“Enemy of mine,
I'm just a stranger in a strange
land.
Running out of time,
We better go, go, go!
Angel or demon,
I gave up my soul,
I'm guilty of treason,
I've abandoned control”
“Inimigo meu,
Sou somente um estranho em uma terra
estranha.
Correndo contra o tempo,
Melhor partirmos, partirmos,
partirmos!
Anjo ou demônio,
Desisti da minha alma,
Sou culpado de traição,
Abandonei o controle”
(Stranger In a Strange Land — 30 Seconds to Mars)
Era
o oitavo dia desde que Einar partira da Espelho Quebrado para Cilsan.
Era
o oitavo dia de espera da Estalajadeira, mesmo com outros onze prováveis à
frente.
Todos
os dias, às vezes mais de uma vez ao longo das longas trinta e duas horas, ela
colocava as cartas do Baralho de Vidro para saber como ele estava. Poderia ter
visões sem tal auxílio, mas a Sybilla com quem fechara o pacto aparentemente
vendara essa parte de seu dom para Einar momentaneamente.
Naquele
momento, logo após o almoço, com os hóspedes que não haviam partido descansando
em seus quartos ou contando histórias em frente à lareira enquanto fumavam seus
cachimbos e bebiam com calma plácida, ela colocava as cartas pela terceira vez
no dia.
Embaralhou
os finos objetos de vidro, os pensamentos concentrados no rapaz, sentada num
dos banquinhos à beira do balcão de cerejeira. Meltem, a criança Silfo em forma
de gato, se enroscou aos seus pés, bocejou e então se pôs a dormir. Respirou
fundo, antes de tirar uma carta aleatoriamente do meio do monte e colocar
diante de si.
A
Terra. Mostrava a beira ensolarada de um lago, com uma jovem de pele negra,
sangue se esvaindo para a água, os olhos fechados e um braço caído de forma
displicente dentro do lago. O reflexo mostrava algo diferente: uma cena de
noite estrelada, sem nenhuma das luas, com um rapaz de pele pálida segurando o
braço da jovem ferida, uma luz avermelhada partindo de sua mão e encobrindo a moça,
como que a curando. Dia e Noite. Morte e Vida. A carta do equilíbrio e da
neutralidade, era isso que a Terra era: nem Boa, nem Má. Equilíbrio.
Diante
de seus olhos, a imagem de Einar, pensativo enquanto bebia uma caneca de cerveja
numa taberna qualquer se fez presente. A expressão de seu rosto era pensativa.
Ele ainda não se decidira, ainda pensava se aceitava ou não sua proposta. Ainda
era como a Terra: não tomara partido.
Deslizou
outra carta aleatória, e diante de si estava o Reflexo, com uma jovem sorridente
segurando um buquê diante de um espelho, onde se mostrava um reflexo choroso
segurando uma faca ensanguentada e um coração pulsante, o peito com um buraco
onde deveria estar seu coração.
Franziu
a sobrancelha. O Reflexo, apesar do nome, era a carta do ir contra si mesmo. De
não seguir suas verdadeiras vontades. De se abandonar. O seu eu do mundo físico
mostrava uma coisa, mas o Reflexo não estava igual, não enganava: demonstrava a
cruel verdade. Era uma carta que ela raramente tirava, e quando o fazia, era para
o Zhuran que chegaria. Nunca aparecera para o Cavaleiro-Monge.
Algo
mudara ou mudaria, e apesar da carta, não sabia o quê. Apenas sabia que
qualquer que fossem os planos de Einar, ele precisaria mudá-los, mesmo não
gostando disso.
Tirou
outra carta. Rei e Rainha, com um homem e uma mulher, vestidos com seda e veludo
e com finas faixas de prata como coroas em suas testas, de mãos dadas de um
modo elegante e expressões nobres e inatingíveis no rosto. A carta dos pais,
dos senhores de um lugar. Ao lado do Reflexo, subitamente entendeu o que se
passaria, passara ou passava: ao encontrar os pais, teria de mudar seus planos
contra a própria vontade.
Sentiu-se
triste por saber disso.
Bateu
as unhas no balcão, produzindo um som ritmado, tentando decidir se tirava ou
não mais uma carta. Afinal, puxou mais uma, estendendo-a diante de si.
Fedra,
vestida de um modo típico de Szan de sedas esvoaçantes e sobrepostas, envolta
numa suave luz azul, de cabelos curtos e azul-marinho flutuando em torno do
rosto jovial e risonho. A carta do Futuro, representando a lua de menor ciclo.
Soltou um suspiro de entendimento, apoiando os braços cruzados sobre o balcão.
Futuro. Ainda não enfrentara a situação com seus pais. Einar precisaria da
jovialidade e do bom humor de Fedra para atravessar tal ocorrência, sem que a
situação mostrada no Reflexo o afetasse de forma permanente.
Ajuntou
as cartas repentinamente e escondeu o Baralho no corpete, se levantando e voltando
a cuidar da Estalagem.
Pediu
com simplicidade para as Três Luas que o Cavaleiro-Monge lembrasse dela e da
oferta de trabalho na Espelho Quebrado quando enfrentasse qualquer que fosse a
provação que encontrasse quando achasse os pais.
Terminou
de colocar as roupas de seda do chefe mercador de Läe para secarem ao natural
atrás do estábulo, onde a lavanderia coberta se encontrava, virada para a
Floresta dos Espelhos.
Preparou-se
para voltar para o interior da construção, lançando um olhar para a floresta de
seu lugar à sombra. Deu um sorriso discreto, até que viu Meltem correr na
direção das árvores, se transformando em brisa e rematerializando em gato uma
grande distância à frente, até sumir entre os troncos. Ele não costumava
percorrer grandes distâncias de tal forma, tão apressada. Sentiu o sangue da
Sybilla em suas veias e artérias pinicar sua carne de dentro pra fora.
Deu
um passo à frente, no limite da sombra produzida pelo telhado, a vontade de
seguir o Silfo quase irresistível, mas o sexto sentido em consequência do pacto
a segurou. Era muito arriscado.
De
repente Meltem voltou a aparecer, seguido de duas pessoas que ela aprendera a conhecer
nos últimos meses. A jovem Lima, segurando a lateral do corpo, o conjunto de
calça e camisa de tons de verde e marrom ensopados de sangue, com a pele, antes
morena, pálida como um tronco de briani. O outro braço estava em torno do
pescoço de Bianco, usando vestes similares e também manchadas de sangue, com
uma longa trança de cabelo loiro descendo pelas costas, caminhando com passos
mais firmes em sua direção; ambos carregavam facões e aljavas cheias de flechas
na cintura e um arco nas costas, mostrando, junto de suas roupas, que eram
caçadores.
A
Estalajadeira prendeu a respiração por um instante antes de entrar, deixando o
caminho livre para os dois assim como uma ilusão atrás de si para escondê-los;
esperou-os diante da porta oculta pela cortina de tom cinza-escuro, segurando o
tecido para o lado e a prancha de madeira aberta, algumas das coisas que
precisaria para cuidar da garota ferida levitando ao seu redor. Não precisou
esperar muito para que os caçadores a alcançassem e penetrassem na escuridão à
sua frente, o Silfo abandonando-os em direção ao salão. Seguiu-os logo depois,
o caminho fechando-se atrás de si.
O
trio desceu uma larga escada em caracol, com passos lentos por causa da garota
ferida. A jovem de olhos verdes ouvia, com um aperto no coração, os gemidos de
dor que cada degrau provocava na jovem de curtos cabelos castanho-claro. Tinha
de examinar logo o estado do ferimento.
A
escada desembocou no cômodo onde o gerador transformava em eletricidade a energia
captada pelos os painéis solares no teto da Estalagem. Estelia’Fal’Ima passou à
frente dos recém-chegados, usando sua Feitiçaria para que as pedras deslizassem
e revelassem um cômodo oculto.
Era
onde, oito dias antes, eles tinham se reunido com outras pessoas, e Lima,
Bianco e outros receberam algumas tarefas; se recusara a pensar até aquele
momento, mas as chances de que a missão deles houvesse falhado eram fortes.
Ainda não sabia. Seu dom nada lhe revelara, e estava tão focada em Einar que
raramente tirara as cartas para a Rebelião. Xingou-se por ser tão relapsa com
os rebeldes que ela própria vinha organizando.
Acenou
a mão, e um catre deslizou para fora da parede. Bianco não perdeu tempo em
deitar Lima no colchão, a Estalajadeira logo começando a examinar o ferimento,
as mãos acenando para que uma chaleira cheia de água começasse a aquecer no
fogão encostado em outra parede.
No
lado direito do abdome de Lima, um corte profundo e longo se abria, começando
no umbigo, subindo em transversal e terminando logo abaixo do seio. Era um
corte reto, de certa forma limpo, feito por uma lâmina afiada. Espada, faca de
caça ou adaga longa, imaginou.
—
Tire toda a roupa dela. — ordenou ao rapaz, movimentando-se com rapidez e destreza
para pegar água, álcool e panos. Precisava limpar o ferimento para ter uma
melhor noção de quão profundo era. Poderia ter usado sua energia espiritual
para sondá-lo, mas não queria desgastar-se; talvez precisasse dela para alguma
poção, ou para incentivar a cura.
Quando
voltou para o catre, Bianco terminava de tirar as calças de Lima. A pele pálida
estava pegajosa com o sangue coagulado, o líquido vermelho, de um tom mais
claro por ser das artérias mais profundas, ainda vertendo um pouco através do
corte. A jovem apenas os observava, os olhos azul-escuro arregalados e cheios
de dor, seguindo os movimentos da Estalajadeira.
—
Segure-a firme, Bianco. — então virou-se para Lima, não parando para ver se
Bianco seguiu sua ordem. — Vai doer. Muito. Mas é necessário. — falou,
despejando álcool sobre as próprias mãos.
A
jovem apenas acenou de leve a cabeça, vendo a mulher erguer a chaleira acima de
seu abdome e incliná-la até verter a água quente por sobre o ferimento.
O
corpo de Lima deu um tranco para o alto, antes de um louco instinto de
sobrevivência tentar tomar conta de si. Bianco segurava seus ombros contra o
catre, os músculos dos braços se retesando para mantê-la no lugar, mas deixando
os próprios braços dela livres. Os membros se balançaram para tentar afastar a
Estalajadeira, mas ela desviou-se habilmente, colocando a chaleira no chão.
—
Eu falei para segurá-la firme! — ralhou com o rapaz enquanto pegava os panos
para limpar o sangue em volta e que começara a escorrer com maior profusão.
Bianco movimentou-se com a rapidez que apenas um caçador poderia ter para
segurar os braços de Lima, praticamente deitando por cima da jovem para
mantê-la colada ao catre.
A
Estalajadeira limpou o ferimento com habilidade e agilidade, derramou mais um
pouco da água quente, e então pode finalmente descobrir a extensão dos
estragos. Em momento nenhum a jovem parara de tentar se livrar dos dois, de
resmungar e às vezes gritar de dor. Felizmente, Bianco agora segurava
firmemente a parte de cima de seu corpo, o poder mental de Estelia’Fal’Ima
mantendo as pernas no lugar.
Pode
ver as últimas costelas do lado direito, e apesar de estarem à vista, inteiras.
No abdome, a lâmina não cortara todas as camadas de músculos e tecido, e ela
não podia ver o intestino ou qualquer outro órgão. Quando constatou tal fato,
deu um longo suspiro de alívio: sem hemorragia interna ou um grande risco de
infecção generalizada. Poderia se focar em fazer aquele imenso corte se fechar
e em manter qualquer tipo de infecção afastada. Era algo até que simples de se
fazer. Lima tivera sorte. Muita sorte. Um pouquinho mais perto do agressor, um
pouquinho mais de força aplicada no golpe...
Cobriu
o ferimento com um tecido e levantou-se.
—
Vou fazer uma poção para Lima dormir antes de desinfetar e costurar esse corte.
Não deixe-a se mexer, nem tire o pano.
Mal
terminou de falar, caminhou para onde estava o fogão e os objetos que trouxera
consigo do andar acima, atacando os ingredientes para fazer a dita poção com a
rapidez furiosa de alguém que sabe muito bem o que fazer.
Terminou
de amarrar as bandagens em torno do tronco de Lima, adormecida com um ar de
calmaria em cima do catre, antes de se deixar sentar no chão com uma expressão
cansada no rosto.
—
Ela vai ficar bem? — Bianco finalmente arriscou-se a falar desde que chegara.
—
Se eu conseguir sangue para transfusão, não esquecer de estimular as células
musculares e nervosas a se multiplicarem e manter infecções longe, sim. — respondeu;
se levantou e alongou os músculos, dando um gemido baixo ao sentir os músculos
das costas e os ossos da coluna reclamarem após tanto tempo encurvada. — Ela
vai ter de ficar aqui por um bom tempo, e eu a proíbo de se esforçar, levantar
ou mesmo sentar até segunda ordem. — Bianco acenou em concordância.
—
Eu fico de olho nela. Todos pensam que estamos caçando, então, não vão
estranhar nosso sumiço. — a fala do rapaz agradou a Estalajadeira. Precisaria
mesmo que alguém vigiasse Lima quando ela estivesse acordada e enquanto ela
mantinha a Estalagem funcionando.
Recolheu
os panos e roupas sujas de sangue e todo o mais que usara, seu sexto sentido
logo lhe dizendo o que fazer para conseguir o sangue para a transfusão. Se
Bianco concordasse, poderia até mesmo colocá-los num dos quartos da Espelho
Quebrado e informar aos demais caçadores o que acontecera.
—
O que deu errado? — perguntou afinal, limpando a agulha longa e curva que usara
com álcool, guardando-a na caixa onde seus instrumentos de cura estavam
reunidos. Ouviu um suspiro de conformismo do rapaz.
—
Um dos soldados não comeu a sopa de ostras onde a gente colocou sua poção de sono.
Ele devia ser alérgico, é a única explicação possível pra um Vidrense recusar
sopa de ostras. E foi esse mesmo soldado que estava fazendo a ronda dentro do
prédio. — Estelia’Fal’Ima virou o rosto, vendo Bianco acariciar os cabelos
curtos de Lima com um ar culpado. — Tentei fazer como você me ensinou com o
pano molhado com éter, mas tropecei numa caixa. Quando vi, Lima já tinha me
empurrado pro lado e sido atingida. O homem tentou correr para fora, pra dar o
alarme, mas o atingi com uma flecha antes que desse dois passos. Recolhi a
minha flecha, e se Lima não tivesse me dito que tudo seria inútil se a missão
fracassasse, teria tirado ela de lá naquela hora e nem pego os chifres de Kirin
e as penas de Grifo... — mal terminou de falar, passou a alça da sacola pela
cabeça e estendeu-a para a Estalajadeira.
Ela
pegou a sacola e abriu-a com cuidado, observando os sacos menores onde os
chifres e as penas estavam. Era quantidade suficiente, e ainda sobraria.
—
Por que os Alzú’Frigl compram todos que as caravanas de Arcris e de Ulier
trazem? Para que servem? — Bianco perguntou, se aproximando.
—
Servem para um monte de antídotos, especialmente para venenos de Corais muito
velhas e para desintoxicar alguém com muitos dos alucinógenos das Damas e
Senhores na corrente sanguínea. — franziu as sobrancelhas, pensativa. — Sinceramente,
não sei por que eles querem o monopólio de tudo que entra, deixando nada para
os feiticeiros como eu, que não se aliaram ao exército, mas eu aposto que tem
algo com as Damas e Senhores. — ergueu o olhar para o rapaz. — Você sabe que a
presença constante deles em Riuma e Szan provoca altos índices de intoxicação
pelos alucinógenos, especialmente nos sacerdotes, não sabe? — Bianco balançou a
cabeça em afirmativa. — Por causa disso, eles são os maiores compradores dos
chifres e das penas. É artigo básico nas casas, ter o antídoto contra os
alucinógenos.
—
Ainda não estou entendendo... — resmungou, coçando a cabeça. Os olhos pareciam
irritados por não entender onde a Estalajadeira queria chegar.
—
Essa trezena chegou uma caravana de Ulier. Antes, eles foram para Celestian,
por estarem carregando penas de Grifo. Praticamente todos os membros ouviram
rumores de que têm Demônios, Damas, Senhores e até mesmo Corais, Devoradores e
Lobos de Ferro andando livremente pelo Palácio Celeste. É o boato mais forte na
cidade. Se for verdade, faz sentido que eles queiram tudo que os mercadores
possam oferecer, mesmo que eu não tenha ideia do motivo da presença deles lá...
— andou pelo salão, pensativa. — Só não entendo espalhar esses suprimentos por
algumas bases... — mordeu o lábio inferior, olhando para Bianco com um brilho
de temor nas íris. — Tenho medo do que não entendo, Bianco...
Olhou
ao redor, acenando para os objetos usados.
—
Vigie Lima. Vou verificar como estão as coisas lá em cima e já volto pra te
contar o meu plano.
Mal
terminou de falar, saiu do cômodo, as pedras fechando-se à suas costas.
Lançou
um olhar para o salão da taberna, observando os grupos de trabalhadores jantando
e jogando conversa fora após um cansativo dia de trabalho. As mesas estavam
afastadas da dele mais do que o necessário para que os garçons e garçonetes
pudessem se locomover e servir os clientes.
Deu
um sorriso minúsculo, balançando a cabeça com um ar descrente. Incrível como as
notícias se espalharam, avisando da presença de um Cavaleiro-Monge em Cilsan,
apesar da cidade ser uma das maiores de Rosean com seus pouco mais de um milhão
de habitantes; já no primeiro dia que estava na cidade tinham reagido da
maneira de sempre à sua presença, mesmo que somente um dos soldados guardando o
portão sul da cidade houvesse visto o ômega em sua testa.
Pelo
menos, não estava dependendo da boa vontade de um Estalajadeiro em abrigar um
Cavaleiro-Monge. Aparentemente, o Cobrador de Impostos de Cilsan devia pelo
menos um favor para Estelia, e ela enviara, junto com o dinheiro dos impostos,
uma mensagem cobrando-o na forma de abrigo para Einar pelo tempo que fosse
necessário. A esposa do homem não gostara muito da ideia, mas aceitou quando
Einar garantiu que faria o que fosse necessário na casa para merecer a cama e o
alimento. Assim, não tivera muito tempo nos últimos cinco dias para tentar
descobrir se seus pais estavam vivos, e se sim, onde: seu tempo fora quase
totalmente ocupado em consertar problemas na casa e na mobília, vigiar o casal de
gêmeos de doze anos quando a mãe precisava sair e qualquer outra coisa que
fosse necessário.
Finalmente,
naquele dia, a mulher lhe dispensara, lhe dizendo que a Dama de Azul na hora do
jantar era o melhor lugar para descobrir o paradeiro de qualquer pessoa na
cidade, em resposta à pergunta de que a ourivesaria Selec’Than tinha fechado dois
anos antes.
Era
onde ele estava. Desde que se lembrava por gente, a Dama de Azul, em frente à
praça central, era a maior taberna de Cilsan e parada preferida dos trabalhadores
na hora das refeições, mas especialmente na hora do jantar. Surpreendeu-se por
não pensar nela desde o começo e precisar de um conselho quase despretensioso
para ir até lá.
Tinha
passado o dia naquela mesa, observando o movimento de um jeito tranquilo, esperando
até que a Dama de Azul estivesse cheia. Era o momento. Havia um palco para menestréis
e musicistas numa extremidade do salão, que ele pretendia usar para perguntar
se alguém conhecia seus pais, como outras pessoas tinham feito ao longo do dia
atrás de informações.
No
entanto, só de pensar em se levantar e ficar ali, à frente de todos, sentiu
suas pernas se transformarem em geleia, o estômago querer colocar toda a bebida
e comida que tinha dentro para fora e a mente se nublar com medo.
Medo
de que alguém, entre todas aquelas pessoas, decidisse que um Cavaleiro-Monge
não merecia qualquer tipo de atenção e tentasse algo contra a sua vida, apoiado
e acobertado por outros. Medo de que alguém lhe dissesse que seus pais estavam
mortos. Medo de que descobrisse que estavam vivos, fosse até eles, e então, o
renegassem como filho. Medo puro.
De
repente, não tinha mais tanta certeza de querer reencontrá-los. Ou melhor:
ainda queria reencontrá-los, mas não sabia se aquele era o melhor caminho.
Passaram-se
alguns minutos em que Einar lutou consigo mesmo se ia ou não. Afinal, com um
suspiro desesperado, levantou e andou por entre as mesas até alcançar o palco,
antes que perdesse a coragem. Antes de subir, parou e respirou fundo, quase
dando meia volta, pagando o taberneiro e saindo do lugar, mas algo o
impulsionou a ir em frente.
Precisava
continuar. Seus pais já tinham perdido o filho mais novo. Acreditavam que tinham
perdido o filho mais velho. Mesmo que eles o renegassem por ser um
Cavaleiro-Monge, precisava tentar. Devia ao irmão nunca abandonar os pais.
Assim
que parou no meio do palco, o nível das vozes baixaram, as pessoas olhando-o
com curiosidade. Sentiu-se com doze anos de novo, de pé na frente dos
comandantes da Guarda Real junto de outras crianças, meninos e meninas, ansioso
por saber se era bom o bastante para se tornar aprendiz da Guarda Real no
palácio. Era o mesmo nervosismo, o medo de não ser aceito.
Engoliu
em seco, antes de forçar a voz a sair através da garganta apertada.
—
Eu... Estou procurando Carmem e Viko Selec’Than. A ourives e o caçador... Alguém...
Sabe onde posso encontrá-los, ou de alguém que pode me ajudar? — deixou os
olhos percorrerem os trabalhadores, se encurvando em suas mesas para sussurrar
uns com os outros. Afinal, um homem se ergueu, e o resto do burburinho
silenciou.
—
Você é o filho mais velho deles? Einar? — o homem perguntou; Einar balançou a
cabeça em afirmativa, e então recebeu um aceno, pedindo-lhe para se aproximar.
Desceu
do palco e caminhou até a mesa, onde o homem, robusto e usando vestes de lenhador,
já afastara uma cadeira e servira uma caneca de cerveja para ele. Acomodou-se
com cuidado, olhando para os lenhadores ao redor com cautela.
—
Então, Einar... — o homem coçou a própria barba, os cotovelos apoiados na madeira.
— As notícias que tenho não são muito boas... A Carmem morreu dois anos atrás.
Estava viajando para Narem, entregar a encomenda de um nobre, quando uns
ladrões atacaram.
Einar
apertou os lábios. O lenhador parou, esperando para saber se ele queria detalhes
do ataque onde sua mãe morrera. Quando permaneceu em silêncio, esperando, o
homem pareceu aliviado por não ter de contar mais. O Cavaleiro-Monge preferia
não saber. Não ainda.
—
O Viko... Não aceitou muito bem. Ele já não estava muito legal desde que você
foi parar em Orichalcum... Perder a esposa desse jeito... — parou, bebendo um
longo gole da cerveja antes de voltar a falar. Einar viu algumas gotas
escorrerem em meio aos fios espessos. — Ele... Surtou. Quase matou alguns
guardas, dizendo que era culpa deles, que não protegeram o seu menino mais novo
do Lobisomem, que atacaram o palácio e tiraram o mais velho dele e não
protegeram a sua mulher dos ladrões. Teria sido morto, se os outros caçadores
não o tivessem protegido e convencido os homens dos Alzú’Frigl que era apenas
um homem atormentado. — parou, suspirando. — Pro próprio bem dele, os caçadores
o colocaram no Sanatório Marnes.
Einar
balançou a cabeça, antes de tomar todo o conteúdo da caneca de uma vez.
O
sempre equilibrado Viko, seu pai... Num sanatório. Sua mãe, a histérica
Carmem... Morta.
Sentiu
as lágrimas picarem os cantos de seus olhos. Nunca imaginara aquilo. Estava
preparado para descobrir que estavam mortos, por qualquer razão que fosse. Mas
não que apenas um estava morto, e que o outro tivera de ir parar justamente no
Marnes, que ele, seu irmão e tantas outras crianças gostavam de assustar umas
as outras com histórias de terror.
Mal
notou que o lenhador lhe empurrou outra caneca cheia. Apenas virou a cerveja.
Caiu como uma pedra em seu estômago, e sentiu que o álcool já queria deixar seu
cérebro rodando; sua vontade era de beber mais, mas lembrou da voz de seu
mestre na Guarda Real, quando de sua primeira “decepção amorosa”: A resposta não está no fim do copo.
Empurrou
a caneca para longe, deixando as costas caírem contra o encosto da cadeira,
tentando recuperar o pensamento lógico que os Monges tinham lhe ensinado em
Orichalcum para decidir o que fazer.
—
Eu... Obrigado por me contar. — conseguiu fazer a voz sair, caçando um argentumie
no bolso da calça, entregando-o para o lenhador. O homem arregalou os olhos. — Pela
bebida, pela informação e por qualquer incômodo que eu tenha causado... — resmungou,
levantando antes que o homem conseguisse falar qualquer coisa.
Einar
não sabia de onde o homem conhecia seus pais. Considerando a corrente de casamento
em seu pescoço, que lembrava muito um trabalho de sua mãe, provavelmente fora
assim que os conhecera, durante seu período no Palácio Celeste. Isso explicaria
não conhecê-lo.
Ergueu-se
da mesa e andou até o balcão, deslizando outro argentumie para o taberneiro,
antes de sair da Dama de Azul.
Olhou
para o céu meio nublado acima da cidade, um vento frio se infiltrando por entre
os tecidos de sua roupa e o fazendo estremecer. A luz vermelha de Átria
conseguia se infiltrar por entre as nuvens, lançando um brilho rubro sobre a
cidade.
Einar
abaixou o rosto, esfregando os olhos, tentando afastar totalmente as lágrimas
que tinham se formado e decidir o que fazer.
Respirou
fundo, recuperando os ensinamentos que o auxiliariam a, apesar de seus sentimentos
— que lhe diziam para sentar na sarjeta e começar a chorar como uma criança —,
pensar com clareza. Aquela dor surda pelo que descobrira continuaria ali, mas
ele seria capaz de ignorá-la em prol de sua sanidade. Sabia que era justamente
isso que seus pais iriam querer que ele fizesse.
Decidiu
voltar à casa do Cobrador de Impostos e ter uma noite de sono — embora não
tivesse certeza de que conseguiria dormir — e, quando o dia amanhecesse, iria
visitar o pai.
Puxou
o capuz da capa sobre o rosto quando sentiu uma fina garoa começar a cair, e então,
com passos rápidos e calculados, começou seu caminho para a casa, enquanto
pensava no que faria depois de visitar o pai.
Ainda
não o vira, mas Viko precisava dele, isso era um fato. Ele precisava de alguém
da família, alguém de seu sangue, que o ajudasse a se recuperar. Einar queria
ficar na cidade, encontrar um trabalho que o mantivesse próximo ao pai, mas
pelos olhares gerais que recebera, duvidou que encontrasse algo para fazer que
não deixasse o homem ainda mais surtado.
Fechou
a mão em punho, conscientizando-se de que, quisesse ele ou não, sua melhor
opção era aceitar a oferta de Estelia’Fal’Ima. Podiam ser três dias de viagem
da Estalagem até Cilsan no ritmo de um hikmat, mas era um trabalho seguro, e
tinha certeza de que, se conversasse com a mulher, ela o deixaria ir ver o pai
com frequência.
Precisaria
também falar com os outros caçadores do grupo de Viko, saber o que ocorrera com
os bens da família. Torcia para que a casa ainda fosse propriedade dos
Selec’Than, e que algumas das joias que sua mãe confeccionara ainda estivessem
no cofre. Pelo que conhecia dos caçadores, eles tirariam dinheiro da própria
organização para manter seu pai no Marnes, deixando os bens do homem intactos
para quando ele se recuperasse.
Com
a casa ainda pertencente à sua família, não precisaria se preocupar em
encontrar um lugar para ficar quando estivesse em Cilsan. Também seria bom ter
o lugar pronto, para quando seu pai pudesse abandonar o Sanatório. Não sabia
quanto tempo levaria, mas tinha certeza de que, um dia, poderia levar o homem
que o criou de volta para a própria casa.
Era
isso.
Respirou
fundo, parando por um momento e olhando para o alto, para a água que caía do
céu e para as nuvens que tinham passado a esconder Átria.
Agora
que estabelecera seus objetivos, sentia-se melhor. Com um rumo. Podia não reconhecer
mais a cidade onde crescera — tudo mudara tanto em dez anos, que sentia-se um estranho
no lugar — mas ao menos agora sabia o que fazer.
Lançou
ao vento uma prece de agradecimento ao seu mestre, além de torcer, como sempre,
que estivesse num lugar melhor; se tivesse seguido a própria vontade e bebido
até esquecer o próprio nome, ainda estaria perdido, sem rumo. Seu precioso
conselho sobre álcool nunca lhe ajudara tanto.
Espreguiçou-se,
virando na cama e observando o sol nascente entrando pela janela e se
derramando pelo quarto, do tamanho de um dos quartos com duas camas, mas, ao
invés do segundo móvel, possuía alguns instrumentos musicais; uma harpa grande,
feita da madeira clara de uma briani, uma cítara, um violão, um oboé e uma
flauta transversal. O som dos instrumentos, graças a um encanto dos Silfos em
torno do local onde estavam acomodados, ecoava no salão da Estalagem quando ela
o ativava. Deu um suspiro profundo, observando onde a luz a atingia
diretamente, mostrando a pele pálida percorrida por finos raios dourados que o
encanto chamado Tkan escondia.
Tinha,
milagrosamente, conseguido ir dormir no próprio quarto na noite passada, e não
simplesmente cochilado em uma cadeira atrás do balcão, como nos últimos dias.
Não passara de cinco horas de sono, mas ainda assim, fora um descanso bem vindo
para seus músculos.
Levantou-se,
caminhando para o pequeno banheiro anexo, onde lavou-se, preparando-se para
mais um dia, agradecendo às três Luas que Bianco concordara com seu plano.
Agora, Lima estava instalada confortavelmente num dos quartos e uma garota com
não mais de catorze anos viajava para Cilsan em Caramelo, a égua que a
Estalajadeira ganhara dos Silfos, com uma carta para o Mago-Mestre do Hospital
da cidade, explicando a situação de uma caçadora atacada por um
urso-das-árvores e que precisava urgentemente de sangue. Com sorte, a menina
estaria de volta em no máximo quatro dias com o sangue pedido. Com mais sorte
ainda, nenhum deles teria de explicar como exatamente fora o ataque ou qualquer
coisa relacionada.
Deixou
um sorriso escorregar por seu rosto, feliz que conseguira pensar rápido pelo
bem da jovem caçadora, enquanto tentava imaginar sua aparência feita pela Tkan
usando o vestido cinza-azulado que segurava diante de si. Era realmente
complicado não ter um Reflexo para verificar o resultado com seus próprios
olhos.
Afinal,
deu de ombros, colocando a roupa, sua feitiçaria fechando os botões nas costas
com poucos problemas, logo em seguida fazendo o mesmo com um corpete preto;
enfiou o Baralho entre os dois objetos sem demora.
Fechou
as cortinas e então olhou para si mesma, gostando do contraste delicado e suave
entre a cor de sua pele escura e o vestido. Deu um sorriso pequeno, imaginando
o quanto sua mãe detestaria ver ela, a “Princesa” Lauré Vellum’Frigl, usando
roupas de cores tão escuras e com o cabelo preso fora do coque trançado
tradicional da nobreza. Seu pai provavelmente diria que era uma bem-vinda
mudança, mas que ela podia colocar um pouco mais de cor no vestido usando
bordados, porque ela merecia todas as cores do mundo.
Inspirou
longamente, impedindo as lágrimas em seus olhos de escorrerem ao lembrar de
Suna e Andres Vellum’Frigl. Sentia o peito apertado por lembrar-se deles, algo
que, desde que vira Einar, vinha acontecendo com mais frequência. Devia ser o
resultado de reencontrar um elemento de seu passado de forma tão inesperada.
Hesitante,
colocou a mão onde o Baralho pressionava sua pele e puxou uma carta.
A
Concha, mostrando uma ostra colorida levemente aberta no fundo do mar, deixando
entrever uma pérola em seu interior. Soltou um suspiro derrotado. A carta do
segredo, do proteger-se. Algo desagradável se aproximava, embora não soubesse
quando, exatamente — podia ser naquele dia ou dali a um mês.
Colocou
a carta no lugar, em seguida endireitando os ombros. Já tivera seu conselho:
continuar protegendo o segredo de quem realmente era, e proteger-se, mesmo que
manter aquele segredo a matasse por dentro.
Precisava
fazer aquilo, continuar a organizar a rebelião como se não fosse daquela terra,
e sim uma estranha.
O
Sanatório Marnes era como uma caixa, fechado, cinza-grafite e completamente sombrio
devido à quase ausência de janelas, no meio de uma grande praça de pedra
branco-encardido.
Na
opinião de Einar, até mesmo Orichalcum, com suas paredes entremeadas de encantos
com oricalco, era mais alegre. Não era à toa que o lugar figurava entre os
piores nos pesadelos das crianças de Cilsan — perdia apenas para a mansão dos
Alzú’Frigl e suas inúmeras janelas de vidro e portas de espelho.
Respirou
fundo, e continuou a andar, as botas provocando um rangido irritante ao se
chocarem contra as pedras da praça, se encaminhando para as portas de carvalho
que levavam ao interior da construção. Ao empurrá-las, um sino baixo tocou; a
mulher sentada à mesa da recepção levantou a cabeça do que quer que estivera
escrevendo e fixou os olhos escuros nele. Um sorriso falsamente gentil se abriu
nos lábios pintados de vermelho ao notar a marca em sua testa. Um lado do
cérebro de Einar imaginou que conhecia aqueles traços de algum lugar.
—
Bom dia... — o Cavaleiro-Monge começou, incerto, dando alguns passos na direção
da mesa, parando diante da mulher.
—
Bom dia. — ela falou, fechando com cuidado o caderno diante de si. — Em que posso
ajuda-lo?
Inspirou
tanto ar quanto conseguia, soltando-o de uma vez, tentando encontrar a coragem
dentro de si. Não tinha certeza de como o pai estava. Não tinha certeza de que
queria saber. Com a garganta subitamente seca, molhou os lábios e forçou a voz
a sair.
—
Eu... Me disseram que... Meu pai é paciente aqui.
Os
olhos da mulher pareceram suavizar, o sorriso diminuindo, mas aparentemente,
mais sincero. Einar se perguntou se ela via situações como a sua
frequentemente.
—
Entendo. Qual o nome dele? Vou verificar qual o médico responsável por ele e
ver o que posso fazer por você.
—
Viko Selec’Than. — sua voz falhou no final, e fechou os olhos por um instante. A
mulher balançou a cabeça e se levantou, arrumando seu uniforme verde-claro.
Einar notou um crachá de alumínio do lado direito de seu peito escrito “Dina
Celan’Asus”, e um sorriso se arrastou por seus lábios, finalmente percebendo a
similaridade de traços com todo o seu cérebro. — Dina. Justamente você veio
parar aqui?
A
mulher deu um sorriso tímido, arrumando uma mecha do coque castanho que saíra
do lugar; Dina fazia parte do grupo com quem ele e o irmão brincavam em meio à
cidade quando crianças. E era a mais medrosa quando se falava do sanatório.
—
Pois é, Einar... Depois que você foi pro Palácio, acabei demonstrando aptidões
mágicas... Elas eram mais voltadas pra mente, então, não demorou pra me
encaminharem pra um Mago-Médico daqui. Ainda não tenho tanto controle sobre o
Éter... Sou apenas enfermeira, e não posso usar a magia sem a supervisão do meu
mestre, mas... Estou pegando o jeito. — o Cavaleiro-Monge deu um sorriso
satisfeito, colocando uma mão em seu ombro.
—
Você é dedicada. Claro que está pegando o jeito. — soltou-a, e Dina cruzou os
braços. — Mas o que está fazendo aqui, já que é enfermeira?
—
Fazemos turnos para cuidar da recepção. Por causa de toda a Magia, Feitiçaria e
Poções que perambulam pelo prédio. Não queremos que pessoas sem treinamento
sejam afetadas. A praça em volta e poucas janelas... Só por causa disso.
Einar
quis se esbofetear. Ele tinha aprendido sobre essas coisas no Palácio, e de
novo no Mosteiro. Não era bom deixar pessoas sem treinamento básico em
Feitiçaria se aproximarem de locais com excesso de manipulação mágica, mental,
espiritual e de almas; podia causar lesões no cérebro. O Marnes com certeza era
um desses locais.
—
Eu... Vou falar com o meu Mestre. — Dina engoliu em seco. — Ele é o responsável
pelo seu pai. — ela parou por um instante, olhando ao redor. — Eu... Sinto
muito pela sua mãe, Nar...
Einar
ouviu o murmúrio e o apelido de infância, e acenou de leve a cabeça.
—
Obrigado, Di... — ela sorriu de leve, antes de sumir por uma das portas.
Com
um suspiro, o Cavaleiro-Monge caminhou para uma das cadeiras estofadas da sala
e se acomodou, remoendo tudo que tinha se passado em sua cabeça, sobre o que o
esperava quando visse seu pai e olhando para as próprias mãos, cobertas das
cicatrizes de cortes dos treinos com espadas no Palácio Celeste e de
queimaduras ganhadas nas forjas de vidro; perguntou-se, pela centésima vez
desde que descobrira a morte da mãe, de que todo o treinamento no Palácio lhe
valera.
A
porta por onde Dina saíra mais cedo se abriu com suavidade, e um homem que aparentava
ter por volta de cinquenta anos passou pela abertura, vestindo um conjunto
verde-claro similar ao da mulher; Einar o identificou como um Mago-Médico pelo
pingente de serpente de aço em espiral pendurado no pescoço.
O
crachá no peito dizia “Silas Celan’Asus”, o que arrancou um sorriso de lado do
Cavaleiro-Monge. Até onde se lembrava, Silas era tio de Dina, e trabalhava no
Hospital da cidade até ele partir para o Palácio. As coisas realmente tinham
mudado.
—
Einar Selec’Than? — o senhor se aproximou, as mãos nos bolsos da calça e as sobrancelhas
grisalhas e espessas se enrugando com seriedade.
—
Eu mesmo, senhor. — Silas balançou a cabeça em afirmativa, antes de voltar por
onde entrara, fazendo sinal para ser seguido.
—
Bem, Sr. Selec’Than... Imagino que minha sobrinha não tenha te contado porque
seu pai ainda está no Marnes... — virou levemente o rosto em sua direção
enquanto seguiam pelos corredores pintados de cinza-claro, passando por outros
Magos-Médicos, Enfermeiros em treinamento, outros funcionários e pacientes.
—
Não, senhor. — O homem balançou a cabeça, como que esperando aquela resposta.
—
Seu pai está lúcido. Aliás, esse é justamente o problema: ele quer realmente
matar tantos guardas puder, e os próprios Alzú’Frigl, se tiver oportunidade. — a
boca se torceu numa careta de desgosto. — Viko quer vingança pela família.
Nesses dois anos, nem eu, nem seus companheiros caçadores, nem ninguém, o
convenceu a deixar isso de lado e viver... — parou em frente a uma porta e
olhou para Einar. O rapaz engoliu em seco com o semblante sério que estava
diante de si, enxergando expectativa nas íris verde-escuro. — Espero que você o
convença disso. De que agora ele tem um motivo para viver.
Balançou
a cabeça de leve, como que prometendo que atenderia essa expectativa.
Silas
enfiou uma chave na fechadura enquanto deslizava a mão pelos encantos gravados
no batente, desativando-os numa ordem específica antes de abrir a porta.
Acenou
para o Mago-Médico, e tomando fôlego como se fosse mergulhar, Einar entrou, não
sabendo o quê, exatamente, esperar encontrar.
Foi
fácil reconhecer seu pai, se exercitando no chão do quarto. Ganhara mais rugas,
os músculos tinham murchado um pouco e ganhara alguns fios brancos no cabelo,
mas ainda era como olhar para si mesmo mais velho. A única exceção eram os
olhos: um azul claro e gélido que fazia Einar se lembrar do irmão mais novo.
Evidência do sangue Arcris que ignorara Einar.
—
Hei, pai. — não sabia o que dizer, e quando falou, sentiu suas entranhas se
retorcerem, como que querendo arrastá-lo para fora dali. Além de querer puxar
as palavras de volta: quem fica dez anos sem ver o próprio pai e só diz “Hei,
pai”?
Viko
parou e fixou os olhos nele, analisando-o. Ele podia sentir: era o mesmo olhar
crítico que recebia após alguma travessura mais séria do que sair das barreiras
da cidade. Sentiu medo de receber uma bronca, ou pior, de simplesmente ser
expulso do local.
E
então, o homem de meia-idade se levantou num pulo e jogou os braços ao redor do
Cavaleiro-Monge, apertando-o contra si com uma força que muitos julgariam ter
se esvaído com a idade. Einar hesitou um pouco, mas afinal, devolveu o abraço,
tão ou mais forte.
Ele
não sabia quando, como ou por que, mas apoiou a testa no ombro de seu pai,
alguns centímetros mais alto que ele, e começou a chorar, as lágrimas escorrendo
silenciosas pelo rosto. Se lhe perguntassem a razão do choro, não saberia
dizer.
Era
algo com o cheiro de suor, grama, couro e ervas que rodeava o pai. Junto com o
cheiro de metal, flores e sol, de sua mãe, e de cachorro molhado, floresta e
chuva de seu irmão, era o cheiro de sua infância. Era só um pedaço, mas era
cheiro de casa, que ele sentira falta especialmente nos últimos três anos.
—
Shhh... Calma, filho... Você está em casa agora... — ouviu Viko sussurrar em
seu ouvido, uma das mãos batendo de leve em suas costas. A voz tinha o mesmo
tom tranquilizante de quando ele e Sigried tinham pesadelos e iam para o quarto
dos pais. O mesmo tom de “Já passou. Vocês estão comigo, e é só o que importa”.
Aquelas
frases só o fizeram chorar mais.
Einar
sabia, apesar do que o pai dizia.
Ele
não estava em casa. Nunca mais estaria. Precisava reconstruí-la. Era um
Cavaleiro-Monge, alguém marcado por traição aos Reinos — mesmo que a sua fosse
somente se negar a jurar fidelidade aos Alzú’Frigl após o golpe —, e isso praticamente
anulava que Cilsan era sua casa, porque nunca seria realmente bem-vindo ali.
Dina, Silas, o lenhador na Dama de Azul... Só o tinham tratado bem por
conhecerem-no, ou por conhecerem seus pais. O Cobrador de Impostos, por uma
questão de favor cobrado.
Só
ali, com seu eterno herói, ele realmente entendeu que, mesmo que encontrasse
seus pais vivos e bem na cidade, nunca poderia ficar. Não poderia expô-los a um
tratamento similar ao que recebia.
Finalmente
entendeu que era, de fato, um estranho numa terra estranha. Que para todos os
demais, era apenas um traidor.
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Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
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