O
Sábado começou mal. Depois de acordar com aquele pesadelo, Arely não conseguiu
voltar a pregar os olhos. Ficou acordada a noite inteira, estudando e fazendo
suas tarefas e trabalhos – não estava com cabeça para jogar. Logo começara a
amanhecer e sentira o estômago reclamar por quase um dia sem comer, afinal, não
almoçara nem jantara.
Desceu
a escada aos pulinhos, e pelo ronco de seu pai que vinha de um dos três
quartos, sabia que os pais tinham chegado enquanto ainda dormia e não haviam
acordado até aquele momento. E pelo jeito nem sua mãe se incomodara em
acordá-la – eles sabiam que de sexta para sábado Arely costumava dormir desde
as seis da tarde até o meio dia, em sua paixão por sono que existia desde que
era uma garotinha.
Direcionou-se
para a porta de vidro que ligava a sala ao quintal de pedra. Escancarou-a e se
jogou de costas no chão branco e sujo de pó e fuligem da cidade. Observou o céu
que ia se tingindo de azul lentamente, revelando nuvens brancas de algodão.
Inspirou fundo e absorveu o som das maritacas e demais pássaros que cantavam da
mangueira na casa da vizinha da esquina e das árvores na rua. Aquele som sempre
lhe saudava todas as manhãs, enquanto ia para o colégio, e era grata por ter
esse privilégio, mesmo que raramente ouvisse aquele som nos fins de semana.
Pelo menos algo ainda não mudara desde que chegara em Goiânia. Pelo menos algo
para consolar e aplacar a saudade das melhores amigas.
Aguardou
que o céu fosse todo azul, os olhos brilhantes e os cabelos longos se abrindo
em leque sob sua cabeça, antes de se levantar e regar as plantas nos vasos,
cheirando com prazer uma rosa branca que acabara de desabrochar. Então, entrou
na cozinha e começou a remexer os armários e a geladeira, indecisa sobre o que
iria comer. Não estava com paciência de cozinhar o que quer que fosse àquela
hora. Por fim, encontrou um pacote de bolachas waffers sabor limão perdido num
dos armários, mais um pote de creme de avelã com cacau. Sorriu, pegando uma
garrafa de água na geladeira e subindo para o quarto, Tigrinho seguindo-a.
Enfrentava
com afinco a “Dama do Bosque” em sua forma real na missão que envolvia
conseguir o apoio dos Elfos Dalishanos em Dragon Age: Origins, quando sua mãe,
Maria Paula, a chamou. Já passara do meio-dia e o almoço estava pronto.
Xingou
quando a mãe lhe desconcentrou – não sua mãe, mas a si mesma, por ter se desconcentrado
–, fazendo com que a sua ladra Guarda-Cinza – a última sobrevivente do grupo de
quatro que levara para a batalha – ficasse vulnerável ao ataque por um
instante, e morrer. Só porque faltava apenas a Dama do Bosque para terminar
aquela missão, todos os Lobisomens que a seguiam derrotados!
Bufando,
saiu do jogo. Se espreguiçou, alongando os braços e as costas depois de cinco
horas parada no mesmo lugar, jogando, antes de descer as escadas.
Encarou
o prato de macarronada com molho de carne moída e queijo ralado com desânimo. O
cheiro era o de sempre quando sua mãe cozinhava, mas ao invés de fazer sua
barriga roncar em antecipação, fazia seu estômago se remexer incomodamente,
berrando-lhe “se comer, vou colocar para fora”. Não sabia o motivo exato de
estar sem fome, mas estava.
Observou
ao redor da mesa. A avó, Marieta, comia com aquela cara de paisagem que sempre
irritara Arely. Fora por causa dela que a mãe passara a trabalhar fora quando
se mudaram para Goiânia. A avó podia parecer uma inocente velhinha que sempre
se fazia de vítima, mas a nora e Arely sabiam bem como era realmente.
Divorciada quando o filho mais velho – o pai de Arely, Isaque – tinha seis
anos, criara os três filhos sozinhas e sempre se fez de coitadinha. Mas quando
fora morar com o primogênito, e a nora e a neta eram quem mais conviviam
consigo, mostrara que era alguém que nada sabia fazer, sequer lavar a louça,
criada como um bibelô, muito tempo depois que as paraguaias tiveram de
arregaçar as mangas e ir a luta quando 99 por cento dos homens morreram na
Guerra. Não surpreendia-as que o casamento tivesse acabado, nem as dificuldades
que seu pai contara que tinham passado.
O
olhar então recaiu sobre a mãe, de quem Arely era uma cópia quase perfeita, com
exceção dos olhos – os de sua mãe eram de um tom de mel aconchegante – e dos
lábios – Arely tinha uma boca pequena e lábios carnudos de um vermelho forte
que contribuía para suas feições inocentes e até infantis, enquanto sua mãe
possuía lábios de um tom mais rosado e finos, além de uma boca mais larga. Era
óbvio em seu olhar cansado que não gostava muito de trabalhar fora, acostumada
à ser apenas dona de casa desde que Arely nascera, mas gostava menos ainda de
passar muito tempo com a sogra. A garota amava demais a mãe, mas há muito que
não conversavam como mãe e filha. Apenas... Conviviam se cumprimentando, quase
como estranhas. Mas se com isso ela não ficava mais tão estressada por causa de
Marieta, Arely suportava. Por seus pais, suportava tudo.
E
o pai, Isaque, de quem Arely ganhara seus olhos cor de chocolate, o cabelo
preto ficando grisalho e com entradas que se alargavam com o passar dos anos.
Desde que se conhecia por gente, era muito ligada ao pai, até começar a ter as
próprias ideias, que na maioria das vezes conflitavam com o que ele falava – especialmente
nas questões religiosas, o que tinha provocado que Arely, apesar de ainda ter
as mesmas crenças com as quais crescera, raramente ia à igreja. As discussões
começaram, e mesmo que ela tivesse razão, acabava cedendo apenas por respeito,
para então se trancar debaixo do chuveiro ou cobrir até a cabeça com o cobertor
e começar a chorar. O pai tinha a mente aberta para muitas coisas. Conversava
horas a fio com pessoas da igreja – ou não – e aceitava suas ideias após uma
discussão acirrada onde todas as opiniões eram expostas. Mas, quando se tratava
das suas opiniões, da filha dele, que deviam estar num patamar um tanto maior,
ignorava, sempre falando que era nova demais para entender. O eterno argumento
dos adultos contra os adolescentes.
Com
o passar do tempo, Arely desistira de falar com ele. Desistira de tentar
mostrar aquilo que a sensação do Divino lhe passava. E agora, nada – ou quase
nada – tinham a conversar. E ele a ignorava, comendo e lendo uma de suas HQs
Marvel. Mas isso não queria dizer que ela tivesse deixado de amá-lo.
Remexeu
a comida mais um pouco, até a mãe perguntar.
—
Sem fome, Flor de Maracujá? – o apelido carinhoso com o qual os pais sempre lhe
chamavam doeu sem razão aparente. Antes de se mudarem para aquela cidade, era
chamada assim ao menos uma vez por dia. Agora, se era chamada assim uma vez por
semana, era muito. Percebeu seu pai erguer levemente os olhos, mas sem comentar
nada, voltando logo a atenção para a HQ.
Percebia
que o tom de voz continha certa preocupação, mas ainda assim... Via como sua
família se fragmentava, mesmo que aparentasse tudo perfeito para o exterior.
Ela mesma mostrava essa imagem todos os dias no colégio, não queria ninguém
dando palpite ou olhando-a com pena. Não queria que aquilo acontecesse, tentava
achar modos de evitar, mas não conseguia pensar em nada. Sentia que cedo ou
tarde acabaria tendo de assistir seus pais se separando, mas não sabia como
evitar. E sabia que tudo era por causa das brigas que tinham passado a ocorrer
quando sua vó fora morar com eles. Era sempre por causa dela e das coisas que
fazia – não cuidar da própria saúde, não ouvir os outros, tantas coisas – que
seu pai acabava por brigar com sua mãe. E parte do motivo que levara Arely à se
isolar cada vez mais das outras pessoas.
Não
sabia exatamente quando, mas em algum momento notou que os pais também tinham
percebido, e eles também nada faziam para impedir aquela fragmentação, apenas
seguiam, e aquilo doía na jovem mais do que qualquer ferida. Aquela...
Hipocrisia... A atormentava. Sufocava.
Se
Natasha, Arwen ou Sílvya estivessem por perto, teria com quem contar. Mas não.
Estavam há mil quilômetros de distância. Estava sozinha em meio à tempestade,
sem um raio de sol que fosse para cortar as nuvens, sendo jogada de um lado
para o outro pelas ondas e sem mais forças para ir contra. Ela não achava
aquilo justo. Seus pais tinham casado tarde, ambos faltando pouco para chegar
aos trinta anos, e sua mãe a tivera com trinta e um, depois de quatro anos de
casados. E agora já tinham quase vinte anos de casado. Ela odiava a ideia de
que um casamento que era tão feliz e equilibrado acabaria por culpa de sua avó.
Sentiu
os olhos marejarem e, para que não a vissem prostrada pelo choro que tudo
aquilo provocava nela, atirou-se a subir as escadas com a velocidade de um
raio, apenas falando que sim, estava sem fome e ia fazer as tarefas. Mesmo que
sentisse a garganta tão apertada, sua voz saiu incrivelmente segura, não traindo-a.
E isso lhe encheu de alívio.
Tudo
que não queria era que seus pais percebessem como estava destruída por dentro.
Eles já tinham muito com o que se preocupar.
Mal
girou a torneira do chuveiro, sentou-se sob a água quente e começou a chorar,
os fios castanhos grudando-se as costas, aos ombros e ao rosto. Não sabia
exatamente por que chorava, se por ver que seus pais cada vez mais caminhavam
em direção à palavra divórcio, se por raiva de si mesma por não saber o que
fazer para mudar aquilo ou se de saudade de deitar em meio às árvores do Parque
Ibirapuera com as melhores amigas e ficar desenhando enquanto Arwen cantarolava,
Natasha observava os rapazes bonitos e os casais que passavam e Sílvya criava
cenas mirabolantes que envolviam a música de Arwen e as pessoas que Natasha
apontava. Só sabia que precisava chorar. E isso acontecia com cada vez mais frequência,
como se toda a sorte de sentimentos que provocassem choro estivessem
preenchendo-a pouco a pouco.
Tinha
apenas catorze anos, prestes a fazer quinze, mas sentia o mundo pesar-lhe sob
os ombros de forma aterradora desde os doze; tinha sido uma espécie de
despertar, em que cada vez que via o sofrimento de alguém, tomava aquela dor
para si. Naquela época, em que tinha as melhores amigas com ela, suportava
aquela carga estranha, pois apoiavam umas as outras, e enquanto tomava as dores
do mundo, conseguia distribuir sorrisos e ombros amigos a quem precisasse, nem
nada pedir, sempre com palavras de consolo na ponta da língua, tomando ainda
mais dores. As pessoas até mesmo pareciam ficarem mais leves, como se de fato
ela tivesse tomado suas dores.
Ela
conseguia achar felicidade em meio aquilo. Até se afastar das amigas.
Agora,
ninguém a apoiava. E duraria mais tempo, se não tivesse de assistir, impotente,
sua família se fragmentar desde que chegara naquela maldita cidade – o momento
que a vó passara a morar com eles. Se não se culpasse tanto pelo que ocorrera
com Sílvya desde que chegara ali. Se seres como Louis não a perturbassem tanto.
Se esses seres não despertassem o que havia de pior nela – seu lado vingativo e
violento, que tanto tinha aparecido durante seus primeiros anos de vida e que
ela aprendera a controlar à duras penas e repressões que dava a si mesma.
Não
sabia explicar exatamente porque, mas bastava um olhar para Arely passar a
detestar alguém o resto da vida. Não entendia como, pois ensinara a si mesma à
não julgar as pessoas pela aparência. E, embora sempre fosse educada e
estivesse aberta para a aproximação, algo sempre pinicava em seu cérebro, a
avisando para nunca confiar naquela pessoa. Exceção talvez para as crianças,
para quem ela parecia ter algum tipo de mel que fazia com que gostassem dela
com apenas um olhar.
Mas
aquilo não era a única coisa que ela não entendia. Ela também não sabia
explicar como tinha quase certeza do que ia acontecer. Mas quase sentia nos
ossos as possibilidades mais certas do futuro – e acertara a grande maioria das
vezes. E ela quase sentia na pele a dor dos outros: as pessoas podiam parecer
perfeitas no exterior, mas ela sentia seus cérebros e corações inquietos,
tristonhos, pedindo socorro, cheios de dor.
Quando
sentiu as lágrimas acabarem, ergueu-se, girando a torneira para cessar o fluxo
de água e saiu do box. Vestiu uma calça jeans, seus amados coturnos com salto,
uma camiseta preta com uma caveira rodeada por rosas e uma japona preta – não
que estivesse frio, mas tinha o costume de usar a blusa. Tacou o celular – desligado
– a chave, o MP4 e a carteira nos bolsos da calça, os cabelos pingando, antes
de descer as escadas lenta e silenciosamente, pisando somente com a ponta das
botas com salto de borracha. A porta do quarto da avó estava fechada, o que
indicava que ela estava lá.
Precisava
sair. Precisava andar. Precisava não se sentir sufocada.
A
sala estava vazia. Da sala de TV vinham os sons de algum filme de tiro, alto o
suficiente para encobrir o som de seus passos e da porta de madeira se abrindo.
Com cuidado, observou que o pai estacionara o carro mais perto da porta de
vidro, e não da parede. Para seu alívio, os pais estavam concentrados no filme.
Agachou-se de modo a ser escondida pelo carro e fechou a porta com cuidado.
Correu pela garagem, agachada, até alcançar o portão, onde ergueu-se, já impossível
de ser avistada por alguém dentro da casa; abriu o cadeado e saiu, ganhando a
liberdade que ela se dava com cada vez mais frequência. Não que seus pais a
proibissem de sair. Ela só não queria ter de falar aonde ia – nem ela decidira
ainda –, quanto ia demorar e quem ia com ela – seus pais detestavam a ideia
dela sair sozinha. Só queria ficar um pouco longe de casa sem ter de dar
satisfação.
O
cheiro de amanhecer o alcançou de forma inesperada, tão forte que imediatamente
procurou por sobre as prateleiras da livraria, em busca da origem daquele
cheiro. Já sentira-o muitas vezes, e sabia o que significava: sua busca chegava
ao fim, uma quinta vez. E também a última vez.
Parecia
triste, e seu olhar denotava que estivera chorando, embora os cabelos ainda úmidos
pudessem enganar alguém mais desatento para achar que sabão ou água caíra nos
olhos. E chorara muito. E, ainda assim, enquanto tirava os fones de ouvido,
sorriu e cumprimentou os funcionários com alegria sincera. E eles retribuíram.
Já a conheciam, aparentemente.
Percebeu
que tinha cabelos lisos, longos e castanhos. A pele era branca, mas percebia
que os braços e o colo tomavam bastante sol, pois não eram tão pálidos. Apesar
de não ser tão alta, as formas do corpo sugeriam ascendência nórdica, talvez
até Viking, mais do que a pele. Possuía postura altiva – não orgulhosa – e, de
certa forma, humilde, rodeada por uma aura de alguém disposto a tomar as dores
do mundo se isso o tornasse melhor – uma aura tão típica neles... O formato dos
olhos castanho-claro não negava que era brasileira de sangue e não apenas por
nascer naquela terra: indígenas, combinando de forma especial com o todo. E
possuíam uma força e doçura que lhe deixavam certo de o que ela era – mais uma
entre diversas características.
Seguiu-a
com os olhos amarelados, uma espécie de bronze derretido, vendo-a se dirigir
para os lançamentos e fazer uma careta de insatisfação ao ver que nenhum dos
que queria estava entre eles. E então, enquanto ia para os fundos da livraria,
atrás da seção de Literatura Estrangeira no geral, ele percebeu que não era o
único que a seguia, mesmo que com o olhar.
Não
era o único lobo ali, mas era tão mais velho que os demais ao seu redor, que
aprendera a ocultar-se. E notou como os demais a vigiavam atentamente, com uma
mescla de carinho e apreensão. O que andara perdendo?
Um
outro cheiro muito conhecido também lhe alcançou, e por pouco não rugiu de
fúria ao olhar para a entrada da loja. Ali estava Louis, indeciso se entrava ou
não. Percebeu que havia muitos Lycans ali, e, antes de virar as costas e ir
embora com um olhar de puro ódio no rosto, seus olhos faiscaram na direção da
jovem. Ele sabia! Ele já tinha certeza do que ela era, e provavelmente já há algum
tempo! Por que não aproveitara enquanto ele ainda não a descobrira para tentar
corrompê-la ou matá-la?
Respirou
fundo, tomando coragem para aproximar-se e oferecer amigavelmente ajuda para
escolher um livro. Aproximar-se, como tantas vezes fizera, e esperar que desta
vez não falhasse, ou enlouqueceria.
No
instante que ficou a poucos passos dela, mesmo que movendo-se de forma despretensiosa
ao longo dos livros, os demais Lycans ficaram alertas, observando-o como uma
possível ameaça. Estavam protegendo-a. Mas por quê?
Parou
de ocultar sua presença de espírito – Lycans eram capazes de reconhecer a raça
de alguém pela frequência de seu espírito, como uma onda de rádio, e eles eram
capazes de “ouvir” essa onda –, fazendo-se reconhecer como um irmão da raça,
mas, passado um breve momento de hesitação por ele se mostrar alguém tão
antigo, voltaram a considerá-lo como ameaça – talvez apenas estranhando um
Lycan tão velho, afinal, eles viviam mais que humanos, mas não tanto como ele
deixava transparecer. Além disso, alguém capaz de disfarçar a frequência do
próprio espírito precisava ser muito bom com o plano espiritual, e isso era
coisa de Bruxos e Drachens.
Estranhou,
e observou que havia Lycans de clãs diferentes e até mesmo rivais, pelo que se
lembrava! Como podiam estar unidos para protegê-la?! Para eles, que com sua
juventude nada sabiam acerca do que ela era – um segredo que não mais era
contado aos jovens a não ser que fosse necessário, e para isso estava incluído
ser o próximo Alfa ou Beta de um clã –, não devia passar de mais uma humana!
Um
dos jovens Lycans aproximou-se com jeito igualmente despretensioso, e ambos começaram
a conversar pelo canto da boca, sem que a garota percebesse. Ou ao menos
pretendiam isso.
—
Acabo de chegar à cidade. Por que tamanha inquietação por causa de uma humana?
– o de olhos quase amarelos perguntou, fingindo ler a sinopse de um livro
qualquer que tinha em mãos.
—
Ela atraiu a atenção de Lycans de altos postos em quase todos os clãs da
cidade. Antes só era protegida nas proximidades de sua casa e no colégio, mas
ontem um dos clãs neutros nessa questão, encarregado de vigiá-la em seus
territórios, disse que capturaram um Vampiro perambulando por lá, e que ficou
confirmado que queria atacá-la. Os líderes concordaram que ela devia ser
protegida onde quer que estivesse até que algum deles tome coragem de tentar
conquistá-la, até que ela fique mais velha ou se arranje com um humano. – suspirou,
entre desapontamento e contentamento. Ao menos, Louis teria sérias dificuldades
em tentar corrompê-la, até que ele a alcançasse com a permissão de todos os
líderes.
—
Quem é o Alfa mais velho da cidade? – perguntou, colocando o livro de volta na
estante. Aguardava apenas aquela resposta antes de ir embora. Ou fingir ir
embora.
—
Alexei, do clã Carvalho. – respondeu, com aparente orgulho. Devia pertencer
aquele clã. Talvez fosse mesmo, constatou, ao observar os cabelos ruivos, os
olhos verdes e a pele morena. Uma combinação incomum, mas não para eles.
Mas
apenas suspirou resignado.
—
Queria não ter de encontrar gente da famiglia
tão já... – cruzou os braços, torcendo os lábios, insatisfeito. O outro o olhou
mais atentamente, e, como que o reconhecendo de um quadro, fez expressão
abobada.
—
Você... – começou, mas antes que terminasse, o rapaz de aparentes dezessete
anos, cabelos loiro-escuro puxado para o avermelhado, pele morena de sol, alto,
de ombros largos e corpo avantajado por músculos definidos completou, sorrindo
de modo lupino e amargurado.
—
Sim, rapaz. Adrien. – e então, virou as costas, saindo da livraria.
Foi
até o Café logo à frente, e esperou que ela saísse. Não havia nenhum Lycan fora
da livraria, e não poderiam segui-la assim que saísse, ou agiriam de forma muito suspeita. Então, aguardaria o
momento certo de se aproximar. Era necessário.
No
instante em que entrara na livraria Cultura, sua preferida em toda a cidade,
Arely sentiu um arrepio percorrer-lhe a coluna. Havia algo no ar. Vários olhos
a observá-la. Podia sentir o peso deles sobre si, quase a sufocá-la. Sempre
sentira, embora apenas perto de casa ou do colégio. Sinceramente, ela não
ligava, desde que não tentassem nada. Era menos perturbador que o olhar que
sentira no dia anterior durante a aula.
No
entanto, havia um que ela sentia se destacar. Apenas com o olhar que ela não
sabia de quem era, conseguira demonstrar uma intensa vontade de se aproximar e
protegê-la. Não tinha ideia de como sabia que eram essas as intenções. Apenas
sabia. Ou talvez estivesse apenas paranoica. Ou louca. Algo assim.
Enquanto
andava pelos corredores de livros, sorrindo e aparentando tranquilidade, seu
coração batia forte e o olhar rodeava o estabelecimento e localizava quem lhe
observava tal como uma flecha lançada por Halt – o arqueiro de Rangers que
Arely e Natasha brincavam que tinha “Transcendido a existência” – e constatou
que se tratavam dos mesmos rapazes que ela reparara ao seu redor desde que
saíra de casa, mesmo que de forma disfarçada – e um deles, ela teve a impressão
de que era Matheus. Não tinha ideia de como eles sabiam que ia para lá, e
gostaria de descobrir. Mas havia um novo, mais velho que eles, que não a olhava
disfarçadamente. Pelo contrário, parecia quase fascinado. O cabelo que caía
liso até os ombros parecia-lhe bonito, e o seu corpo se elevando tão alto
diante das estantes a fazia se sentir uma formiga tal qual acontecia com Allan.
Mas não fora seu tamanho que a intimidara. Fora seu olhar e sua assustadora semelhança
de traços com Louis.
E,
falando no diabo, percebeu quando ele parou indeciso diante das portas da
livraria e como todos os que lhe observavam passaram a olhá-lo com apreensão.
Suspirou aliviada quando ele fugiu, sem tentar uma investida ou uma retaliação
pelo dia anterior. O mais incrível era que não parecia ter sido espancado.
Estava
indecisa entre dois livros de Isabel Allende – Zorro e A Floresta dos Pigmeus –
quando percebeu que o rapaz parecido com Louis se aproximava devagar, quase
desinteressado, e ficou um tanto irritada quando ele estancou, com um dos
outros mais próximos dele – o mesmo que ela achara parecido com Matheus, mas
não tinha certeza. Tinha certeza de que ia falar com ela, e ter parado a fez se
perguntar se tinha algo de errado com ela, já que aparentemente só os cafajestes
tinham coragem plena de falar com ela abertamente.
Trocaram
palavras que Arely esforçou-se para ouvir, mas mesmo com a audição aguçada da
qual se orgulhava, só captou as últimas palavras do que tinha cabelos loiros que
iam para o ruivo antes que saísse da Livraria: “Sim, rapaz. Adrien.”
O
nome atinou algo em seu cérebro, como algo esquecido e que fora lembrado subitamente.
Mas logo se perdeu de novo, qual uma folha se solta da árvore no outono. Nunca
ouvira aquele nome, e, apesar de bonito, não lhe significava nada.
Acabou
comprando “A Floresta dos Pigmeus”. Fazia tempo que queria ler o último da trilogia
“As Aventuras da Águia e do Jaguar”.
Seguiu
calmamente até o Café que ficava no mesmo corredor, e surpreendeu-se por encontrar
o rapaz da livraria ali, sentado folgadamente numa das duas poltronas – o resto
do Café só tinha cadeiras –, bebendo lentamente um cappuccino com chantilly.
Arely franziu as sobrancelhas, e então sorriu levemente, uma ideia se delineando
em seu cérebro com Q.I. de 145. Superior e que lhe garantia um raciocínio
lógico e rápido na maior parte das vezes, contanto que não estivesse nervosa ou
sob pressão – e que relacionamentos e sentimentos não estivessem na equação.
Era o mesmo que pedir para o cérebro dela fritar, porque admitia que era uma
completa ignorante nesses assuntos.
Pediu
um café brigadeiro e então se jogou na poltrona em frente à que o rapaz estava.
Ele a olhou surpreso, antes de pousar a xícara grande na mesa.
—
A que devo a presença de tão adorável jovem me acompanhando? – era óbvio o tom
gozador que ele utilizara. Arely apenas apontou para as demais mesas do pequeno
café. Todas cheias. – Você venceu. – ele ergueu as mãos num sinal de
desistência, ao que ela ergueu as sobrancelhas de um jeito convincente. Vencera
o que?
—
Não tenho ideia do que você está falando. Só estou aqui porque quero tomar um
café enquanto leio um livro. – em seguida, tirou o livro da sacola para provar
o que dizia, sorriu e começou a ler enquanto aguardava seu café brigadeiro.
Leu,
de fato, conduzindo com cuidado a estratégia para que o fizesse falar por si
mesmo o que ele e o outro conversaram na livraria. Cedo ou tarde, ele acabaria
falando. Se não por bem, se veria obrigado a responder suas perguntas... Por
alguma razão, tinha certeza absoluta que, de alguma forma, tinha ligação com
ela. Além da curiosidade de saber o que ele pretendia falar com ela antes...
Curiosidade era uma de suas maiores características.
De
acordo com o que pensara, poderia se empenhar de todo no que planejara quando
terminasse seu café.
No
entanto, no instante em que começaria a falar, sentiu uma pontada em sua testa
e então, nas têmporas, enquanto uma mensagem chegava de forma dolorosa numa voz
estranhamente familiar e que ela detestou.
“Vá
embora e esqueça-o.”
Ignorou,
mas quando tentou novamente falar, a mensagem voltou, com maior intensidade.
“Vá
embora e esqueça-o.”
Ergueu-se
e murmurou uma despedida, saindo apressada do Café e mal reparando nas escadas
rolantes que desceu para sair do Shopping, a cabeça latejando como jamais
latejara – ela raramente ficava doente, e nunca tivera uma dor de cabeça tão
intensa. Só queria que aquela dor parasse.
Quando
saiu para as ruas, o sol de meio de tarde pareceu-lhe insuportável, cegando-lhe.
Pontadas começaram a surgir por todo o seu corpo: nas solas dos pés, nas palmas
das mãos, no fundo dos olhos, seu couro cabeludo. Dor se espalhando por cada
terminação nervosa.
Quando
fora mesmo que ela despencara no chão e tantas pessoas se aglomeraram ao seu
redor, com um rosto descorado se destacando, sorrindo de um jeito insuportável
de quem diz “Venci”?
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