E
assim passou-se uma semana.
Os
pais de Arely quiseram ver as supostas queimaduras, mas, felizmente, Ruby tinha
ficado até mais tarde e pensou rápido, livrando seu pescoço, alegando que era
melhor expor os ferimentos apenas para trocar os curativos – e, de fato, era
melhor fazê-lo apenas nesse momento.
Ruby
estava ali todos os dias, trocando os curativos, acompanhando a humana desde o
colégio: almoçava, lanchava e jantava na casa dela, fazendo juntas as tarefas e
trabalhos, trocando ideias e conversando sobre jogos. Arely admitia que sentia
falta daquela cumplicidade que ambas vinham compartilhando. E o fato de Louis
ter parado de ir ao colégio melhorou seu humor de forma visível.
No
entanto, a Lycan notou algumas coisas incomuns em relação aos cortes,
principalmente por se tratar de uma humana, quando a semana chegou ao fim.
Apesar da profundidade, da grossura e do comprimento dos cortes, em momento
algum sangraram como deveriam, especialmente com a ausência de pontos. Tinha
percebido isso quando eles surgiram, mas não tinha dado importância. Mas agora,
vendo ela movimentar os braços – desde o cotovelo até a ponta dos dedos – como
se estivesse tudo bem, sem sentir dor alguma, e o fato de que os cortes
pareciam precisar de apenas mais uma semana, no máximo duas, para cicatrizarem
completamente, fez Ruby ter certeza completa de que havia algo mais em Arely.
Aquele ritmo era rápido demais para um humano, em se tratando de cortes tão
fundos.
Mas
não comentou nada. Tinha certeza que acabaria assustando a garota, e já bastava
a preocupação que ela demonstrava consigo ao perceber como Ruby estava tensa:
ela ainda não tivera a oportunidade de falar com seu irmão. Durante o dia
estava ao lado de Arely, e à noite era ele que liderava o grupo que a vigiava.
Mas saber que durante o fim de semana a vigia seria liderada por Matheus fez
com que parte daquela tensão se esvaísse. Allan estaria tranquilamente em casa,
descansando e recuperando as energias gastas.
E,
mesmo com a cabeça já cheia de coisas, ela percebeu as olheiras que sutilmente
começavam a se destacar no rosto da humana.
Perguntou
se estava tudo bem, e ela sorriu, dizendo que eram apenas surtos criativos – a
garota gostava de desenhar, sabia disso, e os poucos desenhos que conseguira
ver, eram lindos, mesmo no estágio de esboço.
Arely
não contou sobre os pesadelos que a mantiveram acordada e desenhando apenas
para passar o tempo. Não eram como os que tinham lhe atormentado até segunda de
manhã: absolutamente nenhuma relação com o episódio da infância que quase a
matou. Eram... Diferentes. Diferentes e, de alguma forma, mil vezes mais
assustadores.
Todos
traziam aquela mulher de cabelos negros e olhos azul-claro. Aquele olhar azul
que lhe dava arrepios... Eram como um lago de aparência suave e rasa, mas que
bastava você se distrair para tragá-lo para suas profundezas mais obscuras. A
assombrava mais que o olhar de Louis.
Nem
sempre aquela mulher falava. Mas sempre aparecia. Uma presença constante, com
seus olhos postos sobre sua figura, um sorriso irônico, sarcástico, maldoso e
satisfeito dançando nos lábios tão vermelhos em contraste com a pele pálida.
E
em todos, por alguém ou apenas uma voz ecoante, ela era chamada de Amaldiçoada
e Corvo-Branco da Tempestade. Várias vezes, era aquela mulher que dizia aquelas
palavras.
Ela
não sabia o que mais a assustava: não ter ideia do que aquelas coisas
significavam, ou o fato de que vinham se repetindo quatro dias à fio, lhe
arrancando o precioso sono. Definitivamente, um sonho que vem se repetindo não
é algo bom. E não era o seu lado racional que gritava isso, era o seu lado
espiritual, ainda mais por lembrar-se dos sonhos da semana anterior à mudar-se
para Goiânia. O que complicava ainda mais as coisas.
Além
disso, durante aquela semana, sentia aqueles estranhos “dons” que lhe falavam sobre
verdade e mentiras, sobre futuro, intenções e todo o mais, se intensificaram.
Sentia-os mais fortes, e com isso, sentiu a sensação de que seus pais iam se
separar mais forte ainda, além da confiança por Ruby aumentar – embora tudo em
si gritasse para não falar sobre os pesadelos.
Ela
não lembrava os detalhes de todos os sonhos, mas alguns marcaram.
Um
deles se tratava de Louis brigando de forma violenta com o rapaz que aparecera
no sonho de segunda. Os olhos de Louis não eram azuis, eram vermelhos. Sangue
escorria pelo rosto de cada um deles e empapava as camisas que com certeza eram
do século passado, no mínimo. As faces de ambos estavam contorcidas em caretas
ferozes, um riso sarcástico se desenhando nos lábios de Louis, que contornavam
dentes pontudos que fizeram um calafrio percorrê-la. Enquanto isso, o outro
tinha no rosto uma fúria que a fez ter certeza de que o mínimo que ele sentia
pelo outro era ódio. A mulher, naquele instante, olhava para os dois, sorrindo
como que satisfeita pelo que via.
E
quando ela tentou andar na direção deles, ambos olharam para ela, o vinho-tinto
e o bronze derretido, e suas vozes soaram como se estivessem sendo faladas de
uma distância impossível enquanto a chamavam de Amaldiçoada e Corvo-Branco da
Tempestade. Não ligou tanto para as palavras saindo da boca de Louis, mas em se
tratando do outro, sentiu um estranho aperto no peito. Como se não esperasse
aquilo dele.
E
então, ela acordou em sua cama, a camisola e o cabelo colados ao corpo por
causa do suor, em plena madrugada. Embora não conseguisse realmente localizar
onde aquilo fora tão assustador. Com certeza não fora o sangue. Mas ainda havia
algo de apavorante naquele sonho. E não voltou a dormir naquele dia.
Outro
que não saiu de sua cabeça trazia cada uma de suas melhores, mais queridas e
antigas amigas: Natasha, com seus cabelos cacheados e negros, pele escura e
olhos verdes, parecendo tão triste e solitária, carregando um estranho cajado
cheio de marcações e relevos intrincados, com crânios vermelhos numa ponta e
uma lança na outra, firmemente de pé diante de portas que ela não sabia descrever,
como se as vigiasse e não fosse deixar nada nem ninguém atravessar. Arely
sentiu-se culpada por não estar ao lado dela: elas tinham jurado que sempre
estariam ali quando uma delas precisasse. Ela devia estar ao lado de Natasha
naquela espécie de missão que ela parecia levar. Mas então tudo girou – ou ela
girou? – e não era mais Natasha, mas Arwen. Arwen, toda cortada, os belos olhos
verde-azulado se tornando de um intenso azul-claro, como se ela estivesse a
transformar-se em algo, os cortes se fechando à uma velocidade impossível, os
lábios se rasgando num sorriso estranho, e então ela viu que sua boca estava
manchada de sangue como se ela houvesse dilacerado algo com os próprios dentes.
Sentiu o peito doer com aquela cena. Aquela não era a doce Arwen que embalara
seu sono com histórias de cavaleiros e princesas quando passou o fim de semana
na casa dos tios. Não era a divertida Arwen que a fazia rir enquanto brincavam
até altas horas. E então o chão se abriu, e ela estava diante de Sílvya. A pobre
Sílvya, os olhos antes tão azuis quanto o céu, agora apenas sombras cinzentas,
o cabelo loiro como o sol caindo por cima do rosto que era ao mesmo tempo
triste e sem expressão. Tão alegre quando ela ainda estava lá em São Paulo para
proteger sua eterna inocência das más companhias que insistiam em tentar rodeá-la,
que sempre a ajudara sem pedir nada em troca... E além das palavras que estavam
em todos os sonhos, Sílvya foi a única a falar. E ela sentiu-se rasgar quando
as palavras soaram, antes que um véu de petróleo cobrisse a garota.
—
Você não estava lá, Ly... Nem Natasha e
nem Arwen, mas principalmente você... Não estava lá para preencher o espaço que
eles ocuparam... Não estava lá para me impedir de entrar naquele carro...
O
carro. O maldito carro e o maldito acidente que arrancou a visão de Sílvya e
seu prazer de assistir animês legendados. Sílvya que nunca mais ia poder
admirar as pinturas de dragões – o ser mitológico que ela praticamente
idolatrava – que Arely fazia.
Foi
quando a voz soou, mais maldosa do que nunca, chamando-a de Amaldiçoada e
Corvo-Branco da Tempestade, a mulher de olhos azuis se erguendo do óleo negro.
Ela
acordou gritando, dilacerada pela culpa desde que a notícia do acontecido
alcançou-a, em Dezembro do ano passado. Nunca agradeceu tanto pelo costume de
dormir de bruços: o travesseiro abafou seus gritos e absorveu suas lágrimas.
Passara o resto da noite rascunhando desenhos das amigas, principalmente Sílvya.
O
terceiro e último a marcar tinha sido na noite passada. Trazia Ruby e Allan. Os
olhos dela eram poços de bronze, e os dele, águas claras e límpidas, quase como
os olhos de Arwen tinham ficado no outro sonho, mas não tão intenso. Ela
estranhou, e notou que não vira o rapaz a semana inteira – ele geralmente
estava zanzando pelas ruas quando ela chegava do colégio, acompanhado de algum
dos primos, mas fora diferente aquela semana. Eles ficaram apenas ali, parados,
olhando-a como se não a vissem. Arely aproximou-se e analisou seus rostos.
Assim, de perto, lado a lado, ela conseguiu pegar algumas semelhanças entre
seus traços. Talvez eles fossem irmãos?
Mas
ela foi tola em se aproximar tanto, e quando percebeu, eles já tinham agarrado
seus braços e começado a arrastá-la. Ela lutou. Ela realmente lutou para se
libertar, mas suas mãos tinham a força de aço. A arrastaram por um tempo que
lhe pareceram horas, e de repente, estavam diante de uma floresta em chamas. Ruby
e Allan a jogaram para dentro daquela floresta, e por um instante ela achou que
iria ganhar também o medo quase irracional do fogo, esperando ser consumida
pelas chamas e então acordar depois de morrer no sonho. Mas não. Ela pousou
pesadamente no meio do fogo, sim, mas não se queimou. E, de alguma forma, ela
se sentiu em casa. Mas então as chamas abaixaram, e tudo que estava ao redor
dela era destruição, morte e sangue. Através daquela cena, ela viu o rapaz que
a salvou de se afogar em outro sonho, o peito dilacerado, mas o rosto numa
expressão calma, como se ele houvesse alcançado o que queria. E então, a mulher
de cabelos negros e olhos azuis apareceu, sorrindo daquele jeito sarcástico, o
erguendo descuidadamente por um dos braços para que Arely o visse mais claramente.
E ela falou.
—
Está vendo? Você é Amaldiçoada. Você é o
Corvo-Branco da Tempestade. Você trará a minha maldição. Ou melhor... Já
trouxe.
Um
calafrio cruzou as costas de Arely, e então ela acordou no chão de seu quarto,
o cobertor enrolado ao redor de suas pernas. Como ela foi parar no azulejo frio
e cinzento era um mistério. Ela não tinha o costume de se mexer tanto à ponto
de cair da cama. Mas talvez tenha sido justamente o fato de sua cabeça dolorida
indicando o impacto com o chão que a tenha acordado. Deus sabia o que mais
aquele sonho iria lhe mostrar. Ela realmente não estava curiosa para saber
quando começou a rascunhar guerreiros que controlavam o fogo – algo meio como
Avatar, ela teve de admitir.
E
agora, ali estava ela, andando feito uma zumbi enquanto preparava o jantar,
sendo ajudada por Ruby. Seus pais tinham ligado, falando que iam chegar mais
cedo – ela estranhou, mas não comentou. Portanto, ela e a amiga – essa palavra
ainda lhe soava estranha ao se tratar da garota ruiva, mas gostava – não
poderiam se contentar com os pré-prontos e porcarias do resto da semana. Talvez
fosse realmente uma boa ideia jantar decentemente de vez em quando.
—
Arely! Cuidado com essa faca! – o grito desesperado de Ruby acordou a garota, quase
literalmente falando. Arely não podia se ajudar: sequências de noites
mal-dormidas tinham deixado-a em farrapos. Ela realmente não conseguia
acreditar que quase arrancara seu próprio dedo enquanto cortava os tomates para
a salada. Estava mais cansada do que jamais imaginaria.
A
Lycan gentilmente tirou a faca de suas mãos e pediu que Arely sentasse que ela
cuidaria do jantar. A humana bufou, insatisfeita, mas fez como a outra pediu,
se jogando no banco de madeira à beira da mesa inútil.
—
Me desculpe. Parece que estou mais cansada do que achava possível... – realmente.
Não dormira à noite, e sempre que o sono batia às portas de sua consciência
durante as aulas, se beliscava. Não para não perder as aulas, isso não a
preocupava. O que a preocupava era ter outro pesadelo e acordar gritando ou
totalmente suada. Não era algo que ela queria, não no meio de todos os seus
colegas.
Ruby
sorriu suavemente, enquanto continuava a preparar o jantar. Arely apenas
retribuiu o sorriso, enquanto cansadamente deixava as costas se apoiarem na
parede, apenas observando como a garota ruiva cozinhava de forma tão natural – devia
ser parte daquela história de ter crescido a maior parte da vida numa fazenda;
sinceramente, exceto para fazer bolos e outras guloseimas, Arely nunca teve a
mesma "graça", embora gostasse de cozinhar.
E
então, ela estava dormindo.
Quando
Ruby percebeu que a garota adormecera, sorriu suavemente, abaixando o fogo do
arroz e então, facilmente, ergueu o corpo da humana, levando-a para o quarto e
deitando-a na cama. Para seus músculos, treinados ao longo de treze anos – fazia
treze anos desde sua primeira transformação, quando tinha três anos – e
abençoados com a força que todo Lycan tinha, Arely não pesava mais do que uma
mochila cheia de livros pesaria para a própria. Cobriu o corpo adormecido da
garota, que imediatamente se encolheu, agarrou-se ao tecido que já tinha o seu
próprio cheiro após anos de uso e se enrolou nele como uma criança se enrola no
cobertor favorito.
Ruby
sorriu novamente, beijando a testa de Arely.
—
Durma bem, maninha.
E
saiu, indo terminar o jantar e anotando mentalmente que teria de acordar a
garota quando os pais dela chegassem.
Nunca poderia dizer o
ambiente onde estava. Mas também, só tinha olhos para a pessoa sentada de forma
pesada sobre uma coluna caída. Era Sílvya, mas uma completamente diferente,
alguns anos mais velha do que ela se lembrava. Usava uma roupa colada ao corpo,
de couro e de cores vivas, com os braços, pernas e cintura protegidos por uma
armadura leve e azulada. Duas adagas gêmeas com lâminas curvas estavam
embainhadas no boldrié em suas costas. O cabelo cor de sol caía ao redor do
rosto em tranças finas – muitas tranças, tranças que ela costumava ver em
negras e perguntou-se como era possível, já que o cabelo dela era muito liso
para aquele penteado. Os olhos cinzentos e sem vida pareciam fitar o nada
naquele rosto de expressão dura, ainda mais explícita por causa da tatuagem
tribal que descia do lado esquerdo do rosto desde a pálpebra inferior até a
bochecha. A pose de Sílvya era como a de um guerreiro cansado da batalha, mas
que não vê como escapar dela. E Arely percebeu, por causa da roupa, que seu
corpo, sempre magro e um tanto franzino, possuía músculos delineados e afiados
para o combate.
Ajoelhou-se diante da
amiga, e estendeu a mão para tocar seu rosto – quando Sílvya passou a ter uma
pele tão queimada de sol? A garota era mais branca que ela.
— Não a toque.
Reconheceu a voz – o rapaz
que cumprimentara a ela e a Ruby no início da semana – e instintivamente recuou
a mão e olhou na direção da voz. Franziu as sobrancelhas, observando o sério
rapaz.
— Por que não? Ela é uma
das minhas melhores amigas. – disse com um tom ferino. Não importava que ele a
salvara em seu sonho. Ele não tinha o direito de falar em quem ela podia ou não
tocar.
Ele pareceu sorrir de
leve, apenas um leve repuxar do canto dos lábios, quase como se esperasse
aquela reação. Olhou para seus olhos, tentando descortinar o que havia por trás
deles, mas não conseguiu. Talvez porque estivesse num sonho. Talvez porque ele
não existisse.
— Só posso impedir o
pesadelo enquanto você não interagir diretamente com ele. Se a tocar, o
pesadelo que ela representa vai te invadir. – Arely sinceramente não entendeu,
apenas ergueu as sobrancelhas em descrença. O rapaz com olhos de bronze líquido
suspirou, andando em sua direção e sentando de pernas cruzadas ao seu lado, os
olhos observando a garota loira e imóvel. – Sonhos e pesadelos, em sua maioria,
são provocados pelas energias e ondulações no plano espiritual ao nosso redor.
Quando se retém um sonho ou pesadelo, estamos impedindo que essa energia,
positiva ou negativa, se espalhe pela nossa mente e mostre o que quer que o
plano espiritual tenta nos mostrar. E essa energia contida assume uma forma
que, de algum jeito, tem relação com aquilo que iria ser mostrado. – desviou o
olhar para ela. Seus olhos amarelados eram calmos e tranquilos enquanto lhe
explicava aquelas coisas. – No entanto, se você toca essa representação, a
energia que ela é entende o toque como permissão para se manifestar. E uma vez
dada a permissão, eu não posso mais prender essa energia, Arely. Outros
poderiam, mas eu não sou tão poderoso.
Ficaram em silêncio,
observando a garota cega que olhava para o nada. Arely sabia que o pesadelo
provavelmente traria os mesmo elementos que os outros tinham trazido, mas
sentia, de alguma forma, que dessa vez precisava ver.
— Você interferiu no sonho
em que eu me afogava, antes de aparecer pra mim e pra Ruby. – ela disse, de
repente.O rapaz franziu as sobrancelhas.
— Sim, interferi, mas não
foi para te salvar, simplesmente. Aquele sonho tinha sido provocado por outra
pessoa que estava tentando dominar seu subconsciente. Se você tivesse sucumbido
ao lago, você seria a escrava de alguém. Não podia permitir isso. Mas não
interfiro em sonhos próprios. Não é educado. Só estou aqui porque estava se
tornando perigoso para você mesma tanto tempo sem um pouco de sono decente. – balançou
a cabeça levemente, desviando o olhar de Arely. Infelizmente para ele, não viu
o olhar de raiva que surgiu no rosto da garota.
Todos só se preocupavam
com sua saúde física. Sempre foi assim. Ninguém nunca se preocupou com a sua
saúde mental, relativamente frágil por causa daqueles pesadelos – e não era a
primeira vez que eles a atormentavam, oh não. Sempre vinham em épocas, uma ou
duas semanas, cada vez compartilhando elementos diferentes e levando sua
sanidade ao limite, e mesmo assim, nunca pensaram em levá-la à um psicólogo ou
algo assim. Aquilo, naquele instante, também devia ser outro pesadelo. Um com o
único objetivo de enlouquecê-la de uma vez por todas. Logo a voz chamando-a de
Amaldiçoada e Corvo-Branco da Tempestade começaria. Logo a assombrante figura
da mulher de cabelos negros e olhos azuis iria aparecer, com aquele sorriso
satisfeito e maléfico. E sem falar de toda a carga emocional por causa dos
problemas em sua família que se desintegrava mais e mais cada vez que ela olhava.
Talvez a culpa fosse dela
mesma: sempre guardava tudo para si. Ouvia os outros, mas não falava dela
mesma. Não sabia dizer se era por timidez ou se por não achar necessário
perturbar os demais com seus próprios problemas. Mas ela contara aos pais sobre
aqueles pesadelos, e eles nada fizeram. Disseram que não eram nada, apenas algo
provocado pelas emoções da época em que estavam. E ali estava ele, dizendo que
a falta de uma noite de sono decente estava tornando-se perigoso para ela
mesma. Era verdade, mas para o inferno com uma noite de sono decente!
Ela queria que aqueles
pesadelos parassem, e parassem de vez, para nunca mais virem. Ela queria
esquecer tudo aquilo de anormal que vinha acontecendo – os braços cortados, o
que lembrava que vira através dos olhos de Arwen, o lobo vermelho, aquelas
mulheres estranhas, o estranho interesse de Louis pra cima dela, sonhos com um
cara que ela nunca vira, aquela história de alguém tentando dominar seu
subconsciente... Ela não queria aquilo tudo. Ela não queria perder a razão por
causa daqueles pesadelos. Preferia entrar de cabeça em Dragon Age e assumir o
lugar de sua GreyWarden. No jogo, pelo menos, ela saberia o motivo dos
pesadelos e como acabar com eles. Mas ali, olhando para os olhos de bronze
líquido e calmos, vendo Sílvya daquele jeito tão quebrado... Arely não tinha
ideia de porque aqueles pesadelos a atormentavam, mais ainda do que os que
vieram antes e que tinham sido ainda mais terríveis em suas cenas. Não conhecia
a solução. Assim como não sabia como impedir que sua família se quebrasse por
inteiro. E nunca encontraria a solução desse problema se aqueles pesadelos não
parassem de atormentá-la.
Ergueu-se de súbito,
atraindo o seu olhar e empurrando-o de encontro ao chão que, ela percebia
agora, era de pedra.
— Pro inferno minha saúde
física e uma noite de sono decente! Quero que esses pesadelos parem, não apenas
essa solução temporária de deter as malditas energias! Não aguento mais essa
mesma maldita mulher e as mesmas malditas palavras em todos! Estou cansada de
ter pesadelos com você, que eu sequer sei o nome, apesar de ter a sensação de
já ter te visto! Cansei de todo o sangue que sempre aparece! – ele parecia
ligeiramente assustado com sua fúria, e muito preocupado com suas palavras.
— Que mulher e palavras
que estão em todos? – perguntou num sussurro. – Arely, você tem de me contar.
Fatos que se repetem em muitos sonhos não são algo normal.
— E acha que eu não sei?!
Tudo em mim grita isso! Aliás, aposto que isso é um pesadelo determinado à me
enlouquecer, e estão só esperando a hora certa, o ultimato para me fazer ficar
completamente louca! – olhou para Sílvya, os olhos castanhos quase brilhando
como brasas. Estendeu a mão para o rosto da garota. – Mostre-me então, o que afinal
me gritam que eu devo ver. Mas repita de novo que sou Amaldiçoada e
Corvo-Branco da Tempestade, e juro que vou tomar tanta cafeína que nunca mais
vou dormir. – e tocou a pele da garota, antes de Adrien pudesse falar mais
alguma coisa.
A energia se espalhou em
todas as direções, deixando Arely incólume, mas arrastando o Lycan até uma
parede de pedra onde ele foi acorrentado. Era o subconsciente de Arely,
impedindo-o de interferir no pesadelo. Sabia disso. Poderia se livrar e
interferir, se quisesse, mas sentiu uma súbita curiosidade de saber o que
viria.
Sílvya levantou-se, e logo
tinha uma garota de cada lado dela. Reconheceu Arwen, mas a de pele escura era
um mistério. Bem, não um mistério totalmente. Ele conhecia o cajado que ela
segurava. O cajado do Guardião. Xingou todos os próprios antepassados, os de Tomás
e os de Joseph. Arely era realmente uma caixinha de surpresas. A prima e irmã
de Alma: uma Ômega. A melhor amiga: uma Amazona. A de pele escura, que
provavelmente era outra melhor amiga: a Guardiã. Realmente, Deus estava
brincando com ele ao fazer com que quatro velhos Líderes e Guerreiros
possuíssem laços tão fortes.
Sentiu um frio na espinha
ao perceber o que estava assumindo. Estava assumindo que Arely estava tendo
visões – deturpadas, mas visões – e que, portanto, seu poder estava despertando
antes do tempo. O que estava provocando aquilo, no entanto, era um mistério.
As três sorriram para
Arely suavemente.
— É hora de lembrar. – falaram
em uníssono, e no instante que tocaram a testa da garota com os indicadores,
uma voz que Adrien conhecia muito bem ecoou – e era incrível como, apesar de
quinhentos anos terem se passado, ele lembrava com perfeição de cada ondulação
daquela voz que um dia amara – e ela apareceu, observando à distância enquanto
Arely se curvava sobre os próprios joelhos, os olhos arregalados e brilhando
completamente como se fossem brasas, um sorriso satisfeito nos lábios cor de
vinho tinto e um brilho maléfico nos olhos azuis.
Sem perceber, prendeu a
respiração. Continuava a mesma, até o instante em que se tornou uma Bruxa.
— Elizabeth... – murmurou,
e sentiu-se ser expulso da mente de Arely quando ela acordou.
Sugou
o ar de forma quase desesperada quando acordou no pequeno quarto da modesta
pousada onde se hospedara ao chegar à cidade. Aprendera a ser discreto quando
assumiu a missão de Observador, e sabia que não devia chamar a atenção dos
outros clãs daquela cidade. Já bastava o fracasso que fora com os Carvalho.
Aparentemente,
o espírito de Elizabeth ainda se recusava a fazer a passagem. E agora, tinha
encontrado Arely e a estava assombrando com pesadelos provavelmente sem sentido
– ou não – e chamando-a de coisas que ela não era. O motivo, no entanto, era um
mistério...
Embora
o último pesadelo, o que presenciara, o deixara em dúvida. Era como se os poderes
de Arely estivessem despertando... Mais cedo do que devia. Talvez por culpa de
Elizabeth.
Sim,
provavelmente por culpa dela.
Independente
da razão, ele teria de ajudá-la e protegê-la. Era o único Observador próximo.
Era o único que poderia ajudá-la. Mesmo que isso significava desafiar Alexei e
todos os interessados nela. Mas, afinal, ela era uma Mensageira. Uma Mensageira
que não teria um mestre para ajudá-la. Não poderiam impedi-lo de se aproximar.
Não se quisessem que Arely continuasse sã.
Ergueu-se,
afastando a cortina e observando as poucas pessoas que transitavam pela rua, as
luzes dos postes começando a se acender enquanto o céu escurecia cada vez mais.
Estava em uma região neutra. Pelo menos, tinha a garantia de que nenhum clã
curioso poderia tentar descobrir o que ele estava fazendo ali. Sinceramente,
não estava a fim de dar explicações à filhotes.
O
celular tocou. O celular pessoal, que ele usava para manter contato com os
demais Observadores. Não os descartáveis que usava em cada cidade pela qual
passava para manter contato com locais onde se hospedava e clãs e pessoas às
quais pedia informação. Suspirando, estendeu a mão para o gabinete que fazia
vezes de guarda-roupa e estante, pegando o aparelho simples e atendendo-o.
—
Diga, Jean. – ouviu um suspiro do outro lado, vindo do Drachen que ele ajudara a
treinar.
—
É mesmo uma Amazona. Acabei de fazer o
teste. – houve uma pausa do outro lado. – Vou começar a treiná-la semana que vem. – outra pausa. Parecia
querer que Adrien falasse algo. Mas o Lycan continuou em silêncio, provocando
outro suspiro em Jean. – Ela... Ela é
promissora, Adrien. Você me ensinou a identificar quando eles não seriam apenas
mais uma Amazona ou Guerreiro, mas quando seriam fortes. E, bem... Ela
realmente vai ser mais que apenas forte... Ouso pensar que foi Ayl que a
escolheu, mas só saberemos disso depois ela atravessar A Floresta e alcançar a
Catedral. – por um instante, sua voz pareceu balançar entre o tédio e a
expectativa, e então morreu, esperando que o outro falasse.
Foi
a vez de Adrien suspirar, se afastando da janela e se jogando na cama.
—
Quanto tempo até que ela possa enfrentar A Floresta? – mesmo através do
aparelho, era possível sentir sua ansiedade com as informações. Primeiro que há
quase um século e meio que os Wyverns não escolhiam pelo menos um Guerreiro ou
uma Amazona. Segundo que, se realmente fora Ayl que escolhera a tal Amazona,
ela realmente seria forte. Talvez a mais forte de que eles tinham conhecimento.
Mas, agora, com os poderes de Arely aflorando pouco mais de um ano antes do
esperado, teriam que se apressar. Não queria arriscá-la mais tempo que o
necessário em um lugar que o espírito de Elizabeth poderia continuar tentando
enlouquecê-la, ou onde ela estaria completamente vulnerável aos ataques de
Vampiros e Bruxos. Ou seja, qualquer lugar fora das grossas paredes de pedra da
Catedral. Inferno, nunca uma batalha teve de ser realizada às pressas. Isso não
ia acabar bem.
—
Eu não sei direito... Seis meses, um
ano... Tudo depende. – Jean parou uma vez, e Adrien quase ouviu as
engrenagens do cérebro inteligente do Drachen trabalhando. Jean, sem dúvida
alguma, estava entre os Observadores mais inteligentes que atualmente existiam.
– Aconteceu algo pra você ficar ansioso,
não aconteceu? – sua voz era séria, quase sombria.
Adrien
balançou a cabeça, esfregando os olhos. Ele devia ter ido até os pesadelos dela
antes. Ela não estaria tão abalada agora, e o despertar de seus poderes poderia
ter sido atrasado. Não teriam que correr. Burro. Não devia ter pensado que os
pesadelos eram consequência da tentativa de Louis dominar seu subconsciente.
Devia ter verificado. A presença de Elizabeth neles já teria sido alarmante o
suficiente para ele pensar que deveriam se apressar. Principalmente porque ela
conseguira driblar os Guardiões Espirituais da garota.
—
A Mensageira estava tendo pesadelos. Pesadelos inspirados por Elizabeth e que,
ao que parecem, possuem um toque da visão dos Mensageiros. Inferno, Jean, ela
vai fazer quinze anos semana que vem! Seus poderes só deveriam começar a despertar
daqui à um ano! Elizabeth está deixando-a louca, chamando-a de Amaldiçoada e
Corvo-Branco da Tempestade! Mesmo quem não conhece, sente o significado sombrio
por trás dessas palavras! Louis tentou controlar seu subconsciente! Senti o
cheiro de Sabri, Jabez e Sandman na cidade! Inferno, Jean, a Ômega que
Alexandre encontrou é irmã de Alma dela, e se o pesadelo que eu presenciei
estiver certo, a Amazona que você achou é uma de suas melhores amigas, e a
outra melhor amiga é a Guardiã, é capaz de você até já conhecê-la! – parou para
respirar, e só então notou que tinha se descontrolado. Pediu fervosoramente que
sua voz não tivesse ultrapassado as paredes ou a porta, ou pelo menos que os
demais inquilinos não se preocupassem com os negócios dos outros. Percebeu que
tinha se sentado em meio à sua fala fervorosa, e que suas mãos tremiam de
nervosismo.
Deus,
era demais para apenas... Uma semana? Sim, uma semana. Aparentemente, depois de
tanto tempo sem uma batalha pra tentar tirar o desempate naquela Guerra irritante,
tudo resolvera acontecer de uma vez.
Ouviu
Jean tomar uma respiração profunda. O amigo com certeza estava pensando em como
eles podiam contornar a situação da melhor forma possível, de forma a ganharem
tempo. Se aqueles três bruxos realmente estavam na cidade, ele tinha certeza de
que eles e Louis já estavam planejando como fazer para Arely sair de debaixo
dos olhos dos Lycans.
—
Já se aproximou dela? – a pergunta
soou, e o Lycan suspirou.
—
Não posso. – Jean fez um som como se sufocasse.
—
Filha de gente importante?
—
Antes fosse... O problema é que, de algum jeito, em um ano e meio que ela
esteve aqui, conseguiu atrair a atenção de pelo menos metade dos Alfas e Betas
solteiros da cidade. Ninguém se aproxima dela sem permissão. – deixou-se cair
de costas contra o colchão novamente. Tentaria dormir um pouco, antes que
sentisse Arely adormecer. Ficaria de vigília em seus sonhos. A garota realmente
precisava de uma boa noite de sono.
Jean
assobiou baixinho.
—
Você nunca disse que Mensageiros
costumavam atrair tanta atenção antes dos poderes despertarem... – murmurou.
—
E não costumam. Ela deve realmente ter poder... Há inclusive dois Guardiões
Espirituais protegendo-a... – esfregou os olhos amarelados mais uma vez. – Olha,
Jean, só vou falar mais uma coisa e então vou dormir um pouco. Vou vigiar os
sonhos dela hoje. Arely precisa de uma boa noite de sono, e vou precisar das
minhas energias para tal. – deu uma pausa, fitando a lâmpada apagada do quarto.
– Encontrei uma Observadora. Caçula de Alexei. Ela conseguiu travar amizade com
a Mensageira e está protegendo-a mais de perto do que os grupos formados por
outros filhotes são capazes.
Jean
pareceu aliviado, e ainda riu um pouco.
—
Legal. Será que ela vai atormentar
Alexandre como todo sobrinho costuma fazer? – Adrien não conseguiu se
impedir de rir. – Boa noite, cara. Aliás...
Sim, acho que já encontrei essa possível Guardiã... Desconfiei e até queria
verificar, mas já estou com uma Amazona sob minha responsabilidade... Vê se
fala com o Hayato ela. Ele tá pirando por ter de ficar parado; você sabe que
Drachens muito velhos não conseguem ficar parados por muito tempo, vai ser bom
ele ter algo pra fazer, como averiguar se realmente se trata da Guardiã, antes
que Bruxos e Vampiros o façam; e tente se aproximar dela, acho que a sobrinha
do Alexandre não vai ser o suficiente. Eu vou falar com ele pra ver em que pé
estão as coisas com a Ômega. E tentar ligar os pontos e descobrir por que
Elizabeth quer enlouquecer uma Mensageira...
—
Valeu, Jean. Boa sorte com a Amazona. Ah, sim. De acordo com o sonho da Arely,
ela vai ter facilidade em lutar com duas adagas. Talvez isso encurte o
treinamento. – Jean riu de leve, agradecendo a dica e desligando o aparelho.
O
Lycan limitou-se a bocejar longamente, olhando para o teto, e então deixou-se
levar para o reino dos sonhos.
A
voz suave de Ruby a acordou. Dizia que o jantar estava pronto e que seus pais
tinham acabado de chegar. Esfregou os olhos, esticando as pernas ainda deitada.
A Lycan estava sentada ao seu lado, sorrindo de leve.
—
Puts... Sou uma péssima anfitriã... – murmurou num entre sorriso enquanto
sentava. – Eu tinha de dormir
enquanto você fazia o jantar... – disse de forma descrente e balançou a cabeça,
espantando temporariamente os últimos vestígios de sono e do sonho.
Apesar
da parte onde conversava com aquele rapaz com olhos de bronze líquido, o sonho
não fora realmente apavorante. E ela não sabia se o fato de que finalmente
lembrara o que ela vinha tentando lembrar desde que acordara no hospital,
domingo, era a causa dos pesadelos ou simplesmente uma consequência. Ela agora
lembrava que tinha visto o rapaz de olhos amarelados. Lembrava que ouvira seu
nome: Adrien. Gostou da sonoridade daquele nome.
—
Sem problemas. Você realmente parecia cansada... – A garota riu, levantando e
dando espaço para Arely também levantar-se.
—
Mesmo assim... – reconhecendo seu quarto, finalmente acordada, e pareceu
surpresa. – Wow. Deve ter dado trabalho me trazer pra cá... Obrigada... – sorriu
timidamente, e não conseguiu impedir-se de corar.
Ruby
limitou-se a rir suavemente.
—
Não foi tão difícil assim como você pensa. Vem, você deve estar com fome. – acenou
para Arely, esperando-a na porta.
A
garota riu, jogando as pernas para fora da cama, enfiando os pés nos chinelos,
seguindo atrás da ruiva após apagar a luz.
Depois
que a Lycan saiu, Arely limitou-se à dar um beijo de boa noite em seus pais e
foi se deitar.
E
não sabia dizer se estava ansiosa pela possibilidade de reencontrar Adrien em
seus sonhos, ou se tinha medo das circunstâncias em que iria encontrá-lo. Mas,
por fim, aquecida pelo cobertor, o travesseiro e o colchão recolhendo sua
cabeça e corpo tão confortavelmente, em meio à pensamentos enevoados e cansaço,
adormeceu.
Pisou com cuidado o musgo
que cobria o chão de pedra. Era fofo, e acariciou seus pés descalços. Olhou ao
redor, encontrando paredes feitas de enormes e desgastadas pedras cinzentas,
plantas diversas descendo como cipós desde o teto ou se infiltrando por entre
as tais pedras, saindo do chão ou qualquer lugar possível. E existiam inclusive
plantas que jamais poderiam se adaptar àquele clima úmido. O lugar lembrava um
pouco a sala onde se encontrava no sonho de segunda.
Uma mão grande pousou em
seu ombro, e Arely pulou de susto. E quando olhou, ali estava, o rapaz de olhos
amarelados, sorrindo-lhe suavemente.
— Nenhum pesadelo à
espreita? – perguntou, franzindo as sobrancelhas e semicerrando os olhos. O
sorriso abriu-se mais.
— Nenhum, Arely. O
espírito que estava te atormentando decidiu mudar de vítima. – na verdade, ele
cuidara de prevenir seus Guardiões Espirituais sobre quem vinha conseguindo
atravessar as fronteiras, afinal, era tarefa deles impedir que espíritos a
atormentassem. Além de atrair o subconsciente da garota para um lugar onde
espírito algum poderia alcançá-la.
Arely suspirou, aliviada,
sequer tentando descortinar seus olhos – tinha quase certeza que não
conseguiria por estar em um sonho. Finalmente uma noite tranquila de sono.
— Obrigada por mais cedo,
Adrien. Mas eu realmente precisava ver aquele pesadelo... – os olhos dele se
arregalaram ao ouvir o próprio nome, e um pouco mais ao vê-la sorrindo-lhe tão
suavemente e de forma tão agradecida.
— Você lembrou? – ela acenou
afirmativamente.
— Acho que os pesadelos
quebraram o que quer que estivesse trancando as poucas lembranças que eu tinha
de você... – Arely parou de andar, contemplando algumas colunas e pedras caídas
que pareceram lhe convidar a se acomodar nelas. A garota não se fez de rogada,
se acomodando em meio às pedras, musgo e lagos interiores. Adrien não demorou
para se acomodar do seu lado, mas antes contemplando como ela parecia se
encaixar naquele cenário, como se pertencesse àquele lugar.
Arely deixou seus olhos
vagarem pelo ambiente que sua mente construíra – ou que ela acreditava que sua
mente construíra. Era tão, mas tão belo... Era tão estranho ver um ambiente
cheio de lagos e plantas se expandindo em um lugar fechado... Sim, fechado,
pois apesar das aberturas provocadas pelo tempo que ela viu nas paredes e no
teto de pedra – teto que estava distante no mínimo um total de quinze andares –
ainda era um lugar fechado.
— É lindo, não é? – ouviu-o
murmurar de modo encantado, provocando que ela virasse o rosto para olhá-lo.
Sorriu-lhe suavemente.
— Sim, é lindo. – murmurou
em resposta, deixando-se apoiar a cabeça contra o ombro de Adrien. Sentiu-o
ficar tenso por um instante, mas logo voltou a relaxar. – Pela forma como você
disse, acho que não é um lugar simplesmente criado pela minha cabeça... – ergueu
o olhar momentaneamente, contemplando os olhos de bronze líquido preenchidos
com calma e serenidade. Vislumbrou também seus lábios se repuxarem num sorriso
leve.
— Realmente, não foi
criado pela sua mente... Esse lugar realmente existe, e é muito maior e muito
mais belo ao vivo... – sentiu-o rir de leve, e uma brisa vinda de lugar nenhum
balançou os cabelos loiros puxados para o ruivo, fazendo-os roçarem o rosto da
garota e provocando-lhe risos com a sensação de formigas passeando por suas
bochechas.
— Vou visitar esse lugar
pessoalmente um dia? – Arely não sabia realmente dizer por que tinha vontade de
visitar aquele lugar, mas sabia que essa vontade existia. Ainda assim, estava
se xingando mentalmente porque tudo aquilo podia ser só coisa da sua cabeça
ainda balançada por causa dos pesadelos, e ali estava ela, querendo ver ao vivo
um lugar que com certeza só existia em sua mente.
Adrien sorriu, e de
repente afastou-se um pouco, usando o braço onde ela estava apoiada para
envolver seus ombros e aproximá-la quando outra brisa soprou, dessa vez mais
fria.
— Provavelmente...— havia
uma nota de distanciamento em sua voz enquanto falava aquilo.
A humana aconchegou-se
melhor contra o rapaz ao seu lado, achando seu calor reconfortante. Suspirou, e
de repente viu-se desabafando com Adrien que, quase como Ruby, despertava nela
uma sensação de que podia confiar naquele estranho.
— Espero que eu venha
antes que meus pais se separem... Não sei se desfrutaria desse lugar tão
plenamente de outro jeito. – sentiu algumas lágrimas se formarem, e piscou
diversas vezes, tentando afastá-las. Mas não teve sucesso, e logo usava a manga
de tecido suave do vestido branco para secá-las.
O Lycan franziu as
sobrancelhas com o desabafo da garota. Geralmente, famílias de Mensageiros não
eram do tipo com problemas. Alguma espécie de proteção proporcionada por Deus –
ou talvez por suas almas não serem inteiramente humanas, algo assim.
— Por que você acha que
seus pais vão se separar? – afastou-se um pouco para poder olhá-la nos olhos.
Percebendo suas intenções, ela também afastou-se e ergueu o rosto para ele.
— Está escrito na forma
como agem. Tem algo errado no relacionamento deles desde que mudamos para cá, e
parece que só piora por causa das brigas que ocorrem por causa da minha vó. Não
sei o que é, nem exatamente quando mudou, ou o que realmente aconteceu pra
mudar desse jeito. Mas eu sei: cedo ou tarde, eles vão se separar. – apoiou o
queixo numa das mãos, o cotovelo em sua perna, um sorriso triste se desenhando
nos lábios. – E o que me deixa mais deprimida é que, por mais que eu queira
impedir isso, algo me diz que não vou conseguir. E os sonhos não ajudam nada...
– balançou a cabeça, escondendo o rosto nas mãos.
Sentiu alguém segurar seus
pulsos, afastando suas mãos. Encontrou o rosto do estranho, não mais tão
estranho agora, sorrindo-lhe suavemente. E então ele a abraçou pelos ombros novamente,
apertando seus ombros e beijando-lhe a testa, junto com alguns fios de cabelo.
— São apenas sonhos,
Arely. Tenho certeza que seus pais só devem estar passando por uma fase ruim...
Logo eles se acertam.
— Será? Da forma como os
dias de hoje andam, eu tenho minhas dúvidas... – seu tom denotava tristeza,
balançando a cabeça contra a jaqueta de couro que ele usava.
— Você tem fé, Arely? – perguntou
de repente, e a garota riu de leve.
— Bem, se ter fé é confiar
sem reservas, tudo que já passei me levou a crer que sim...
— Então, tenha fé de que
eles não vão se separar. – afastou-a de repente, segurando seus braços e
olhando-a nos olhos. – Você é capaz de ter fé em mim?
— Por que está me
perguntando isso? – franziu as sobrancelhas para o rapaz, vendo-o fechar os
olhos e respirar fundo. Então atrapalhou-se com suas próximas palavras. – Bem,
eu não sei, eu mal te conheço... Quer dizer, só te vi em sonhos. Às vezes,
desconfio que esses sonhos são justamente sonhos, e que estou pirando, falando
comigo mesma em sonhos, mas usando a face de alguém que vi duas vezes, e com
quem só troquei o que... Dez palavras?
Adrien não conseguiu
impedir um repuxar de lábios com suas palavras apressadas e um tanto
gaguejadas. Arely parecia ser o tipo de pessoa que briga consigo mesma e não
acredita em outras coisas facilmente. E alguém que pode confiar facilmente, mas
para essa confiança ser sem reservas, é preciso lutar muito.
— Então, tenha fé no que
vou falar agora: eu juro, Arely, que à partir de hoje, ficarei à porta de seus
sonhos e mais nenhum pesadelo vai te alcançar. E, se for necessário, vou te
proteger no mundo além do mundo dos sonhos. Nada vai te fazer mal enquanto eu
viver.
Arely piscou várias vezes,
absorvendo aquelas palavras. Sua expressão mostrava uma mistura de surpresa e
de incredulidade. Inclinou levemente o rosto, franzindo as sobrancelhas e lembrando-se
de alguns dos sonhos que tivera na semana passada. O sonho em que a sensação de
Divino se perdia...
— Você pode impedir a
sensação de Divino de partir?
Adrien engasgou com a
pergunta. Apenas Mensageiros que se corrompiam pediam aquilo. Apenas
Mensageiros que perdiam a ligação com os Céus tinham ideia de como era tal
sensação. Nem mesmo ele sabia exatamente como era. O que sabia vinha das
histórias de Hayato, que vivera mais tempo que ele, e também conhecera mais
Mensageiros que tinham caído. Ele dizia que a maior parte se matara, alegando
que a falta da sensação de Divino era enlouquecedora. E que quem não se matava,
fugia e acabava por se aliar aos Vampiros e se tornar mais um Bruxo.
Sugou uma respiração
afiada, puxando-a de novo para seus braços.
Será que Arely tivera
algum pesadelo em que a ligação com os Céus se quebrara, em que seu pedaço de espírito
não-humano voltara para o lugar de onde viera? Deus, podia ter sido uma
visão...
"Não de novo... Por
favor, de novo não... Será que devo falhar sempre?" Durante breves
segundos em que se desesperou com tais possibilidades – Arely manchando as mãos
de sangue, caindo como tantos outros – sentiu seu peito arder e sua sanidade
por um fio. Mas logo recuperou o autocontrole, lembrando-se das palavras de
Elizabeth. Não. Dessa vez, não falharia.
— A sensação de Divino não
partirá. Eu juro. – murmurou contra seu cabelo, sentindo-a desvanecer-se quando
seu corpo despertou no mundo material.
Ainda por algum tempo,
ficou ali, naquele lugar para onde atraíra seu subconsciente. Uma retratação da
Catedral, à partir de suas lembranças das vezes que estivera lá, uma delas
durando por diversos anos.
Se tudo desse certo,
poderia ver de novo aquele lugar que fora seu lar por tanto tempo. E Arely
também conheceria. Também pisaria em seu chão de pedra, tocaria as paredes
desgastadas, deitaria entre as plantas tão diversas, caminharia por entre suas
estátuas, dormiria em seus quartos...
E como todo Mensageiro,
ela adoraria tudo que estava lá, porque tudo aquilo fora feito pelas mãos do
Criador.
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Mande beijo pra mãe, pra tia, pro namorado(a), pro cachorro, pro passarinho, dance cancan, enfim, fique a vontade, a dimensão é sua.
Syba: Mas não faça piada do meu cabelo... u.ú
Gabi: Tá, tá... ¬¬