O Sonnenblume se despediu de mim
batendo em minhas costas, antes de sumir pelos corredores de metal, me deixando
encarar sozinho o que podia ser chamado de primeira “aula”.
“Com
medo?”
Que
que tu acha? Ontem sequer me viram no refeitório por causa da briga e por causa
de Luís... Agora não vou ter essa facilidade. Além disso, é a aula pra aprender
a controlar a transformação. Aposto que Davi vai estar lá dentro.
A fera ficou em silêncio,
provavelmente lembrando de como o Kupfer nos tratara no dia anterior.
Sinceramente, a ideia de
reencontrá-lo não me agradava muito.
Resmungando algo ininteligível,
sentindo o estomago roncar porque o professor que me convocara para estar lá às
seis da manhã proibira que tomássemos café, encostei a palma da minha mão na
interface da porta. Uma luz piscou de azul para verde junto com um aviso para
afastar a mão. Assim que o fiz, a porta reflexiva fez um zumbido conforme se
afastava para a lateral.
Do outro lado, havia uma sala
ampla, com o teto alto, quase vazia, na qual eu pisei devagar, olhando para
todos os lados. Ao invés do carpete cinza-chumbo, o chão era de alumínio, com
alguma espécie de antiderrapante cobrindo-o em diversos locais. As paredes eram
claras, e os únicos móveis, se é que dá pra chamar assim, eram blocos de
concreto de diversas alturas e tamanhos; olhei ao redor, encontrando os outros
oito Lobisomens com coleiras, Davi e Larissa entre eles, conversando; ele não
parecia tão afetado por ela quanto os outros rapazes...
“Lá
na enfermaria ela falou como se o conhecesse... Como são os próximos Alfas de
seus clãs, é bem capaz...”
Pensando bem, até que a fera
tinha razão nisso.
Com um suspiro, comecei a andar
na direção do grupo, me preparando psicologicamente para o que quer que fosse
acontecer; faltando alguns passos, a parede deslizou num canto e um homem
entrou milésimos de segundos depois que o cheiro de couro e tinta.
Ele tinha olhos dourado escuro
com gotas de azul, o cabelo cor de areia cortado numa espécie de moicano que
era, ao que me parecia, uma pobre tentativa de tentar passar a impressão de
altura, já que ele mal chegava aos meus ombros. E ele não era apenas baixo; era
tão magro que o uniforme militar ficava um pouco largo nos braços e pernas.
Novo ele também não era. Chutava que tinha pelo menos trinta e cinco anos.
Sinceramente, ele parecia
qualquer coisa, menos um Lobisomem, mas não deixei essa impressão cegar o que o
cheiro de tinta e couro me fazia pensar: em alguém que transformava os inimigos
mortos em sapatos.
Ele olhou ao redor com um ar
ausente, os olhos parados e frios, focando-os em mim um segundo à mais do que
nos outros de modo estranho, provocando um arrepio na minha coluna e um rosnado
ameaçador da fera.
- Estão todos aqui... Bom... –
ele murmurou, as mãos cruzadas nas costas. Sua voz tinha um tom grave que não
combinava muito com sua aparência. – Façam uma fila à minha frente, em posição
de sentido.
Resmungando interiormente, me
juntei à fila que se formava; notei, de forma quase ausente, que era o último
da fila e que a pessoa do meu lado esquerdo tentou ficar um passo mais longe
que o ideal.
O homem ergueu uma sobrancelha
para o espaço a mais, mas não falou nada, simplesmente começando a andar de um
lado para o outro lentamente, como uma onça analisando uma caça presa.
E era exatamente como eu me
sentia.
Parou de repente, deslizando
novamente o dourado com gotas de azul sobre nós, e então se afastou, nos dando
as costas; pude ver a interface espectral do anel dele se expandir pelo braço
enquanto ele digitava algum comando, e então parte de uma das paredes se afastou,
exibindo exoesqueletos de modelo padrão de corpo inteiro. O militar se apoiou
na parede ao lado, os braços cruzados, olhando para nós intensamente; parecia
misturar seriedade e raiva.
- Vistam os exoesqueletos, à
menos que queiram perder essas roupas. – resmungou, a cabeça inclinada pra um
lado e os olhos semicerrados.
Alguns Lobisomens que já eram
transformados há mais tempo que eu, Larissa e Davi, não hesitaram em avançar e
pegar um dos macacões e começarem a se trocar, ali mesmo, na frente de todos; mesmo
as garotas pareciam não ter problema nenhum em ficar de roupa íntima na frente
de todo mundo; considerando a briga durante o jantar na noite anterior, isso
não me surpreendia de todo. Engolindo em seco, acabei sendo o último a pegar o
exoesqueleto.
Particularmente, nunca tinha
tocado em um exoesqueleto; não tinha ideia de que lembrava tanto uma espécie de
couro exteriormente, enquanto interiormente, parecia um tecido fino de algodão,
muito suave ao toque. E também não tinha ideia de que os exoesqueletos dos
Lobisomens possuíam o que pareciam fechos estranhos nas laterais e no meio das
costas, nem do que pareciam ombreiras nos, bem, ombros; muito menos as placas
estranhas do mesmo material das ombreiras na altura das escápulas e descendo ao
longo das costas.
Respirando fundo, me despi
rapidamente da calça jeans e da camiseta preta e comecei a vestir o macacão, o
tecido deslizando facilmente até a gola envolver meu pescoço. Com um pouco de
dificuldade, fechei o zíper nas costas, mas ainda não tinha ideia de como os
tais fechos funcionavam; tentei fechá-los, mas eles se recusavam a ficar
firmes.
“Problemas?”
Cala
a boca,
resmunguei para a fera, quase arreganhando os dentes de fato.
Senti uma mão tocar com cuidado
meu braço, logo se afastando; me virei de repente, vendo uma garota da minha
altura, com um rosto rechonchudo e grandes olhos dourado-escuro quase cobre,
como Davi, que me passavam gentileza e bondade, algo que eu não esperava, e
junto das feições dos rosto, a faziam parecer ter não mais de treze anos. Os
cabelos eram pretos, mas o anel cor de cobre não deixava dúvidas de que era uma
Kupfer, embora uma longe do ramo principal, com o sangue muito misturado.
- Precisa de ajuda? – a voz era
doce e baixa, combinando com o cheiro de terra molhada, lavanda, erva-doce e
algo mais que não consegui identificar que vinha da garota; ela como um todo me
dava certeza de que ela, provavelmente, não seria uma militar. Muita doçura
para estar nesse meio, especialmente considerando a oferta de ajuda, tão fora
de lugar dos olhares e reações que eu já tinha despertado.
Soltando um suspiro, acenei em
afirmativa. Um sorriso delicado apareceu no rosto da Kupfer, o que me deu mais
certeza de que dificilmente nos encontraríamos fora das aulas de controle; as
mãos dela se moveram para os estranhos fechos do exoesqueleto. Observei
atentamente como ela fez com o fecho na altura da minha cintura: segurou uma
das extremidades e puxou-a, e o fecho esticou; empurrou-o contra mim com força,
quase me fazendo envergar pela pontada de dor e provocando um som estranho de
sucção muito baixo, antes de empurrá-lo para o lugar de antes, fechando-o.
Parecia infinitamente mais firme
do que quando eu tinha tentado.
- Os fechos precisam estar bem
firmes; se estiverem frouxos, quando você se transformar, eles vão arrebentar e
o exoesqueleto também. – ela explicou solicitamente enquanto realizava o mesmo
processo nos fechos ao longo da minha coluna, que se fechavam por cima do zíper.
– É uma questão de prática. – ela finalizou o último fecho na altura da metade
do meu bíceps direito, deslizando um dedo pela região em que os circuitos
azul-claro pareciam mais densos; Luís tinha me contado noite passada que os
exoesqueletos dos Lobisomens eram feitos de forma que conseguissem acompanhar a
transformação sem deixar parte alguma exposta. Ele só não tinha dito como.
- Obrigado. – sem pensar, abri
um sorriso para a garota, e quase pulei quando as bochechas dela ficaram
vermelhas.
“Você
realmente não tinha percebido que ela só te ajudou por que se interessou por
você?” eu juro,
eu quase vi sobrancelhas se erguendo no rosto da fera.
Não.
“Preciso
realmente te ensinar a entender como os cheiros contam tanto quanto as cores
para nós...”
Resmunguei algo ininteligível
como resposta e desviei o olhar da garota, tentando pensar em como me afastar
sem dar bandeira; só então notei que Davi tinha um olhar de aviso no rosto.
Cutuquei a Kupfer diante de mim e apontei com o queixo para o rapaz; mal ela
virou para olhar e praticamente corri para longe dela.
Já bastava Davi me detestar por
ser um mestiço com humano, não preciso que ele me deteste mais ainda por estar
“desvirtuando alguém de seu clã”.
Maldita política Lobisomem.
Me virei para o militar baixinho
e magrela que não se apresentara, apoiado no mesmo lugar, mas agora também
usando um exoesqueleto, com uma expressão de quem chupou limão. Sem nem ele
precisar falar, nós fizemos outra vez a fila em posição de sentido.
- Precisam aprender a se trocar
mais rápido que isso, filhotes. – disse num tom que pareceu irritadiço, a voz
ecoando no ambiente vazio. – Escutem bem, filhotes. – Começou, andando com
passos lentos e calculados diante de nós, a coluna reta como um cabo de
vassoura. – Se quiserem controlar a transformação e suas feras, vão seguir à
risca as minhas instruções. Se eu falar “pulem de um penhasco”, vocês pulam sem
reclamar e sem olhar pra baixo. É isso, ou quem vocês são vai morrer, devorado
pela fera, e ela vai ter um corpo todinho dela pra matar à torto e a direito. –
estremeci com a fala dele, me lembrando do sonho antes de acordar, em que o
olhar da fera me dizia que ela queria devorar a minha alma.
“Amadeus...”
Que
é?
“Só
devoramos aqueles que não se provam merecedores de nos ter como aliados.” Quase pude ouvi-lo suspirar. “Você tem se demonstrado merecedor do meu
respeito na maior parte do tempo. Não precisa temer... Muito.”
Não serviu para me acalmar
totalmente...
O militar deslizou os olhos pela
gente, analisando. Repentinamente, ele parou e sua postura relaxou totalmente,
antes dele fechar os olhos.
- À vontade, filhotes.
Com as sobrancelhas franzidas,
segui a ordem, mandando um “cala a boca” pra fera, que depois de declarar que
eu não precisava temê-la muito, dera pra reclamar por ser chamada de filhote,
resmungando coisas que eu não conseguia entender.
Girando os olhos para a reação
daquela outra parte de mim, me foquei nas instruções do Lobisomem magrelo.
- Fechem os olhos. – suspirando,
fiz como ele disse. Lentamente, comecei a prestar mais atenção ao que minha
audição, meu tato e olfato me diziam: o cheiro de Davi parecia transmitir
impaciência, enquanto o de Larissa me fazia pensar em tédio. Como eu não
prestara atenção ao cheiro dos demais, não sabia dizer o que eles provavelmente
sentiam: podia ser o cheiro natural deles. – Eu disse “Fechem os olhos”, senhor
Kupfer. – ouvi um rosnado que só podia vir de Davi, e segurei o riso.
Não sei quanto tempo se passou
conosco ali, apenas parados de olhos fechados. Meus ouvidos me contaram quando
outros mudaram de posição porque estavam cansados da posição anterior, mas nada
além disso.
- Acabei de desativar as
coleiras de vocês. À partir de agora, você podem se transformar se quiserem. –
uma pausa, e ouvi os passos calculados e leves do militar, se aproximando de
mim. – Mas vocês não vão se transformar. Isso é uma ordem, filhotes.
De repente, senti um soco no meu
estômago; o golpe provocou uma agulhada intensa de dor e acabei abrindo os
olhos, enquanto ofegava e me encurvava.
- Vamos começar com o filhote
mestiço. Os outros se afastem. – só então consegui perceber o que havia de
estranho em seu olhar quando demorou mais em mim: desprezo. A voz dele estava
cheia disso agora. Ouvi os outros se afastarem em silêncio enquanto eu virava o
rosto para observar o militar. O brilho no dourado-escuro com pontos azuis me
dizia que ele pegaria mais pesado comigo que com os outros; isso se confirmou
quando ele agarrou meu cabelo, aproveitando que eu ainda estava encurvado com a
dor, e puxou minha cabeça para me fitar nos olhos. – Não esqueça a minha ordem,
filhote: você não tem permissão para se transformar. Mas você tem permissão
para revidar.
Ele soltou meu cabelo e se
afastou, antes de se transformar e me fazer estremecer: a sua fera era mais
alta que eu, e tinha tantos músculos quanto Davi. E as garras tinham uns quatro
centímetros de comprimento.
A fera gemeu quando o viu.
“Você
VAI deixar as unhas crescerem...”
Considerando o quão desarmado eu
estava, é claro que eu deixaria as malditas unhas crescerem. O que a fera
dissesse.
Quando o “professor” terminou de
se transformar, ele pulou na minha direção, e teria aterrissado em cima de mim
se eu não tivesse me abaixado e rolado, me levantando rapidamente e correndo
para longe dos outros. Caso eu perdesse o controle e a fera assumisse, não
queria os outros por perto... Tipo, provocaria uma carnificina se eles também
perdessem o controle.
O militar transformado uivou de
raiva e com um tom de reprovação – incrivelmente – antes de correr na minha
direção. Não me movi, sabendo que teria de receber alguns golpes para saber
manter a fera sob controle em situações extremas, e voei quando ele agarrou meu
braço, girou e me atirou na direção de uma das plataformas de concreto. Uma das
mais altas.
Bati a cabeça com força na
superfície plana da plataforma e senti um talho se abrir no meio do couro
cabeludo, irradiando dor; pelo menos não mordera a língua. Girei, ficando de
costas para cima, e embora minha cabeça rodasse, apoiei as mãos no concreto e
comecei a me levantar. Piscando, sentindo o sangue escorrer profusamente,
ensopando o cabelo e o meu pescoço, se infiltrando por debaixo do exoesqueleto,
notei que também ouvia apenas um zumbido, nenhum outro som.
O Lobisomem pulava pelas
plataformas para me alcançar. Do outro lado do salão, franzi as sobrancelhas
quando vi os outros “filhotes” olhando em minha direção enquanto pareciam
gritar uns com os outros; os outros que já estavam nas aulas há mais tempo – ou
seja, todos, com exceção de Larissa e Davi – apontavam para o militar e para
mim; pareciam irritados.
“Me
deixa assumir o controle.”
Tá
louco? Não posso me transformar.
“Se
você não se transformar, ele vai te matar. É isso que ele quer, Amadeus. Pensa
na Eliana.”
“É
o que eu to fazendo. Preciso aprender a controlar a transformação se quiser ter
alguma chance; se ela se transformar, vai precisar de alguém pra guia-la.”
A fera ficou razoavelmente
quieta: ela ainda rosnava no fundo da minha mente, mas não falou de novo. A
garota que me ajudara, pelo que percebi, ativara a comunicação da sala usando a
interface touchscreen da parede, gritando com alguém que eu não sabia quem era,
já que ela estava na frente. Os demais tinham se espalhado pela sala, olhando
com atenção o desenrolar dos fatos.
O Lobisomem estava mais próximo,
a apenas uma plataforma de distância. Engolindo em seco e adivinhando que ele
me atiraria pelo lugar de novo, me levantei, cambaleante, e pulei para a
plataforma mais baixa e na direção contrária de onde ele vinha; quase me
arrebentei mais ainda quando cai. Quando me levantei de novo, ouvi um rosnado
de aviso, como quando minha mãe dizia “se correr, apanha mais”, quando eu
aprontava uma das minhas. Mas não tinha nada do carinho escondido de Isabel. Só
então percebi que minha audição tinha voltado.
Antes que eu alcançasse a borda
do lugar onde eu estava, o militar pousou pesadamente atrás de mim e pulou em
minhas costas, me derrubando. Nem meio segundo depois, senti os dentes
perfurarem meu ombro – exoesqueleto desativado igual a sem mitril –, os dentes
atravessando o tecido como se ele fosse manteiga.
Deus, como doeu. Só não foi pior
que a primeira transformação, mas ainda assim, me fez gritar como se o mundo
estivesse acabando. Pra mim, estava mesmo.
Me contorci, acertando-o com o
cotovelo, mas ele nem percebeu; pelo contrário: soltou um pouco e mordeu de
novo, um pouco mais acima, mas mais apertado.
O líquido carmesim começou a se
acumular debaixo de mim e minha mente começou a ficar nublada com a falta de
sangue; as memórias dos acontecimentos recentes estavam começando a se misturar.
De repente, os dentes saíram e o
peso em minhas costas sumiu, enquanto ouvia um ganido de dor e um baque surdo.
Sentindo a cabeça rodar mais ainda, virei de costas, olhando para o teto,
ofegando e então usando a mão do ombro inteiro para pressionar o ferimento.
O sangue ainda saía aos
borbotões.
Reconheci Davi, e isso quase me
fez perder o ritmo que eu construíra para aguentar a sensação de que nem todo o
ar do planeta seria o suficiente. Era difícil acreditar que fora ele quem me
salvara, principalmente porque eu ainda podia enxergar em seu olhar acobreado e
brilhante o fato de que ele não gostava de mim.
Ele ajoelhou do meu lado e puxou
minha mão para o lado sem se esforçar, abrindo os rasgos no exoesqueleto e
analisando as perfurações.
- Vai ficar cicatriz, apesar de
não ser prata, mas você vai sobreviver. – a voz tinha um tom quase frio, embora
eu conseguisse identificar algo de raiva ao fundo, e então ele se levantou. –
Consegue andar? – respirei fundo e me esforcei para ficar de pé, o que foi uma
tarefa hercúlea graças ao senso de equilíbrio totalmente bagunçado, e acabei
precisando que o Kupfer me puxasse pelo braço intacto.
- O que aconteceu, exatamente, e
por que você salvou o meu traseiro? – perguntei enquanto começava a descer
pelas plataformas até o chão com a ajuda de Davi, já que o ombro dilacerado, o
talho na cabeça e a falta de sangue tinham me deixado zonzo até o último fio de
cabelo; era capaz de eu acabar caindo todo o caminho para baixo, e o Kupfer
resmungara algo como “não tinha me salvado de um Lobisomem psicótico pra morrer
numa estúpida queda”.
- Ele quebrou a lei. Te atacou com
a intenção de te matar. – ele parou por um instante, pulando da última
plataforma. – Por mais que te detestemos por ser mestiço com humano, você ainda
é um Lobisomem, e Lobisomens não matam uns aos outros desde que os acordos de
paz dos clãs foram assinados. Qualquer um que mate um semelhante não é digno de
ser chamado de Lobisomem. – e então ele se afastou, como se não se importasse
mais comigo.
A dor no ombro e na cabeça
diminuíra para um latejar constante, mas suportável; olhei ao redor, e vi o
militar de novo em sua forma humana, um ombro deslocado, provavelmente pela
queda, e com rasgos nas bochechas, provavelmente de quando Davi o forçara a
largar meu ombro. Mas ele estava com uma coleira no pescoço, o rosto raivoso,
como um cão de rua prestes a atacar, enquanto Joshua estava na frente dele,
berrando com raiva, enquanto outros militares estavam parados ao redor, armados
e com expressões de desprezo para o que estava ajoelhado no chão entre eles.
Davi e Larissa foram os últimos recrutas a saírem.
“Eu
sei que conheci Joshua ontem, mas não imaginava que o veria irritado, pelo
menos não tão já... Também não esperava que fosse justamente Davi a salvar o
nosso rabo.”
Me assustei quando a fera se
manifestou; ela tinha ficado tão quieta desde que Davi me salvara o traseiro,
sem nem rosnar, que até tinha esquecido que ela pedira para assumir o controle.
Com um suspiro, concordei com a fera e então me aproximei do grupo e me
concentrei para decifrar o que Joshua berrava.
- O garoto sequer era nascido durante a Ascensão, Ageu, não tem a
menor culpa do que seu avô passou nas mãos dos humanos! O que você acha que a
Alfa dos Kapuyt, a sua irmã, vai
falar quando souber que você foi pro exílio por tentar matar um dos recrutas?!
Ageu virou
o rosto, se recusando a olhar Joshua nos olhos e também a falar. O Major
respirou fundo, se afastando e olhando com algo que só podia ser nojo pro outro
Lobisomem.
- Levem
ele para Svart. Que eles decidam o local do exílio. – Svart. Uma das nove
cidades Lobisomem; se eu me lembrava bem, localizava-se naquele pedacinho da
antiga Turquia que ficava na Europa.
Dois dos
Lobisomens agarraram Ageu pelos braços e o arrastaram para fora do salão, os
outros escoltando o prisioneiro, atentos. Só depois que a porta se fechou atrás
deles que Joshua virou-se para olhar para mim. Havia um olhar estranho em seu
rosto quando ele viu o sangue que me cobria, e então balançou a cabeça.
- Sinto
muito por isso, Amadeus. Não era pra acontecer. – sua voz ganhara um tom de
amargura, antes de erguer o olhar para nenhum lugar em específico. – Muitos não
deixam as feridas que ocorreram durante a Ascensão cicatrizarem... Isso não é
bom... – ele resmungou, e eu desconfiava que não era para mim, exatamente.
De
repente, as portas da sala se abriram, e um Luís quase desesperado entrou e
correu na minha direção.
- Eu sabia
que Ageu nunca aceitaria ensinar um mestiço a controlar a transformação! Eu
sabia! Devia ter vindo com você e esperado um pouco! – ele puxou minha cabeça e
afastou o cabelo, observando o talho e fazendo um som estrangulado. – Enfermaria
agora mesmo! Obrigado por salvá-lo, Major! – antes de me puxar para fora, parou
para bater continência para o Lobisomem, que a dispensou com um sorriso leve.
- Cheguei
tarde e só prendi o idiota, quem salvou Amadeus foi Davi. – meu colega veterano
pareceu surpreso por um instante, então deu de ombros e começou a me puxar pelo
braço bom para fora.
Mal tive
tempo de acenar uma despedida para Joshua.
Assobiei
de dor quando Tyvan enfiou de novo a agulha curva na pele, juntando os pedaços
de couro cabeludo da minha cabeça; o Zuri decidira que, se eu conseguira andar
até a enfermaria, não precisava de anestesia, afinal, embora em dois dias eu só
fosse ter a cicatriz dos ferimentos, ainda era preciso garantir que tudo
estivesse no lugar quando a cicatrização se completasse.
- Ainda
bem que não tentou se transformar... Acabei de receber do Major que Ageu não
tinha desativado a sua coleira, só a dos outros. – Luís falou da cadeira onde
esperava Tyvan terminar de me remendar, segurando as roupas que o militar tinha
feito a gente tirar. – Tu teria apagado na hora e seria presa fácil.
Quando eu
ia falar, a agulha entrou de novo, e só saiu um resmungo ininteligível antes que
eu conseguisse realmente fazer a voz sair.
- Como o
Major disse, quem salvou o meu traseiro foi o Davi. Não teria adiantado nada se
ele ou se a outra garota Kupfer não tivessem se movido.
Ouvi um
bufo vindo do médico, e ergui os olhos para ele; levar minhas íris bicolores
tão alto piorou a dor de cabeça que a fera estava provocando com seu discurso
de ódio para contra Ageu.
- A lei
Lobisomem te salvou, mestiço. Alguns séculos atrás, antes dos acordos de paz
entre os clãs, você teria morrido; não por ser mestiço, mas por ser sem-clã:
não teria ninguém para te socorrer. – ele terminou os pontos na cabeça, e então
limpou ao redor do local onde meu cabelo fora raspado – inferno –, tirando os últimos vestígios de sangue na região, antes
de se movimentar para o meu ombro dilacerado; me encolhi instintivamente,
adivinhando que doeria mais ainda, considerando a quantidade de perfurações. Tyvan
dissera que eu tinha sorte de não ter perfurado o pulmão, embora tenha chegado
perto. – Ainda assim, recomendo que você se esforce pra atrair a atenção de
algum clã. Os Kapuyt vão ficar malvistos depois disso, mas nenhum clã vai cair
em cima deles, então, vai ficar por isso mesmo, e logo todo mundo esquece. –
travei o maxilar quando o primeiro ponto foi dado, me segurando para não morder
a língua. – Se você tivesse um clã, o seu Alfa teria a obrigação de exigir
atitudes severas em relação à Ageu e não deixaria os outros esquecerem
facilmente. E também dificultaria a vida dos Kapuyt. Os clãs cuidam dos seus.
Outro
ponto, outra travada de maxilar.
- Tyvan
tem razão. – Luís resmungou, num tom de quem não gostava de concordar. –
Detesto admitir, mas ele tem razão. Você precisa chamar a atenção de um clã. É
inclusive o melhor pro caso da sua irmã caçula se transformar. – olhei na
direção do Sonnenblume, semicerrando os olhos quando a agulha entrou de novo,
metodicamente. Ele sorriu de leve, perdendo algo da seriedade e mau-humor que
concordar com Tyvan tinha lhe dado. – Mas não precisa ter pressa. Pelo que sei,
o último sem-clã que apareceu só conseguiu demonstrar algo que atraísse os
Gisher depois de quase dois anos de treinamento. – o Lobisomem então reclinou a
cadeira nas pernas traseiras, as mãos batendo de forma ritmada no alumínio. –
Aliás, imagino que quem vai acabar te reclamando serão eles... A maior parte
dos órfãos que resultaram da Ascensão, com pais desconhecidos, foram acolhidos
por eles. Faz sentido eles escolherem mestiços inesperados também...
Engoli em
seco, mal reparando no próximo ponto, enquanto pensava na palavra “órfãos” e
“Gisher”. O clã de Joshua. Até que seria legal ser do mesmo clã dele...
Mas,
afinal, aquela palavra confirmava o que minha mãe sempre dissera: a Queda foi
para os humanos, mas no final, todos perderam.
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