portas o suficiente
para que o animal passasse, encostando-a assim que estava debaixo do teto.
O
animal caminhou lenta e tranquilamente para os fundos do estábulo, empurrando a
porteira de uma das baías com sua cabeçorra. Einar seguiu atrás, desfazendo os
laços da capa encharcada e a pendurando num gancho de uma das colunas de
sustentação, dando um breve olhar aos cavalos de carga, dois kirins e a algumas
carroças carregadas de mercadorias que se alojavam no espaço largo.
Andou
até a montaria, ansiosa por ter a sela carregada e os cantis de água tirados de
si, as patas de metal amassando ainda mais a terra batida e o feno espalhado.
Ainda rindo, Einar não demorou em retirar a sela e os alforjes, deixando alguns
no canto do espaço e levando só uma das mochilas. O animal começou a comer o
feno com plácida calma enquanto o Cavaleiro-Monge trancava a baía, ativando com
seus poucos conhecimentos de feitiçaria o encanto de tranca e alarme.
Olhou
ao redor por um instante, pensando se levava mais alguma coisa além da capa,
antes de sair do estábulo e caminhar no meio da chuva para a porta da estalagem,
as botas de couro afundando na lama. Não se preocupou em recolocar o tecido
marrom sobre seus ombros: já estava ensopado mesmo, mais um pouco de água não
faria diferença.
Empurrou
a porta devagar, vendo o salão cheio de homens e mulheres, contemplando uma
jovem negra de olhos verdes com um vestido em tons de azul cantando os últimos
versos da Canção de Nascimento; as peças que interpretavam o que era narrado
evaporaram ao final, quando ela fez o fogo na lareira aumentar e ele terminou
de fechar a porta. Sorriu discretamente com a qualidade das ilusões produzidas,
que pareciam tão reais quanto as pessoas que assistiam a apresentação.
Einar
admitia: só percebera se tratar de ilusões porque vira muitas, tanto quando
treinara para ser da Guarda Real, como quando fora transformado num
Cavaleiro-Monge. Era um controle quase tão preciso quanto o que os Monges
possuíam.
As
pessoas começaram a se levantar e a sair da estalagem ou subir para seus
quartos. Os que passavam por ele para atravessar a porta, ameaçavam
cumprimentá-lo, mas fechavam a boca com um estalo ao ver a cicatriz de ômega no
meio de sua testa. Alguns, mais ousados, conseguiam acenar com a cabeça, embora
olhassem para os pés. Quase todas as pessoas que encontrara nas últimas trezenas
reagiam de modo pelo menos similar.
Aquela
forma de agirem fez com que engolisse em seco, a garganta apertada. Sim, estava
marcado como um ex-residente de Orichalcum, mas seu único crime fora não jurar
lealdade aos Alzú’Frigl quando mataram todos à quem ele servira por sete longos
anos. Procurou se consolar: aquelas pessoas, e todas as demais que encontrara
desde que saíra do Mosteiro, não sabiam daquilo. Não o conheciam, não sabiam
quem era. Viam apenas a marca de que era um traidor.
A
mulher olhou para ele com um ar estranho, como que intrigada, o sorriso em seus
lábios parecendo tremer antes de se firmar de novo, segundos antes dela começar
a andar em sua direção. Imaginou que fosse a dona da Estalagem e que agiria
como todos os hospedeiros, estalajadeiros e taberneiros que encontrara nas
últimas trezenas: muito educadamente lhe ofereceria comida e então diria que os
quartos estavam cheios, mas que não cobraria caso decidisse dormir no estábulo,
na cozinha ou algo assim. Era o tratamento comum para Cavaleiros-Monges. Outros
eram bem menos educados e se limitavam a expulsá-lo.
A
mulher parou diante dele, ainda sorrindo, antes de fazer uma pequena
reverência. Einar sentiu surpresa percorrer seu cérebro e membros enquanto
retribuía o respeitoso cumprimento. Notou também, com um canto da mente, como o
trejeito de apoiar levemente a mão esquerda no quadril e a direita puxar um
pouco do tecido da saia do vestido para frente, torcendo-o de leve, lembrava os
gestos da Princesa-Herdeira .
Procurou
sufocar aquele sentimento de reconhecimento. Aquela mulher nunca poderia ser
Lauré.
—
Gostaria de conhecer seu quarto antes ou depois de comer algo? — perguntou, acenando
as mãos para a mochila e para a capa ensopada, que se agitaram até que ele as
soltasse. Ambos os objetos começaram a flutuar próximos à Estalajadeira.
O
rapaz sorriu, novamente surpreso com a diferença de tratamento que a mulher lhe
dispensara. Aparentemente, estava diante de uma das poucas pessoas no mundo que
não considerava todo e qualquer Cavaleiro-Monge um traidor. Era uma bem-vinda
mudança.
—
Antes. — respondeu, observando os olhos de esmeraldas. Era estranho. Sentia sua
pele pinicar e se arrepiar como se milhares de formigas estivessem correndo
rapidamente por si. Uma das sensações de
ter Éter próximo de si numa atividade constante que ele aprendera e decorara no
Mosteiro.
Olhou
ao redor, tentando descobrir o que na Estalagem poderia ter um encanto que necessitasse
de tal atividade constante — as barreiras para impedir que seres do Espelho conseguissem
entrar nas dependências do estabelecimento produziam uma sensação mais suave,
mais parecida com um canto de cigarra mil vezes mais baixo e mais contínuo.
Nada ali parecia estar de fato encantado. Focou de novo na Estalajadeira, mais
especificamente no colar de ferro com um cristal simples que envolvia seu
pescoço fino. Imaginou se a joia não era encantada; talvez um encanto de
proteção individual ou de linguagens, que produziam a mesma impressão.
Ela
sorriu de volta, balançando a cabeça em afirmação.
—
Então vamos. — indicou para que ele a seguisse. Enquanto caminhavam para a escadaria,
ela acenou para o esfregão e o balde cheio de água, que começaram a limpar o
chão, as cadeiras se erguendo e se pendurando invertidas nas mesas, bandejas
passando pelas mesas recolhendo copos, canecas, garrafas e pratos e sumindo
através da porta que, provavelmente, levava para a cozinha.
Agia
como qualquer feiticeiro dono de uma Estalagem, Hospedaria ou Taberna agiria, e
Einar apreciou os objetos se movendo sozinhos; sempre admirara como feiticeiros
controlavam bem a própria mente e espírito para fazer as coisas se movimentarem
sem precisarem tocar-lhes, às vezes sequer ver, dependendo do quão habilidosos
eram, além da capacidade de infundir a energia espiritual ao redor em suas
poções e a mental de forma a criar ilusões, enganando o cérebro ao alterar o
que ele via no momento.
Tinha
alguns conhecimentos, frutos de seus anos de treinamento, mas era consciente de
que nunca conseguiria ter o mesmo controle preciso que via na Estalajadeira.
Especialmente considerando a quantidade de objetos que ela controlava ao mesmo
tempo com tanta precisão, muito acima da média.
Quando
alcançaram o andar superior, Einar viu-se num pequeno corredor que se ramificava
em dois corredores mais longos e paralelos. As paredes de pedra ao redor eram
pontuadas por portas de madeira escura com números pintados em vermelho-vibrante.
—
Eu lhe ofereceria uma suíte, mas as poucas que a Estalagem possui estão
ocupadas pelos chefes de caravanas no momento... — ela ergueu os ombros com um
ar de desculpas, terminando de percorrer o corredor, que acabava num outro,
paralelo ao que a escada desembocava. A Estalajadeira parou diante de uma porta
que não possuía um número e virou-se para ele novamente. — Essa porta dá para a
escada que leva aos salões de banho.
Após
lhe indicar a porta, a Estalajadeira pegou o molho de chaves que estava
pendurado no corpete e abriu uma porta próxima, na lateral da construção, e
entrou no quarto. Era de tamanho mediano; na parede à direita, havia uma
pequena lareira apagada; à esquerda, uma cama de solteiro com um cobertor feito
aparentemente de algodão-nuvem. Encostado aos pés da cama, um baú da altura de
uma mesa, com prateleiras na parede de pedra e um banquinho encostado na parede.
O baú, com uma folha de alumínio cobrindo o tampo, podia ser usado como escrivaninha,
do jeito que os quartos pequenos de Estalagens costumavam fazer. Na parede de
frente para a porta, uma janela simples e ampla com cortinas do mesmo tecido do
cobertor.
A
mulher acenou as mãos; as toras na lareira se acenderam facilmente com o
incentivo mental nas brasas abaixo, e um cabideiro saiu de detrás da porta, se
postando a frente do fogo vívido. Deixando um rastro molhado no chão recoberto
de madeira, a capa e a mochila se penduraram para secar. Einar a viu olhar ao
redor antes de balançar a cabeça com um sorriso satisfeito de quem tinha o
controle da situação e fixar a atenção nele.
—
Vou preparar... — analisou-o por um instante, antes de tirar um par de cartas
do corpete. Com um sorriso brilhante, ela mostrou-lhe Alma e Rio, a primeira
representada por uma menina refletida numa poça da água que mostrava uma velha
sorridente, e a segunda por um garoto sem reflexo correndo pela superfície de
um rio no mesmo rumo da água. — Pão de ervas, caldo de carne, torta de couve e
uma caneca de meio-litro de vinho de amora!
Einar
riu com um pouco de surpresa. Aquela Vidente era realmente boa. Não sabia como
ela interpretara as cartas, mas ela acertara em cheio pelo que ele estava
faminto e qual a sua bebida favorita. Podia não acreditar nas Canções de
Nascimento há um bom tempo, mas já tivera provas suficientes de que o dom dos
Videntes era real.
—
Exatamente. Você é boa. Geralmente, erram minha bebida favorita. Falam apenas vinho.
— ela deu de ombros. — Meu nome é Einar. — estendeu a mão, que a Estalajadeira
apertou sem demora, sorrindo. — Como devo chamar quem me acolheu?
A
mulher riu, soltando sua mão, pegando uma chave do molho e entregando-lhe.
—
Sou de Silvagenis, então você pode imaginar como meu nome é complicado. Todos
me chamam apenas de Estalajadeira.
—
Eu insisto. — inclinou-se um pouco, como se fizesse uma pequena reverência. A mulher
balançou a cabeça.
—
Meus pais me chamaram de Estelia’Fal’Ima. E é só o primeiro. — Einar piscou, reconhecendo
os padrões do Reino cuja crença dizia que a simetria era algo que trazia
má-sorte: três palavras, todas com número ímpar de letras. Ficou curioso por
descobrir que marca e onde ela se encontrava que Estelia’Fal’Ima possuía, que
garantiria que o lado direito de seu corpo não fosse igual ao esquerdo e
vice-versa. O normal era que tal marca se encontrasse bem visível no rosto,
como era com a Rainha Suna, irmã-caçula do Rei de Silvagenis e esposa do Rei
Andres Vellum’Frigl.
Talvez
o Éter que ele sentia fosse por causa de um encanto para esconder tal marca. Algo
que a permitia mesclar-se melhor com o povo de Vidro.
—
Estalajadeira é melhor... — acabou falando, e a mulher riu.
—
Vou deixar sua refeição pronta no balcão.
—
Vou me lavar antes, então, não precisa ter pressa. — apressou-se a falar,
vendo-a sorrir.
—
Entendo. Bem, você também não precisa ter pressa. Vou ficar acordada por um bom
tempo ainda, por causa da chuva. — Estelia’Fal’Ima disse, desviando dele e
abandonando o quarto, suas botas soando na madeira conforme ela se afastava e a
porta se fechava atrás de suas costas. Ele sabia porque ela demoraria a ir
dormir. Caravanas talvez se atrasassem e pessoas que haviam partido retornassem
por causa de ladrões ou do aguaceiro que caía do céu.
O
rapaz observou novamente o quarto enquanto retirava as peças de armadura, o
colete de couro e a túnica e os pendurava no cabideiro para secarem. Procurou
na mochila uma muda de roupas, saindo e trancando a porta atrás de si antes de
ir até a porta que levava para os salões de banho.
A
escada era de pedra, não de madeira como a outra, e terminava num chão
igualmente de rocha. O material tinha um tom cinza claro, tão lustroso que
refletia a luz elétrica das lâmpadas. Pela primeira vez, imaginou o que
forneceria a energia da estalagem. No Mosteiro, o calor e o vapor das forjas de
vidro garantiam essa energia; as cidades grandes geralmente eram vizinhas a
rios e cachoeiras, onde usavam a força da água para gerar energia, e as que não
tinham tal mordomia, queimavam carvão e lixo. Alguns Reinos geologicamente em
vantagem usavam-se de gêiseres e vulcões.
Talvez
a Espelho Quebrado também usasse carvão e lixo, com uma mini-usina subterrânea.
Enquanto
abria a porta que possuía todas as sinalizações possíveis de que era a dedicada
aos homens, lembrou-se do Silfo que vira mais cedo. Se Estelia’Fal’Ima possuía
o favor dos Silfos e Ninfas, como certos fazendeiros, caçadores e lenhadores
tinham, ela poderia ter equipamentos que transformassem a força do vento em
energia, ou talvez a luz do sol. Eram tecnologias que os humanos ainda não
tinham desenvolvido por si próprios, e os Silfos e Ninfas não achavam prudente
compartilhá-las com todos.
O
salão de banho era grande e largo, com o teto forrado de madeira e aberturas no
alto das paredes para ventilação; o chão e as paredes eram de pedra lisa e
ainda do tom cinza-claro. A parede esquerda possuía pequenas cabines para as
necessidades fisiológicas; à direita, banheiras de pedra enfileiradas, com
bancos integrados à parede entre cada uma. Nos fundos, prateleiras embutidas
com produtos de higiene, como sabonetes, toalhas e outra infinidade de coisas.
No centro, ao nível do chão, uma piscina cheia de água quente, com o vapor se
erguendo e tornando o lugar agradavelmente abafado.
Entrou
definitivamente no ambiente, sentindo que atravessara uma parede de Éter, energia
de almas, espiritual e mental. Olhou para o chão, vendo runas encantadas na
soleira da porta que produziam uma barreira extra, caso algum habitante do
Espelho conseguisse atravessar para o mundo físico naquele lugar. Viu que as
paredes laterais à porta tinham espelhos cobrindo-as; com tantas superfícies
reflexivas no ambiente, não era de surpreender as proteções extras.
Com
um suspiro, se encaminhou para a última banheira, deixando a muda de roupas no
banco de pedra; tampou o ralo, abriu a torneira e apertou um botão com o
símbolo de fumaça gravada. Enquanto o recipiente enchia, foi até as prateleiras
no fundo pegar uma toalha e alguns dos produtos.
Despiu-se,
jogando as roupas ensopadas e imundas no cesto à frente da banheira. Conhecendo
bem os hospedeiros que também eram Videntes, a Estalajadeira não teria
problemas para dizer que aquelas roupas eram dele e não de algum outro hóspede.
Fechou a torneira, e antes de mergulhar na água límpida e que parecia muito
atrativa, com a pedra ao redor ficando embaçada com o calor, tirou o monóculo
de seu rosto, expondo o olho direito, castanho-claro.
Uma
flecha o atingira três anos atrás, por pouco não alcançando seu cérebro. A
demora em ser atendido impediu que conseguissem recuperar o original. Ao chegar
cego de um olho no Mosteiro Orichalcum, um dos Monges-Magos, junto de um médico
e de um Feiticeiro, usara um encanto perigoso que, se tivesse falhado, o teria
transformado num vegetal. O médico colocara o olho de um preso que morrera nele
e, com o encanto, o Monge-Mago ligara seu cérebro ao órgão, enquanto o
Feiticeiro usou suas poções e demais habilidades para que não ocorresse uma
rejeição, nem naquele momento, e nem no futuro. Como resultado, ele podia enxergar
quase como antes. O doador era um pouco míope, por isso o monóculo possuía
lentes especiais.
Mas
era um preço pequeno. Se tivessem usado o mesmo encanto para substituir partes
do corpo perdidas que era usado nos Mensageiros treinados em Orical pelos
Monges-Magos, estaria com uma placa de metal cobrindo um quarto da cabeça com
um olho de autômato como substituto.
Com
um suspiro, submergiu na banheira, sentindo os músculos relaxarem quase imediatamente.
O corpo era marcado por cicatrizes diversas, a maioria como vestígios de quando
os Alzu’Frigl deram o golpe. A maior cortava seu corpo desde o ombro esquerdo e
descia até o umbigo, grossa e um tanto pálida. Além da flecha na cabeça, aquele
golpe de espada quase o matara por falta de sangue.
Deu-se
alguns minutos para apenas aproveitar a água quente, antes de se contorcer para
pegar uma esponja vegetal e um sabonete que, pelo cheiro suave que lembrava
água da chuva e metal, era feito de flores de Briani, e começar a tirar quase
com raiva a sujeira que se acumulara.
Após
vestir-se, ao invés de voltar para o quarto, foi direto para o salão da
Estalagem, ajeitando o punho da camisa verde-escuro. O esfregão ainda dançava
acima do piso, desviando-se dele enquanto Einar caminhava para o balcão de
cerejeira; quando estava quase alcançando o móvel, a Estalajadeira surgiu
através do batente da porta que separava a cozinha do salão, equilibrando uma
bandeja cheia de pratos e uma caneca.
A
mulher abriu um sorriso ao vê-lo se aproximar, os pratos e a caneca se erguendo
da bandeja e se espalhando pelo balcão, ao redor de onde Einar se acomodara; a
Estalajadeira apoiou-se na parede atrás do balcão, observando o homem servir-se
com um sorriso discreto.
—
Quando tempo pretende ficar na região? — perguntou de repente, saindo de sua posição
relaxada para pegar o Silfo deitado no balcão, coçando-o atrás das orelhas.
Einar ouviu à distância o ronronado, sorrindo de leve enquanto mastigava um
pedaço do pão de ervas mergulhado no caldo de carne.
—
Ainda não sei direito... Quero descobrir se meus pais ainda estão vivos em
Cilsan. — respondeu com um tom distante, em seguida bebendo um gole generoso do
vinho de amora. — Se estiverem vivos, mas não quiserem assumir um filho que
seja um Cavaleiro-Monge e me ajudar... — deu de ombros. — Talvez tente achar
uma mina onde trabalhar, ou algo assim... — Estelia’Fal’Ima balançou a cabeça
de leve, ainda mimando o Silfo em forma de gato em seus braços.
—
Entendo... — ficou quieta por um instante. Einar percebeu os olhos verdes
deslizando pelo salão, provavelmente verificando se o esfregão fizera um bom
trabalho ao limpá-lo. — Sabe... Geralmente eu não cobro dinheiro dos hóspedes,
mas sim favores. — o homem sorriu com a declaração, não se surpreendendo: ela
era de Silvagenis, cuja prática mais comum era a troca de favores, e não de
dinheiro.
—
Já está pensando em que favor me pedir? — perguntou com um sorriso, dando uma
garfada na torta de couve. Ela ergueu os ombros com um ar culpado.
—
O trabalho nas minas é difícil... Lenhador e caçador, muito perigoso... — inclinou
a cabeça, um pouco como um cervo, na opinião de Einar. Engoliu em seco ao
lembrar que Lauré inclinava a cabeça daquele mesmo modo quando estava prestes a
usar a lógica para vencer uma discussão de forma a deixar os demais mudos. — Se
seus pais não estiverem vivos ou não quiserem te acolher, a Espelho Quebrado
estará sempre de portas abertas. Ela está chamando atenção nas redondezas.
Preciso de alguém para me ajudar. — sorriu.
Os
olhos de Einar se arregalaram, surpresos. Aquela Estalajadeira realmente tinha
nada contra Cavaleiros-Monges, ao que parecia... Não apenas o tinha acolhido na
Estalagem, como agora lhe oferecia um emprego. Não exatamente remunerado,
provavelmente, mas teria um teto e comida. Mais do que muitos na mesma condição
podiam dizer.
Franziu
as sobrancelhas, o couro do monóculo se enrugando enquanto a olhava com
desconfiança.
—
No que eu poderia te ajudar? Você é uma feiticeira muito habilidosa, duvido que
precise da ajuda de alguém pra manter a Estalagem funcionando.
O
Silfo ficou inquieto nos braços de Estelia’Fal’Ima, e ela o deixou ir; o gato
se desfez em névoa e reapareceu na cabeça de Einar, arranhando o couro cabeludo
antes de pular para o chão. O homem resmungou um pouco, irritado com o quanto
aqueles seres eram temperamentais, sem nem saber o que fizera para irritá-lo,
enquanto a Estalajadeira abafava o riso. O Silfo devia ser uma criança ainda,
era a única explicação.
—
É que eu tenho uma doença que me impede de sair ao sol. Minha pele se queima
muito facilmente, formando bolhas. — ela voltara a se apoiar na parede, os
braços cruzados à frente dos seios. O Cavaleiro-Monge apoiou o queixo numa mão,
curioso, antes de terminar o caldo, o único alimento servido que ele ainda não
devorara. Já ouvira falar em doenças
como aquela, normalmente em pessoas de Arcris, Alzú ou Ulier, mas nunca
conhecera alguém que a tivesse. — Geralmente, os favores que cobro são a busca
de suprimentos e outras coisas em Cilsan, ou produtos das fazendas. Só que
Cilsan é longe, e atrapalho algumas pessoas assim, já que tudo que as Ninfas
carregam são cartas e Mensageiros são caros. E quanto mais gente para na
Estalagem, mais preciso de certas coisas.
—
Entendi. Você precisa de alguém cuja tarefa de ir e voltar da cidade e das
fazendas não atrapalhe a vida. — endireitou-se no banco, dando uma colherada no
caldo, a testa enrugada.
Era
uma oferta tentadora.
Einar
não era bobo. Sabia que sua condição de ex-morador de Orichalcum o transformava
num indesejado.
Não
pária, porque as pessoas sabiam que, se tivera permissão para sair, era porque
não era realmente perigoso. Mas elas só viam o símbolo em sua testa. Não sabiam
quem ele era, de onde viera ou que fizera para ganhar aquele ômega. Mas aquela
marca trazia o estigma de “Traidor dos Reinos”, mesmo que ele soubesse que
significava muito mais; geralmente, só os acusados desse nível de traição
paravam no Mosteiro-Prisão, e ninguém queria ser visto confabulando com
traidores. Apesar disso, pessoas conscientes dos jogos de poder da nobreza e de
que nem todos eram realmente culpados do que eram acusados davam o benefício da
dúvida, o suficiente para que Cavaleiros-Monges tivessem alguma chance de
continuar vivendo.
Só
que, geralmente, iam parar em trabalhos perigosos. Mineradores, caçadores, lenhadores...
Trabalhos cujo principal perigo era a ausência de barreiras contra os seres do
Espelho. Raramente a família do acusado o ajudava de alguma forma, caso fosse
viva. Os Monges tinham lhe avisado que não seria fácil.
Terminou
o caldo, deixando a colher de alumínio repousar na tigela de vidro, observando
a silenciosa Estalajadeira de forma intrigada.
—
Por que fez essa oferta justo pra mim? — perguntou, afinal, antes de terminar
com o vinho de amora na caneca. Viu-a sorrir de relance.
—
Porque você é alguém que precisa de um emprego e que ainda não prendeu-se a lugar
nenhum. Os outros que passam por aqui, ou já possuem emprego, ou já estão
presos a algum lugar.
Deixou
a caneca no balcão, a expressão séria se fixando na jovem, pensando. Era uma
justificativa válida, mas não o suficiente para ele.
—
Vou pensar na proposta... Mas antes, vou tentar descobrir o que foi dos meus
pais. — a Estalajadeira de novo inclinou a cabeça como um cervo, sorrindo.
Einar se levantou do banco, esticando os braços e pernas. — Boa noite. — fez
uma reverência para Estelia’Fal’Ima, que a respondeu, seus mesmos trejeitos presentes,
antes de começar a caminhar para a escada lateral ao balcão.
—
Não esqueça que me deve uma resposta! — Einar ouviu ela gritar quando estava no
meio da escadaria, decifrando um tom de riso em sua voz.
Quando
abriu a porta de seu quarto e se enfiou debaixo do cobertor, após tirar o monóculo
do rosto, imaginou se ela já não tinha visto sua provável resposta nas cartas
antes mesmo de fazer a oferta; era uma Vidente, afinal. Então, adormeceu
profundamente, como há anos não dormia.
Fechou
a porta da cozinha atrás de si com cuidado, observando a esponja lavar a louça
na pia e as panelas tampadas com restos de comida no fogão. Com um suspiro,
apoiou as costas na madeira e se deixou escorregar até sentar no chão, as
pernas meio espalhadas, os solados de borracha das botas produzindo um longo
rangido pelo atrito com a madeira. Piscou os olhos verdes, não sabendo
exatamente o que sentir.
Einar
estava vivo. Essa constatação, ao vê-lo ali, no salão da Estalagem, fez seu
coração dar um salto de alegria em seu peito. Era fácil lembrar os sete anos de
sua vida em que ele estivera presente em quase todas as horas de seu dia. Fácil
e, depois de tudo, bem-vindo.
Desde
que fechara seu pacto com uma Sybilla, fugira de procurar visões com o seu passado.
Não queria confirmar quem ainda vivia e quem morrera. A dúvida era mais doce e
a fazia continuar em frente. E Einar era um desses elementos de seu passado que
ela preferia não descobrir, afinal, se a flechada na cabeça e o corte de espada
não o tinham matado.
Sabia,
é claro que sabia, que por aqueles dias um Cavaleiro-Monge chegaria a Espelho
Quebrado, e que caso tivesse sucesso em convencê-lo, seria um auxílio precioso
para a Rebelião. Mas o contrato com o ser do Espelho tinha uma simples
especificação: ela não podia ver o rosto ou saber a identidade de alguém que
chegaria em seu futuro antes da hora. De acordo com a Sybilla, era para que a
Estalajadeira mantivesse seus sentidos alertas e não se acomodasse.
E
agora, ele estava ali, no andar de cima. Ironicamente, de estômago cheio com
algo que ela preparara com as próprias mãos, em um lugar que lhe pertencia e
que ela cuidava sozinha. Tiron e Kamil teriam uma absurda crise de risos só de
imaginarem o cenário, caso estivessem vivos.
Um
sorriso deslizou por seus lábios. Como gostaria de poder falar quem realmente
era, de jogar os braços ao redor de seu pescoço e girar pelo salão da Estalagem
como costumavam fazer no Palácio.
Agradeceu
às Três Luas por Einar nunca ter sido muito bom com sianen, caso contrário, ele
saberia que a Corça de Olhos Vermelhos, nativa de Vidro e da qual seu nome
vinha, era chamada de “Estelia’Fal’Ima” no país de onde ela alegava vir, e
poderia fazer uma perigosa associação. Muito perigosa, pois ainda faltavam
muitas visões se concluírem para que ela pudesse se revelar.
Infelizmente.
Viver
sob aquela pele que não era a sua, fugindo do sol, caminhando nas sombras, fazendo
o possível para não ser quem era e ainda assim, procurando não se esquecer,
estava lhe enlouquecendo.
Com
um novo suspiro, disse a si mesma que apenas ficar ali, observando o tempo e desejando
ser quem era, não a levaria adiante, à mudança, apenas a manteria na
estagnação; levantou-se, tirando o Baralho de Vidro de dentro de seu corpete,
embaralhando as cartas e retirando três do finíssimo e resistente vidro,
dispondo-as sobre o balcão de pedra. Precisa verificar, uma vez mais. Garantir
que tudo estava correndo nas linhas gerais que previra antes de ir para a Estalagem.
A
Mensagem, com sua águia mecânica a voar e carregando um pergaminho enrolado em
seu bico, os olhos de metal e vidro brilhando num tom ameaçador e de aviso. O
Guardião, com sua armadura de vellum, somente os olhos expostos pelo capacete,
determinados, os braços estendidos à frente com as mãos apoiadas no punho de
uma longa e fina espada vermelho pôr do sol. O Lobisomem, as três luas
iluminando um imponente, perigoso e gigantesco lobo negro à beira de um lago,
onde um homem de expressão tão perigosa e imponente quanto o lobo era
refletido.
Deslizou
os dedos pelas superfícies lisas, sentindo as interpretações se encaixarem em
seu cérebro conforme o conhecimento intrínseco dos significados de cada carta
deslizava por sua memória. Algo impossível de ser ensinado, que só podia ser
absorvido do sangue de uma Sybilla. Qualquer não-Vidente que visse aquelas
cartas, veria somente as imagens gravadas, e mesmo que soubesse o que,
exatamente, representavam e significavam, nunca conseguiriam interpretar
corretamente.
O
Lobisomem e o Zhuran que vira alguns meses atrás... Aproximavam-se. Em breve,
chegariam a Espelho Quebrado. E não eram apenas dois importantes aliados, mas
trariam uma mensagem. Não para ela, mas para Einar. E era algo de mão-dupla: o
Cavaleiro-Monge também teria uma mensagem para eles. Teve a sensação de que a
mensagem lhe serviria também, embora não fosse ser totalmente bem-vinda. Claro,
só existiriam mensagens se Einar estivesse ali, na Espelho Quebrado,
ajudando-a. Considerou aquela leitura um bom indício de que ele aceitaria a
proposta.
Ela
não sabia quais eram as mensagens. Não ainda, mas saberia quando a hora
chegasse.
Guardou
o baralho novamente em seu corpete e verificou o relógio escondido num dos
bolsos do vestido. O ponteiro menor apontava o catorze grande e dourado dos
dezesseis números, e o maior para o pequeno vinte em preto dos outros sessenta
números.
Abriu
a porta para o salão, acenando para a placa de madeira pintada e guardada embaixo
do balcão se acomodar à vista, um “Volto Logo” escrito numa letra fluída.
Então, trancou aquela porta antes de se dirigir para a que se encontrava nos
fundos da cozinha, meio oculta por uma cortina cinza-escuro, e descendo em
passos rápidos e firmes a escada em caracol atrás de tal porta.
A
Estalajadeira mal lhe entregara as roupas limpas e secas mais cedo, e Einar já
começara a se preparar para partir; mal era doze da manhã, e já estava
terminando de arrumar os alforjes e cantis em Pzia, a capa pendendo de seus
ombros, quando viu a Estalajadeira vir em sua direção, carregando um pequeno
saco de couro e algumas engrenagens de prata na outra mão.
—
Tome. — deu-lhe os três Argentumies que ele pagara mais cedo pela noite,
refeição e lavagem das roupas. — Vou cobrar um favor: preciso pagar os impostos
do mês, e o rapaz que costuma levar o dinheiro até Cilsan está doente e não vai
poder sair de casa por um tempo.
O
Cavaleiro-Monge ergueu uma sobrancelha quando ela deixou o pacote cair em sua
mão. Tudo bem, ela era uma Vidente, mas ainda assim, era confiança demais em
tão pouco tempo.
—
E se eu fugir com o dinheiro? — perguntou com um ar de suspeita. A
Estalajadeira riu com gosto.
—
Você não vai. Não faz parte de quem você é roubar o dinheiro alheio. — cruzou
os braços, inclinando o quadril para a direita e atraindo a sua atenção por um
instante ao, novamente, o movimento o lembrar da Princesa-Herdeira, que o fazia
muito quando aborrecida, o que Estelia’Fal’Ima parecia estar no momento;
lembrou o quanto detestava quando Videntes mostravam saber mais sobre alguém do
que a própria pessoa.
—
Você tem muita fé nas pessoas. — procurou não demonstrar o quão correta ela estava
sobre seu caráter, uma expressão fechada no rosto, montando o hikmat rapidamente e vendo um sorriso
discreto se formar no rosto dela.
—
Sou uma crente inveterada. — descruzou os braços, sinalizando para uma das
portas do estábulo se abrir. — Não esqueça a minha oferta.
—
Não vou esquecer. — garantiu antes de guiar Pzia para fora do ambiente; passou
pelo Silfo em forma de gato, observando-o do lado de fora com seus olhos
brancos, uma brisa suave balançando seus cabelos e os pelos do felino.
Com
mais alguns passos, alcançou a estrada de terra transformada em lama pela chuva
que caíra durante toda a noite, percorrendo-a para o norte, em direção à
Cilsan, sua cidade natal, o barulho do sino no pescoço do Silfo despedindo-se dele
conforme se afastava da Espelho Quebrado. O fato da Estalajadeira em momento algum ter
dito “Adeus” o fez imaginar se ela realmente já não sabia a resposta que lhe
daria, algo que nem mesmo ele tinha certeza ainda.
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