Dimensões

02 agosto 2017

Caco de Vidro 1 - Terra de Vidro: Estranho em uma Terra Estranha


“Enemy of mine,
I'm just a stranger in a strange land.
Running out of time,
We better go, go, go!
Angel or demon,
I gave up my soul,
I'm guilty of treason,
I've abandoned control”

“Inimigo meu,
Sou somente um estranho em uma terra estranha.
Correndo contra o tempo,
Melhor partirmos, partirmos, partirmos!
Anjo ou demônio,
Desisti da minha alma,
Sou culpado de traição,
Abandonei o controle”

(Stranger In a Strange Land — 30 Seconds to Mars)
                                               
Era o oitavo dia desde que Einar partira da Espelho Quebrado para Cilsan.

Era o oitavo dia de espera da Estalajadeira, mesmo com outros onze prováveis à frente.

Todos os dias, às vezes mais de uma vez ao longo das longas trinta e duas horas, ela colocava as cartas do Baralho de Vidro para saber como ele estava. Poderia ter visões sem tal auxílio, mas a Sybilla com quem fechara o pacto aparentemente vendara essa parte de seu dom para Einar momentaneamente.

Naquele momento, logo após o almoço, com os hóspedes que não haviam partido descansando em seus quartos ou contando histórias em frente à lareira enquanto fumavam seus cachimbos e bebiam com calma plácida, ela colocava as cartas pela terceira vez no dia.

Embaralhou os finos objetos de vidro, os pensamentos concentrados no rapaz, sentada num dos banquinhos à beira do balcão de cerejeira. Meltem, a criança Silfo em forma de gato, se enroscou aos seus pés, bocejou e então se pôs a dormir. Respirou fundo, antes de tirar uma carta aleatoriamente do meio do monte e colocar diante de si.

A Terra. Mostrava a beira ensolarada de um lago, com uma jovem de pele negra, sangue se esvaindo para a água, os olhos fechados e um braço caído de forma displicente dentro do lago. O reflexo mostrava algo diferente: uma cena de noite estrelada, sem nenhuma das luas, com um rapaz de pele pálida segurando o braço da jovem ferida, uma luz avermelhada partindo de sua mão e encobrindo a moça, como que a curando. Dia e Noite. Morte e Vida. A carta do equilíbrio e da neutralidade, era isso que a Terra era: nem Boa, nem Má. Equilíbrio.

Diante de seus olhos, a imagem de Einar, pensativo enquanto bebia uma caneca de cerveja numa taberna qualquer se fez presente. A expressão de seu rosto era pensativa. Ele ainda não se decidira, ainda pensava se aceitava ou não sua proposta. Ainda era como a Terra: não tomara partido.

Deslizou outra carta aleatória, e diante de si estava o Reflexo, com uma jovem sorridente segurando um buquê diante de um espelho, onde se mostrava um reflexo choroso segurando uma faca ensanguentada e um coração pulsante, o peito com um buraco onde deveria estar seu coração.

Franziu a sobrancelha. O Reflexo, apesar do nome, era a carta do ir contra si mesmo. De não seguir suas verdadeiras vontades. De se abandonar. O seu eu do mundo físico mostrava uma coisa, mas o Reflexo não estava igual, não enganava: demonstrava a cruel verdade. Era uma carta que ela raramente tirava, e quando o fazia, era para o Zhuran que chegaria. Nunca aparecera para o Cavaleiro-Monge.

Algo mudara ou mudaria, e apesar da carta, não sabia o quê. Apenas sabia que qualquer que fossem os planos de Einar, ele precisaria mudá-los, mesmo não gostando disso.

Tirou outra carta. Rei e Rainha, com um homem e uma mulher, vestidos com seda e veludo e com finas faixas de prata como coroas em suas testas, de mãos dadas de um modo elegante e expressões nobres e inatingíveis no rosto. A carta dos pais, dos senhores de um lugar. Ao lado do Reflexo, subitamente entendeu o que se passaria, passara ou passava: ao encontrar os pais, teria de mudar seus planos contra a própria vontade.

Sentiu-se triste por saber disso.

Bateu as unhas no balcão, produzindo um som ritmado, tentando decidir se tirava ou não mais uma carta. Afinal, puxou mais uma, estendendo-a diante de si.

Fedra, vestida de um modo típico de Szan de sedas esvoaçantes e sobrepostas, envolta numa suave luz azul, de cabelos curtos e azul-marinho flutuando em torno do rosto jovial e risonho. A carta do Futuro, representando a lua de menor ciclo. Soltou um suspiro de entendimento, apoiando os braços cruzados sobre o balcão. Futuro. Ainda não enfrentara a situação com seus pais. Einar precisaria da jovialidade e do bom humor de Fedra para atravessar tal ocorrência, sem que a situação mostrada no Reflexo o afetasse de forma permanente.

Ajuntou as cartas repentinamente e escondeu o Baralho no corpete, se levantando e voltando a cuidar da Estalagem.

Pediu com simplicidade para as Três Luas que o Cavaleiro-Monge lembrasse dela e da oferta de trabalho na Espelho Quebrado quando enfrentasse qualquer que fosse a provação que encontrasse quando achasse os pais.



Terminou de colocar as roupas de seda do chefe mercador de Läe para secarem ao natural atrás do estábulo, onde a lavanderia coberta se encontrava, virada para a Floresta dos Espelhos.

Preparou-se para voltar para o interior da construção, lançando um olhar para a floresta de seu lugar à sombra. Deu um sorriso discreto, até que viu Meltem correr na direção das árvores, se transformando em brisa e rematerializando em gato uma grande distância à frente, até sumir entre os troncos. Ele não costumava percorrer grandes distâncias de tal forma, tão apressada. Sentiu o sangue da Sybilla em suas veias e artérias pinicar sua carne de dentro pra fora.

Deu um passo à frente, no limite da sombra produzida pelo telhado, a vontade de seguir o Silfo quase irresistível, mas o sexto sentido em consequência do pacto a segurou. Era muito arriscado.

De repente Meltem voltou a aparecer, seguido de duas pessoas que ela aprendera a conhecer nos últimos meses. A jovem Lima, segurando a lateral do corpo, o conjunto de calça e camisa de tons de verde e marrom ensopados de sangue, com a pele, antes morena, pálida como um tronco de briani. O outro braço estava em torno do pescoço de Bianco, usando vestes similares e também manchadas de sangue, com uma longa trança de cabelo loiro descendo pelas costas, caminhando com passos mais firmes em sua direção; ambos carregavam facões e aljavas cheias de flechas na cintura e um arco nas costas, mostrando, junto de suas roupas, que eram caçadores.

A Estalajadeira prendeu a respiração por um instante antes de entrar, deixando o caminho livre para os dois assim como uma ilusão atrás de si para escondê-los; esperou-os diante da porta oculta pela cortina de tom cinza-escuro, segurando o tecido para o lado e a prancha de madeira aberta, algumas das coisas que precisaria para cuidar da garota ferida levitando ao seu redor. Não precisou esperar muito para que os caçadores a alcançassem e penetrassem na escuridão à sua frente, o Silfo abandonando-os em direção ao salão. Seguiu-os logo depois, o caminho fechando-se atrás de si.

O trio desceu uma larga escada em caracol, com passos lentos por causa da garota ferida. A jovem de olhos verdes ouvia, com um aperto no coração, os gemidos de dor que cada degrau provocava na jovem de curtos cabelos castanho-claro. Tinha de examinar logo o estado do ferimento.

A escada desembocou no cômodo onde o gerador transformava em eletricidade a energia captada pelos os painéis solares no teto da Estalagem. Estelia’Fal’Ima passou à frente dos recém-chegados, usando sua Feitiçaria para que as pedras deslizassem e revelassem um cômodo oculto.

Era onde, oito dias antes, eles tinham se reunido com outras pessoas, e Lima, Bianco e outros receberam algumas tarefas; se recusara a pensar até aquele momento, mas as chances de que a missão deles houvesse falhado eram fortes. Ainda não sabia. Seu dom nada lhe revelara, e estava tão focada em Einar que raramente tirara as cartas para a Rebelião. Xingou-se por ser tão relapsa com os rebeldes que ela própria vinha organizando.

Acenou a mão, e um catre deslizou para fora da parede. Bianco não perdeu tempo em deitar Lima no colchão, a Estalajadeira logo começando a examinar o ferimento, as mãos acenando para que uma chaleira cheia de água começasse a aquecer no fogão encostado em outra parede.

No lado direito do abdome de Lima, um corte profundo e longo se abria, começando no umbigo, subindo em transversal e terminando logo abaixo do seio. Era um corte reto, de certa forma limpo, feito por uma lâmina afiada. Espada, faca de caça ou adaga longa, imaginou.

— Tire toda a roupa dela. — ordenou ao rapaz, movimentando-se com rapidez e destreza para pegar água, álcool e panos. Precisava limpar o ferimento para ter uma melhor noção de quão profundo era. Poderia ter usado sua energia espiritual para sondá-lo, mas não queria desgastar-se; talvez precisasse dela para alguma poção, ou para incentivar a cura.

Quando voltou para o catre, Bianco terminava de tirar as calças de Lima. A pele pálida estava pegajosa com o sangue coagulado, o líquido vermelho, de um tom mais claro por ser das artérias mais profundas, ainda vertendo um pouco através do corte. A jovem apenas os observava, os olhos azul-escuro arregalados e cheios de dor, seguindo os movimentos da Estalajadeira.

— Segure-a firme, Bianco. — então virou-se para Lima, não parando para ver se Bianco seguiu sua ordem. — Vai doer. Muito. Mas é necessário. — falou, despejando álcool sobre as próprias mãos.

A jovem apenas acenou de leve a cabeça, vendo a mulher erguer a chaleira acima de seu abdome e incliná-la até verter a água quente por sobre o ferimento.

O corpo de Lima deu um tranco para o alto, antes de um louco instinto de sobrevivência tentar tomar conta de si. Bianco segurava seus ombros contra o catre, os músculos dos braços se retesando para mantê-la no lugar, mas deixando os próprios braços dela livres. Os membros se balançaram para tentar afastar a Estalajadeira, mas ela desviou-se habilmente, colocando a chaleira no chão.

— Eu falei para segurá-la firme! — ralhou com o rapaz enquanto pegava os panos para limpar o sangue em volta e que começara a escorrer com maior profusão. Bianco movimentou-se com a rapidez que apenas um caçador poderia ter para segurar os braços de Lima, praticamente deitando por cima da jovem para mantê-la colada ao catre.

A Estalajadeira limpou o ferimento com habilidade e agilidade, derramou mais um pouco da água quente, e então pode finalmente descobrir a extensão dos estragos. Em momento nenhum a jovem parara de tentar se livrar dos dois, de resmungar e às vezes gritar de dor. Felizmente, Bianco agora segurava firmemente a parte de cima de seu corpo, o poder mental de Estelia’Fal’Ima mantendo as pernas no lugar.

Pode ver as últimas costelas do lado direito, e apesar de estarem à vista, inteiras. No abdome, a lâmina não cortara todas as camadas de músculos e tecido, e ela não podia ver o intestino ou qualquer outro órgão. Quando constatou tal fato, deu um longo suspiro de alívio: sem hemorragia interna ou um grande risco de infecção generalizada. Poderia se focar em fazer aquele imenso corte se fechar e em manter qualquer tipo de infecção afastada. Era algo até que simples de se fazer. Lima tivera sorte. Muita sorte. Um pouquinho mais perto do agressor, um pouquinho mais de força aplicada no golpe...

Cobriu o ferimento com um tecido e levantou-se.

— Vou fazer uma poção para Lima dormir antes de desinfetar e costurar esse corte. Não deixe-a se mexer, nem tire o pano.

Mal terminou de falar, caminhou para onde estava o fogão e os objetos que trouxera consigo do andar acima, atacando os ingredientes para fazer a dita poção com a rapidez furiosa de alguém que sabe muito bem o que fazer.



Terminou de amarrar as bandagens em torno do tronco de Lima, adormecida com um ar de calmaria em cima do catre, antes de se deixar sentar no chão com uma expressão cansada no rosto.

— Ela vai ficar bem? — Bianco finalmente arriscou-se a falar desde que chegara.

— Se eu conseguir sangue para transfusão, não esquecer de estimular as células musculares e nervosas a se multiplicarem e manter infecções longe, sim. — respondeu; se levantou e alongou os músculos, dando um gemido baixo ao sentir os músculos das costas e os ossos da coluna reclamarem após tanto tempo encurvada. — Ela vai ter de ficar aqui por um bom tempo, e eu a proíbo de se esforçar, levantar ou mesmo sentar até segunda ordem. — Bianco acenou em concordância.

— Eu fico de olho nela. Todos pensam que estamos caçando, então, não vão estranhar nosso sumiço. — a fala do rapaz agradou a Estalajadeira. Precisaria mesmo que alguém vigiasse Lima quando ela estivesse acordada e enquanto ela mantinha a Estalagem funcionando.

Recolheu os panos e roupas sujas de sangue e todo o mais que usara, seu sexto sentido logo lhe dizendo o que fazer para conseguir o sangue para a transfusão. Se Bianco concordasse, poderia até mesmo colocá-los num dos quartos da Espelho Quebrado e informar aos demais caçadores o que acontecera.

— O que deu errado? — perguntou afinal, limpando a agulha longa e curva que usara com álcool, guardando-a na caixa onde seus instrumentos de cura estavam reunidos. Ouviu um suspiro de conformismo do rapaz.

— Um dos soldados não comeu a sopa de ostras onde a gente colocou sua poção de sono. Ele devia ser alérgico, é a única explicação possível pra um Vidrense recusar sopa de ostras. E foi esse mesmo soldado que estava fazendo a ronda dentro do prédio. — Estelia’Fal’Ima virou o rosto, vendo Bianco acariciar os cabelos curtos de Lima com um ar culpado. — Tentei fazer como você me ensinou com o pano molhado com éter, mas tropecei numa caixa. Quando vi, Lima já tinha me empurrado pro lado e sido atingida. O homem tentou correr para fora, pra dar o alarme, mas o atingi com uma flecha antes que desse dois passos. Recolhi a minha flecha, e se Lima não tivesse me dito que tudo seria inútil se a missão fracassasse, teria tirado ela de lá naquela hora e nem pego os chifres de Kirin e as penas de Grifo... — mal terminou de falar, passou a alça da sacola pela cabeça e estendeu-a para a Estalajadeira.

Ela pegou a sacola e abriu-a com cuidado, observando os sacos menores onde os chifres e as penas estavam. Era quantidade suficiente, e ainda sobraria.

— Por que os Alzú’Frigl compram todos que as caravanas de Arcris e de Ulier trazem? Para que servem? — Bianco perguntou, se aproximando.

— Servem para um monte de antídotos, especialmente para venenos de Corais muito velhas e para desintoxicar alguém com muitos dos alucinógenos das Damas e Senhores na corrente sanguínea. — franziu as sobrancelhas, pensativa. — Sinceramente, não sei por que eles querem o monopólio de tudo que entra, deixando nada para os feiticeiros como eu, que não se aliaram ao exército, mas eu aposto que tem algo com as Damas e Senhores. — ergueu o olhar para o rapaz. — Você sabe que a presença constante deles em Riuma e Szan provoca altos índices de intoxicação pelos alucinógenos, especialmente nos sacerdotes, não sabe? — Bianco balançou a cabeça em afirmativa. — Por causa disso, eles são os maiores compradores dos chifres e das penas. É artigo básico nas casas, ter o antídoto contra os alucinógenos.

— Ainda não estou entendendo... — resmungou, coçando a cabeça. Os olhos pareciam irritados por não entender onde a Estalajadeira queria chegar.

— Essa trezena chegou uma caravana de Ulier. Antes, eles foram para Celestian, por estarem carregando penas de Grifo. Praticamente todos os membros ouviram rumores de que têm Demônios, Damas, Senhores e até mesmo Corais, Devoradores e Lobos de Ferro andando livremente pelo Palácio Celeste. É o boato mais forte na cidade. Se for verdade, faz sentido que eles queiram tudo que os mercadores possam oferecer, mesmo que eu não tenha ideia do motivo da presença deles lá... — andou pelo salão, pensativa. — Só não entendo espalhar esses suprimentos por algumas bases... — mordeu o lábio inferior, olhando para Bianco com um brilho de temor nas íris. — Tenho medo do que não entendo, Bianco...

Olhou ao redor, acenando para os objetos usados.

— Vigie Lima. Vou verificar como estão as coisas lá em cima e já volto pra te contar o meu plano.

Mal terminou de falar, saiu do cômodo, as pedras fechando-se à suas costas.



Lançou um olhar para o salão da taberna, observando os grupos de trabalhadores jantando e jogando conversa fora após um cansativo dia de trabalho. As mesas estavam afastadas da dele mais do que o necessário para que os garçons e garçonetes pudessem se locomover e servir os clientes.

Deu um sorriso minúsculo, balançando a cabeça com um ar descrente. Incrível como as notícias se espalharam, avisando da presença de um Cavaleiro-Monge em Cilsan, apesar da cidade ser uma das maiores de Rosean com seus pouco mais de um milhão de habitantes; já no primeiro dia que estava na cidade tinham reagido da maneira de sempre à sua presença, mesmo que somente um dos soldados guardando o portão sul da cidade houvesse visto o ômega em sua testa.

Pelo menos, não estava dependendo da boa vontade de um Estalajadeiro em abrigar um Cavaleiro-Monge. Aparentemente, o Cobrador de Impostos de Cilsan devia pelo menos um favor para Estelia, e ela enviara, junto com o dinheiro dos impostos, uma mensagem cobrando-o na forma de abrigo para Einar pelo tempo que fosse necessário. A esposa do homem não gostara muito da ideia, mas aceitou quando Einar garantiu que faria o que fosse necessário na casa para merecer a cama e o alimento. Assim, não tivera muito tempo nos últimos cinco dias para tentar descobrir se seus pais estavam vivos, e se sim, onde: seu tempo fora quase totalmente ocupado em consertar problemas na casa e na mobília, vigiar o casal de gêmeos de doze anos quando a mãe precisava sair e qualquer outra coisa que fosse necessário.

Finalmente, naquele dia, a mulher lhe dispensara, lhe dizendo que a Dama de Azul na hora do jantar era o melhor lugar para descobrir o paradeiro de qualquer pessoa na cidade, em resposta à pergunta de que a ourivesaria Selec’Than tinha fechado dois anos antes.

Era onde ele estava. Desde que se lembrava por gente, a Dama de Azul, em frente à praça central, era a maior taberna de Cilsan e parada preferida dos trabalhadores na hora das refeições, mas especialmente na hora do jantar. Surpreendeu-se por não pensar nela desde o começo e precisar de um conselho quase despretensioso para ir até lá.

Tinha passado o dia naquela mesa, observando o movimento de um jeito tranquilo, esperando até que a Dama de Azul estivesse cheia. Era o momento. Havia um palco para menestréis e musicistas numa extremidade do salão, que ele pretendia usar para perguntar se alguém conhecia seus pais, como outras pessoas tinham feito ao longo do dia atrás de informações.

No entanto, só de pensar em se levantar e ficar ali, à frente de todos, sentiu suas pernas se transformarem em geleia, o estômago querer colocar toda a bebida e comida que tinha dentro para fora e a mente se nublar com medo.

Medo de que alguém, entre todas aquelas pessoas, decidisse que um Cavaleiro-Monge não merecia qualquer tipo de atenção e tentasse algo contra a sua vida, apoiado e acobertado por outros. Medo de que alguém lhe dissesse que seus pais estavam mortos. Medo de que descobrisse que estavam vivos, fosse até eles, e então, o renegassem como filho. Medo puro.

De repente, não tinha mais tanta certeza de querer reencontrá-los. Ou melhor: ainda queria reencontrá-los, mas não sabia se aquele era o melhor caminho.

Passaram-se alguns minutos em que Einar lutou consigo mesmo se ia ou não. Afinal, com um suspiro desesperado, levantou e andou por entre as mesas até alcançar o palco, antes que perdesse a coragem. Antes de subir, parou e respirou fundo, quase dando meia volta, pagando o taberneiro e saindo do lugar, mas algo o impulsionou a ir em frente.

Precisava continuar. Seus pais já tinham perdido o filho mais novo. Acreditavam que tinham perdido o filho mais velho. Mesmo que eles o renegassem por ser um Cavaleiro-Monge, precisava tentar. Devia ao irmão nunca abandonar os pais.

Assim que parou no meio do palco, o nível das vozes baixaram, as pessoas olhando-o com curiosidade. Sentiu-se com doze anos de novo, de pé na frente dos comandantes da Guarda Real junto de outras crianças, meninos e meninas, ansioso por saber se era bom o bastante para se tornar aprendiz da Guarda Real no palácio. Era o mesmo nervosismo, o medo de não ser aceito.

Engoliu em seco, antes de forçar a voz a sair através da garganta apertada.

— Eu... Estou procurando Carmem e Viko Selec’Than. A ourives e o caçador... Alguém... Sabe onde posso encontrá-los, ou de alguém que pode me ajudar? — deixou os olhos percorrerem os trabalhadores, se encurvando em suas mesas para sussurrar uns com os outros. Afinal, um homem se ergueu, e o resto do burburinho silenciou.

— Você é o filho mais velho deles? Einar? — o homem perguntou; Einar balançou a cabeça em afirmativa, e então recebeu um aceno, pedindo-lhe para se aproximar.

Desceu do palco e caminhou até a mesa, onde o homem, robusto e usando vestes de lenhador, já afastara uma cadeira e servira uma caneca de cerveja para ele. Acomodou-se com cuidado, olhando para os lenhadores ao redor com cautela.

— Então, Einar... — o homem coçou a própria barba, os cotovelos apoiados na madeira. — As notícias que tenho não são muito boas... A Carmem morreu dois anos atrás. Estava viajando para Narem, entregar a encomenda de um nobre, quando uns ladrões atacaram.

Einar apertou os lábios. O lenhador parou, esperando para saber se ele queria detalhes do ataque onde sua mãe morrera. Quando permaneceu em silêncio, esperando, o homem pareceu aliviado por não ter de contar mais. O Cavaleiro-Monge preferia não saber. Não ainda.

— O Viko... Não aceitou muito bem. Ele já não estava muito legal desde que você foi parar em Orichalcum... Perder a esposa desse jeito... — parou, bebendo um longo gole da cerveja antes de voltar a falar. Einar viu algumas gotas escorrerem em meio aos fios espessos. — Ele... Surtou. Quase matou alguns guardas, dizendo que era culpa deles, que não protegeram o seu menino mais novo do Lobisomem, que atacaram o palácio e tiraram o mais velho dele e não protegeram a sua mulher dos ladrões. Teria sido morto, se os outros caçadores não o tivessem protegido e convencido os homens dos Alzú’Frigl que era apenas um homem atormentado. — parou, suspirando. — Pro próprio bem dele, os caçadores o colocaram no Sanatório Marnes.

Einar balançou a cabeça, antes de tomar todo o conteúdo da caneca de uma vez.

O sempre equilibrado Viko, seu pai... Num sanatório. Sua mãe, a histérica Carmem... Morta.

Sentiu as lágrimas picarem os cantos de seus olhos. Nunca imaginara aquilo. Estava preparado para descobrir que estavam mortos, por qualquer razão que fosse. Mas não que apenas um estava morto, e que o outro tivera de ir parar justamente no Marnes, que ele, seu irmão e tantas outras crianças gostavam de assustar umas as outras com histórias de terror.

Mal notou que o lenhador lhe empurrou outra caneca cheia. Apenas virou a cerveja. Caiu como uma pedra em seu estômago, e sentiu que o álcool já queria deixar seu cérebro rodando; sua vontade era de beber mais, mas lembrou da voz de seu mestre na Guarda Real, quando de sua primeira “decepção amorosa”: A resposta não está no fim do copo.

Empurrou a caneca para longe, deixando as costas caírem contra o encosto da cadeira, tentando recuperar o pensamento lógico que os Monges tinham lhe ensinado em Orichalcum para decidir o que fazer.

— Eu... Obrigado por me contar. — conseguiu fazer a voz sair, caçando um argentumie no bolso da calça, entregando-o para o lenhador. O homem arregalou os olhos. — Pela bebida, pela informação e por qualquer incômodo que eu tenha causado... — resmungou, levantando antes que o homem conseguisse falar qualquer coisa.

Einar não sabia de onde o homem conhecia seus pais. Considerando a corrente de casamento em seu pescoço, que lembrava muito um trabalho de sua mãe, provavelmente fora assim que os conhecera, durante seu período no Palácio Celeste. Isso explicaria não conhecê-lo.

Ergueu-se da mesa e andou até o balcão, deslizando outro argentumie para o taberneiro, antes de sair da Dama de Azul.



Olhou para o céu meio nublado acima da cidade, um vento frio se infiltrando por entre os tecidos de sua roupa e o fazendo estremecer. A luz vermelha de Átria conseguia se infiltrar por entre as nuvens, lançando um brilho rubro sobre a cidade.

Einar abaixou o rosto, esfregando os olhos, tentando afastar totalmente as lágrimas que tinham se formado e decidir o que fazer.

Respirou fundo, recuperando os ensinamentos que o auxiliariam a, apesar de seus sentimentos — que lhe diziam para sentar na sarjeta e começar a chorar como uma criança —, pensar com clareza. Aquela dor surda pelo que descobrira continuaria ali, mas ele seria capaz de ignorá-la em prol de sua sanidade. Sabia que era justamente isso que seus pais iriam querer que ele fizesse.

Decidiu voltar à casa do Cobrador de Impostos e ter uma noite de sono — embora não tivesse certeza de que conseguiria dormir — e, quando o dia amanhecesse, iria visitar o pai.

Puxou o capuz da capa sobre o rosto quando sentiu uma fina garoa começar a cair, e então, com passos rápidos e calculados, começou seu caminho para a casa, enquanto pensava no que faria depois de visitar o pai.

Ainda não o vira, mas Viko precisava dele, isso era um fato. Ele precisava de alguém da família, alguém de seu sangue, que o ajudasse a se recuperar. Einar queria ficar na cidade, encontrar um trabalho que o mantivesse próximo ao pai, mas pelos olhares gerais que recebera, duvidou que encontrasse algo para fazer que não deixasse o homem ainda mais surtado.

Fechou a mão em punho, conscientizando-se de que, quisesse ele ou não, sua melhor opção era aceitar a oferta de Estelia’Fal’Ima. Podiam ser três dias de viagem da Estalagem até Cilsan no ritmo de um hikmat, mas era um trabalho seguro, e tinha certeza de que, se conversasse com a mulher, ela o deixaria ir ver o pai com frequência.

Precisaria também falar com os outros caçadores do grupo de Viko, saber o que ocorrera com os bens da família. Torcia para que a casa ainda fosse propriedade dos Selec’Than, e que algumas das joias que sua mãe confeccionara ainda estivessem no cofre. Pelo que conhecia dos caçadores, eles tirariam dinheiro da própria organização para manter seu pai no Marnes, deixando os bens do homem intactos para quando ele se recuperasse.

Com a casa ainda pertencente à sua família, não precisaria se preocupar em encontrar um lugar para ficar quando estivesse em Cilsan. Também seria bom ter o lugar pronto, para quando seu pai pudesse abandonar o Sanatório. Não sabia quanto tempo levaria, mas tinha certeza de que, um dia, poderia levar o homem que o criou de volta para a própria casa.

Era isso.

Respirou fundo, parando por um momento e olhando para o alto, para a água que caía do céu e para as nuvens que tinham passado a esconder Átria.

Agora que estabelecera seus objetivos, sentia-se melhor. Com um rumo. Podia não reconhecer mais a cidade onde crescera — tudo mudara tanto em dez anos, que sentia-se um estranho no lugar — mas ao menos agora sabia o que fazer.

Lançou ao vento uma prece de agradecimento ao seu mestre, além de torcer, como sempre, que estivesse num lugar melhor; se tivesse seguido a própria vontade e bebido até esquecer o próprio nome, ainda estaria perdido, sem rumo. Seu precioso conselho sobre álcool nunca lhe ajudara tanto.



Espreguiçou-se, virando na cama e observando o sol nascente entrando pela janela e se derramando pelo quarto, do tamanho de um dos quartos com duas camas, mas, ao invés do segundo móvel, possuía alguns instrumentos musicais; uma harpa grande, feita da madeira clara de uma briani, uma cítara, um violão, um oboé e uma flauta transversal. O som dos instrumentos, graças a um encanto dos Silfos em torno do local onde estavam acomodados, ecoava no salão da Estalagem quando ela o ativava. Deu um suspiro profundo, observando onde a luz a atingia diretamente, mostrando a pele pálida percorrida por finos raios dourados que o encanto chamado Tkan escondia.

Tinha, milagrosamente, conseguido ir dormir no próprio quarto na noite passada, e não simplesmente cochilado em uma cadeira atrás do balcão, como nos últimos dias. Não passara de cinco horas de sono, mas ainda assim, fora um descanso bem vindo para seus músculos.

Levantou-se, caminhando para o pequeno banheiro anexo, onde lavou-se, preparando-se para mais um dia, agradecendo às três Luas que Bianco concordara com seu plano. Agora, Lima estava instalada confortavelmente num dos quartos e uma garota com não mais de catorze anos viajava para Cilsan em Caramelo, a égua que a Estalajadeira ganhara dos Silfos, com uma carta para o Mago-Mestre do Hospital da cidade, explicando a situação de uma caçadora atacada por um urso-das-árvores e que precisava urgentemente de sangue. Com sorte, a menina estaria de volta em no máximo quatro dias com o sangue pedido. Com mais sorte ainda, nenhum deles teria de explicar como exatamente fora o ataque ou qualquer coisa relacionada.

Deixou um sorriso escorregar por seu rosto, feliz que conseguira pensar rápido pelo bem da jovem caçadora, enquanto tentava imaginar sua aparência feita pela Tkan usando o vestido cinza-azulado que segurava diante de si. Era realmente complicado não ter um Reflexo para verificar o resultado com seus próprios olhos.

Afinal, deu de ombros, colocando a roupa, sua feitiçaria fechando os botões nas costas com poucos problemas, logo em seguida fazendo o mesmo com um corpete preto; enfiou o Baralho entre os dois objetos sem demora.

Fechou as cortinas e então olhou para si mesma, gostando do contraste delicado e suave entre a cor de sua pele escura e o vestido. Deu um sorriso pequeno, imaginando o quanto sua mãe detestaria ver ela, a “Princesa” Lauré Vellum’Frigl, usando roupas de cores tão escuras e com o cabelo preso fora do coque trançado tradicional da nobreza. Seu pai provavelmente diria que era uma bem-vinda mudança, mas que ela podia colocar um pouco mais de cor no vestido usando bordados, porque ela merecia todas as cores do mundo.

Inspirou longamente, impedindo as lágrimas em seus olhos de escorrerem ao lembrar de Suna e Andres Vellum’Frigl. Sentia o peito apertado por lembrar-se deles, algo que, desde que vira Einar, vinha acontecendo com mais frequência. Devia ser o resultado de reencontrar um elemento de seu passado de forma tão inesperada.

Hesitante, colocou a mão onde o Baralho pressionava sua pele e puxou uma carta.

A Concha, mostrando uma ostra colorida levemente aberta no fundo do mar, deixando entrever uma pérola em seu interior. Soltou um suspiro derrotado. A carta do segredo, do proteger-se. Algo desagradável se aproximava, embora não soubesse quando, exatamente — podia ser naquele dia ou dali a um mês.

Colocou a carta no lugar, em seguida endireitando os ombros. Já tivera seu conselho: continuar protegendo o segredo de quem realmente era, e proteger-se, mesmo que manter aquele segredo a matasse por dentro.

Precisava fazer aquilo, continuar a organizar a rebelião como se não fosse daquela terra, e sim uma estranha.



O Sanatório Marnes era como uma caixa, fechado, cinza-grafite e completamente sombrio devido à quase ausência de janelas, no meio de uma grande praça de pedra branco-encardido.

Na opinião de Einar, até mesmo Orichalcum, com suas paredes entremeadas de encantos com oricalco, era mais alegre. Não era à toa que o lugar figurava entre os piores nos pesadelos das crianças de Cilsan — perdia apenas para a mansão dos Alzú’Frigl e suas inúmeras janelas de vidro e portas de espelho.

Respirou fundo, e continuou a andar, as botas provocando um rangido irritante ao se chocarem contra as pedras da praça, se encaminhando para as portas de carvalho que levavam ao interior da construção. Ao empurrá-las, um sino baixo tocou; a mulher sentada à mesa da recepção levantou a cabeça do que quer que estivera escrevendo e fixou os olhos escuros nele. Um sorriso falsamente gentil se abriu nos lábios pintados de vermelho ao notar a marca em sua testa. Um lado do cérebro de Einar imaginou que conhecia aqueles traços de algum lugar.

— Bom dia... — o Cavaleiro-Monge começou, incerto, dando alguns passos na direção da mesa, parando diante da mulher.

— Bom dia. — ela falou, fechando com cuidado o caderno diante de si. — Em que posso ajuda-lo?

Inspirou tanto ar quanto conseguia, soltando-o de uma vez, tentando encontrar a coragem dentro de si. Não tinha certeza de como o pai estava. Não tinha certeza de que queria saber. Com a garganta subitamente seca, molhou os lábios e forçou a voz a sair.

— Eu... Me disseram que... Meu pai é paciente aqui.
Os olhos da mulher pareceram suavizar, o sorriso diminuindo, mas aparentemente, mais sincero. Einar se perguntou se ela via situações como a sua frequentemente.

— Entendo. Qual o nome dele? Vou verificar qual o médico responsável por ele e ver o que posso fazer por você.

— Viko Selec’Than. — sua voz falhou no final, e fechou os olhos por um instante. A mulher balançou a cabeça e se levantou, arrumando seu uniforme verde-claro. Einar notou um crachá de alumínio do lado direito de seu peito escrito “Dina Celan’Asus”, e um sorriso se arrastou por seus lábios, finalmente percebendo a similaridade de traços com todo o seu cérebro. — Dina. Justamente você veio parar aqui?

A mulher deu um sorriso tímido, arrumando uma mecha do coque castanho que saíra do lugar; Dina fazia parte do grupo com quem ele e o irmão brincavam em meio à cidade quando crianças. E era a mais medrosa quando se falava do sanatório.

— Pois é, Einar... Depois que você foi pro Palácio, acabei demonstrando aptidões mágicas... Elas eram mais voltadas pra mente, então, não demorou pra me encaminharem pra um Mago-Médico daqui. Ainda não tenho tanto controle sobre o Éter... Sou apenas enfermeira, e não posso usar a magia sem a supervisão do meu mestre, mas... Estou pegando o jeito. — o Cavaleiro-Monge deu um sorriso satisfeito, colocando uma mão em seu ombro.

— Você é dedicada. Claro que está pegando o jeito. — soltou-a, e Dina cruzou os braços. — Mas o que está fazendo aqui, já que é enfermeira?

— Fazemos turnos para cuidar da recepção. Por causa de toda a Magia, Feitiçaria e Poções que perambulam pelo prédio. Não queremos que pessoas sem treinamento sejam afetadas. A praça em volta e poucas janelas... Só por causa disso.

Einar quis se esbofetear. Ele tinha aprendido sobre essas coisas no Palácio, e de novo no Mosteiro. Não era bom deixar pessoas sem treinamento básico em Feitiçaria se aproximarem de locais com excesso de manipulação mágica, mental, espiritual e de almas; podia causar lesões no cérebro. O Marnes com certeza era um desses locais.

— Eu... Vou falar com o meu Mestre. — Dina engoliu em seco. — Ele é o responsável pelo seu pai. — ela parou por um instante, olhando ao redor. — Eu... Sinto muito pela sua mãe, Nar...

Einar ouviu o murmúrio e o apelido de infância, e acenou de leve a cabeça.

— Obrigado, Di... — ela sorriu de leve, antes de sumir por uma das portas.

Com um suspiro, o Cavaleiro-Monge caminhou para uma das cadeiras estofadas da sala e se acomodou, remoendo tudo que tinha se passado em sua cabeça, sobre o que o esperava quando visse seu pai e olhando para as próprias mãos, cobertas das cicatrizes de cortes dos treinos com espadas no Palácio Celeste e de queimaduras ganhadas nas forjas de vidro; perguntou-se, pela centésima vez desde que descobrira a morte da mãe, de que todo o treinamento no Palácio lhe valera.



A porta por onde Dina saíra mais cedo se abriu com suavidade, e um homem que aparentava ter por volta de cinquenta anos passou pela abertura, vestindo um conjunto verde-claro similar ao da mulher; Einar o identificou como um Mago-Médico pelo pingente de serpente de aço em espiral pendurado no pescoço.

O crachá no peito dizia “Silas Celan’Asus”, o que arrancou um sorriso de lado do Cavaleiro-Monge. Até onde se lembrava, Silas era tio de Dina, e trabalhava no Hospital da cidade até ele partir para o Palácio. As coisas realmente tinham mudado.

— Einar Selec’Than? — o senhor se aproximou, as mãos nos bolsos da calça e as sobrancelhas grisalhas e espessas se enrugando com seriedade.

— Eu mesmo, senhor. — Silas balançou a cabeça em afirmativa, antes de voltar por onde entrara, fazendo sinal para ser seguido.

— Bem, Sr. Selec’Than... Imagino que minha sobrinha não tenha te contado porque seu pai ainda está no Marnes... — virou levemente o rosto em sua direção enquanto seguiam pelos corredores pintados de cinza-claro, passando por outros Magos-Médicos, Enfermeiros em treinamento, outros funcionários e pacientes.

— Não, senhor. — O homem balançou a cabeça, como que esperando aquela resposta.

— Seu pai está lúcido. Aliás, esse é justamente o problema: ele quer realmente matar tantos guardas puder, e os próprios Alzú’Frigl, se tiver oportunidade. — a boca se torceu numa careta de desgosto. — Viko quer vingança pela família. Nesses dois anos, nem eu, nem seus companheiros caçadores, nem ninguém, o convenceu a deixar isso de lado e viver... — parou em frente a uma porta e olhou para Einar. O rapaz engoliu em seco com o semblante sério que estava diante de si, enxergando expectativa nas íris verde-escuro. — Espero que você o convença disso. De que agora ele tem um motivo para viver.

Balançou a cabeça de leve, como que prometendo que atenderia essa expectativa.

Silas enfiou uma chave na fechadura enquanto deslizava a mão pelos encantos gravados no batente, desativando-os numa ordem específica antes de abrir a porta.

Acenou para o Mago-Médico, e tomando fôlego como se fosse mergulhar, Einar entrou, não sabendo o quê, exatamente, esperar encontrar.



Foi fácil reconhecer seu pai, se exercitando no chão do quarto. Ganhara mais rugas, os músculos tinham murchado um pouco e ganhara alguns fios brancos no cabelo, mas ainda era como olhar para si mesmo mais velho. A única exceção eram os olhos: um azul claro e gélido que fazia Einar se lembrar do irmão mais novo. Evidência do sangue Arcris que ignorara Einar.

— Hei, pai. — não sabia o que dizer, e quando falou, sentiu suas entranhas se retorcerem, como que querendo arrastá-lo para fora dali. Além de querer puxar as palavras de volta: quem fica dez anos sem ver o próprio pai e só diz “Hei, pai”?

Viko parou e fixou os olhos nele, analisando-o. Ele podia sentir: era o mesmo olhar crítico que recebia após alguma travessura mais séria do que sair das barreiras da cidade. Sentiu medo de receber uma bronca, ou pior, de simplesmente ser expulso do local.

E então, o homem de meia-idade se levantou num pulo e jogou os braços ao redor do Cavaleiro-Monge, apertando-o contra si com uma força que muitos julgariam ter se esvaído com a idade. Einar hesitou um pouco, mas afinal, devolveu o abraço, tão ou mais forte.

Ele não sabia quando, como ou por que, mas apoiou a testa no ombro de seu pai, alguns centímetros mais alto que ele, e começou a chorar, as lágrimas escorrendo silenciosas pelo rosto. Se lhe perguntassem a razão do choro, não saberia dizer.

Era algo com o cheiro de suor, grama, couro e ervas que rodeava o pai. Junto com o cheiro de metal, flores e sol, de sua mãe, e de cachorro molhado, floresta e chuva de seu irmão, era o cheiro de sua infância. Era só um pedaço, mas era cheiro de casa, que ele sentira falta especialmente nos últimos três anos.

— Shhh... Calma, filho... Você está em casa agora... — ouviu Viko sussurrar em seu ouvido, uma das mãos batendo de leve em suas costas. A voz tinha o mesmo tom tranquilizante de quando ele e Sigried tinham pesadelos e iam para o quarto dos pais. O mesmo tom de “Já passou. Vocês estão comigo, e é só o que importa”.

Aquelas frases só o fizeram chorar mais.

Einar sabia, apesar do que o pai dizia.

Ele não estava em casa. Nunca mais estaria. Precisava reconstruí-la. Era um Cavaleiro-Monge, alguém marcado por traição aos Reinos — mesmo que a sua fosse somente se negar a jurar fidelidade aos Alzú’Frigl após o golpe —, e isso praticamente anulava que Cilsan era sua casa, porque nunca seria realmente bem-vindo ali. Dina, Silas, o lenhador na Dama de Azul... Só o tinham tratado bem por conhecerem-no, ou por conhecerem seus pais. O Cobrador de Impostos, por uma questão de favor cobrado.

Só ali, com seu eterno herói, ele realmente entendeu que, mesmo que encontrasse seus pais vivos e bem na cidade, nunca poderia ficar. Não poderia expô-los a um tratamento similar ao que recebia.


Finalmente entendeu que era, de fato, um estranho numa terra estranha. Que para todos os demais, era apenas um traidor.

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