Beijei a testa de
Despertador e verifiquei mais uma vez se ele ficaria bem antes de chutar a
porta do galpão e entrar.
Adriane levantou-se
de supetão de uma caixa onde estava sentada.
Seu olhar demonstrava
horror a meu ver.
− Kai... Kai deveria
acabar com você... Você... Você nem deveria ter voltado! – ela berrou,
apontando com a espada na minha direção. Ela estava apavorada agora que não
tinha mais o poder do Arquidemônio a ajudando.
Sorri macabramente,
abrindo os braços.
− Surpresa em me ver,
Adriane? – ela parecia assustada. Com certeza, as coisas tinham saído fora do
controle dela. – Achou mesmo que eu ia deixar barato a morte de tantas Fadas e,
principalmente, da minha vó? – apontei então Savën para ela.
Percebi Adriane engolir
em seco, testando o peso do escudo de modo temeroso.
Procurei o corpo de
vovó com o olhar, mas não encontrei.
− Cadê? – ela fez um
olhar de quem não entende. – CADÊ O CORPO DA MINHA VÓ?!
Ela sorriu
macabramente, como que satisfeita por descobrir algo que me deixou
descontrolada.
− Vai ter que
descobrir.
Aquilo me deixou
irritada.
Muito irritada.
Tanto que apertei
mais forte a empunhadura de minhas adagas, abaixei-me um pouco e avancei
automaticamente na direção de Adriane, Savën estendida e realizando um
movimento aberto na altura de seu pescoço.
Apesar de pegá-la
desprevenida, Adriane conseguiu inclinar o corpo para trás e tirar o pescoço do
meu alcance. Mas deixou alguns fios de cabelo para trás.
Definitivamente eu
progredi. Antes eu não conseguia sequer isso. E o mais incrível é que fui eu
quem cortei o cabelo dela, não Savën e sua magia.
Parece que a
temporada que passei com as Aranhas me fez bem.
Ou talvez perder o
apoio do Arquidemônio a tenha afetado mais do que eu imaginava.
Vi os olhos de Adriane
brilharem de surpresa, enquanto ela respirava rápido. E então, ela avançou com
a espada, tentando me cortar na altura da barriga.
Cruzei Fëna com a
espada, desviando-a e tentando cortar Adriane na altura do peito com Savën, mas
o maldito escudo entrou na frente, provocando faíscas.
Dei alguns passos
para trás e a observei. Com apenas alguns movimentos, ela já ofegava.
Agora eu me pergunto:
quanto da habilidade que ela demonstrava era realmente dela, e quanto vinha do
Arquidemônio? Caramba, até agora ela não conseguiu me cortar. Apenas bloqueou
ou desviou de meus ataques. Bem diferente das outras vezes.
Ok, foram apenas dois
ataques. Mas ainda assim, foi muita coisa pra mim, considerando que mal
encontrávamos nossas armas na última luta, duas semanas atrás.
Depois de um longo
tempo trocando ataques que resultaram em ferimentos leves – para mim, a Gnoma
conseguia se manter incólume de ferimentos causados por mim –, Adriane olhou
para o escudo e o jogou longe, estendendo a espada na minha direção, as pernas
afastadas e o braço esquerdo estendido como se ela preparasse um feitiço.
E, de fato, pra minha
infelicidade, ela estava preparando um feitiço. Como não sou idiota – sabendo
que Gnomos Caçadores são especialistas em revestir partes do corpo com algum metal
resistente – avancei, tentando cortá-la com Savën, com Fëna preparada como se
eu fosse fincá-la em algum lugar.
Realmente, tentei
fincá-la no braço esquerdo de Adriane, prevendo que seria ele o revestido de
metal. Pelo que li e aprendi com as Aranhas, é um feitiço que consome muita
essência e continua consumindo até que seja cancelado, mas que só pode ser
utilizado em partes sãs do corpo. Se eu ferisse o braço dela, ela teria de
cancelar o feitiço.
Mas a desgraçada
conseguiu revestir o braço de algum metal cinza antes que eu o ferisse. Só
consegui produzir faíscas quando Fëna o tocou.
E, bem, a desgraçada
ainda conseguiu me socar na boca do estômago, me arrancando o ar e me obrigando
a dar alguns passos pra trás.
Argh. Essa desgraçada
é muito rápida sem um escudo pra atrasá-la.
Estranhei que ela não
tentou me atacar com a espada logo em seguida, já que a falta de ar fez com que
minha guarda ficasse aberta. Mas, assim que ergui o olhar, percebi porque fui
poupada.
Falhei em impedir ela
de revestir o braço de metal. Mas tive sucesso em cortá-la na altura da barriga
com Savën.
O espanto dela foi
tanto, que ela deixou a espada cair e pressionava o ferimento. E ofegava. Tinha
sido um ferimento profundo.
Aquela teria sido a
minha chance.
Se eu também não estivesse
ofegante e sem ar. A luta contra o Djin pode ter sido rápida, mas, hello!
Gastei muita essência pra erguer uma névoa, uma parede de galhos e me
teleportar. Fora o feitiço de cura na boca do Despertador e a lâmina de vento
para cortar o cigarro do Djin.
Desde que entrei aqui
e comecei a lutar com Adriane, não usei magia, mas ela sim. O que me dá certa
vantagem.
Ok, não me dá
vantagem nenhuma porque ela teve um tempinho pra descansar da luta com vovó,
diferente de mim. Eu sabia que se parasse pra descansar, daria tempo para que
viessem atrás de mim.
E eu tinha de lutar
sozinha contra Adriane. Era a minha vingança. Eu a vira matar vovó. Eu vira o
Arquidemônio comer o coração de vovó. Não Devon. Não papai. Não qualquer um dos
parentes que tinham vindo pras festas e que eu não fora apresentada ainda. Eu.
Tudo isso se passou
pela minha mente em dois segundos. Dois segundos que levei para recuperar o ar
e voar na direção de Adriane, tentando atingi-la.
E consegui. A atingi
na altura do ombro esquerdo, que não estava revestido de metal. Ela estava mais
lenta para se desviar – era pra eu ter atingido o peito dela.
Demorei um segundo a
mais para recuar, antes que o braço revestido de metal atingisse meu rosto.
O fato é que fui
parar uns três metros mais longe.
Senti um fio de
sangue escorrer da minha boca, e depois de passar as costas da mão para limpar
o queixo, me virei para Adriane, sorrindo de forma sarcástica enquanto ela
pegava a espada.
− Está tão lenta...
Sentindo falta do Arquidemônio? – notei, quase em câmera lenta, que ela
precisou apertar o cabo da espada com mais força para que ela não caísse.
O ferimento em sua
barriga continuava a sangrar. Ela não usara um feitiço de cura. Economizava o
máximo de essência possível por causa do metal que revestia seu braço.
− Mas ainda sou mais
rápida que você. – ela sorriu sarcasticamente, me apontando a espada.
A visão me arrastou de forma súbita. E eu me surpreendi
por estar em casa. Eu não tinha nem ideia de o que me levara àquela visão.
Era dia, e ouvi as risadas minha e de Devon vindo da
cozinha, enquanto mamãe entrava no meu quarto. A visão então me levou para ver
o que acontecia no quarto.
Despertador tinha se escondido debaixo da cama por ordem
de mamãe, enquanto alguém entrava pela porta-balcão. Alguém com uma máscara,
segurando uma espada e um escudo, com cabelos cor de goiabeira e olhos dourados.
Adriane.
− O que deseja, Gnoma? – minha mãe perguntou de forma
polida. Percebi o olhar intrigado da outra.
− Aqui é a casa de Eurídice Greeneyes? – ela perguntou,
avançando um passo e observando o meu quarto com certo interesse.
− Quem é essa? – mamãe ergueu uma sobrancelha, se fazendo
de desentendida.
− Uma Fada da Floresta.
Mamãe riu levemente.
− Por acaso tenho cara de Fada da Floresta? – Diane
apontou para os próprios olhos e então para o cabelo.
− Não. Mas a casa está empesteada com cheiro de Fada da
Floresta. – seu olhar tinha algo de ameaçador. Mamãe suspirou.
− Cinco minutos, nos fundos. Agora, saia do quarto da
minha filha, por favor. – assim que Adriane saiu, mamãe chamou Despertador, que
foi, hesitante. – Espere um pouco e então desça, provocando algo que me leve a
mandar Stacy para cima. Pelo bem dela, Despertador. Por favor.
Só posso dizer que fiquei abismada quando minha Mantícora
mordeu a mão dela de forma carinhosa. Como se entendesse. E, de fato, entendia.
Aquilo me fez de novo sentir um peso no coração pela ausência dela.
A visão então me levou para a cozinha. Eu arrastava
Despertador comigo para meu quarto, e mamãe pediu para Devon e papai irem comer
nos fundos com ela enquanto Tia Verônica limpava a cozinha. Mamãe até se
ofereceu para ajudar, mas tia Verônica riu e disse que não se preocupasse.
A visão me fez acompanhar mamãe até o momento que ela
encontrou Adriane.
− Esse é meu marido e esse é meu filho. Fadas da
Floresta. Satisfeita? – mamãe não gostava dela, estava escrito na sua cara, e
queria que ela saísse dali e rápido.
− E a sua filha?
− Nasceu humana. – mamãe afastou uma mecha de cabelo que
caiu em seu rosto. – Poderia ir embora agora, por favor, e não voltar mais?
Adriane balançou a cabeça afirmativamente e, assim que
meus pais e meu irmão se viraram, ela tocou rapidamente suas cabeças,
murmurando um feitiço que pelo que percebi era para apagar ela das memórias
deles – não exatamente apagar, mas selar a parte referente à ela –, antes de
sumir. Tenho certeza que esse feitiço é obra do Arquidemônio, assim como a
capacidade de se teleportar.
Filha da mãe. Desgraçada. Fdp.
Prometeu nos deixar em paz, mas no dia seguinte Kai
atacou tia Verônica. E sabe-se mais quem ia atacar.
A visão acabou de
forma que vi a espada de Adriane vindo em minha direção, só tendo tempo de me
abaixar e tentar atingi-la no pescoço de baixo para cima, mas aquele maldito
braço envolto em metal entrou no meio da trajetória, dando tempo daquela
desgraçada recuar.
− Sua desgraçada!
PROMETEU NÃO VOLTAR MAIS, MAS ENVIOU KAI PARA ACABAR COM A GENTE! – não dei
muito espaço pra ela, começando uma série de ataques. Agora ela realmente me
irritou. Vou acabar com essa fdp, nem que quase morra pra isso. – E AINDA
APAGOU A MEMÓRIA DE PAPAI, DE MAMÃE E DE DEVON! – Adriane correu de costas e
conseguiu abrir uma boa distância entre nós. – Eu vou acabar com você, Gnoma
maldita.
Liberei minha
essência – que tinha se acumulado involuntariamente – de uma vez, berrando um
feitiço que provocaria um vendaval.
Enquanto o vento
começava a se agitar dentro do galpão como se estivéssemos num furacão, o corpo
de vovó apareceu, o feitiço que Adriane vinha sustentando para mantê-lo oculto
sendo quebrado. Quebrado porque a concentração dela se quebrara com todo aquele
vento. Não apenas a ocultação do corpo de vovó se fora, mas o metal que
recobria seu braço também.
Ela mal conseguia se
manter de pé. Já deixara a espada cair, tentando proteger os olhos com os
braços, porque a máscara quebrada não o fazia.
Eu, por outro lado,
me sentia imponente no meio daquela tempestade. Como se o vento se abrisse para
mim devido às asas que saíam de minhas omoplatas. Como se eu fosse senhora
dele. Como se... Eu fosse parte dele.
Talvez eu fosse
mesmo, já que quem o chamara fora eu.
Andei na direção dela
lentamente, saboreando seu sofrimento.
Era estranho. Mais
uma vez eu não me sentia eu mesma. Como se eu estivesse me perdendo. Mas eu não
ligava. Eu queria vingança.
E notei algo naquela
cena. A semelhança com duas visões minhas. Quase igual, na verdade. Diferente
quem matara vovó, todo aquele vendaval e o fato de que Adriane já deixara a
espada cair. E minhas asas estavam inteiras. Ninguém as tocara depois que as
Aranhas a curaram. E não haveria mais luta.
Mas eu me sentia
compelida a cumpri-las.
− Tudo culpa sua. –
murmurei, olhando para Adriane fixamente. E então, sorri maleficamente,
sentindo que não era eu e não dando a mínima. Eu queria o sangue de Adriane. Eu
queria vê-la e fazê-la sangrar. – Te vejo no Inferno, Adriane.
E então a chutei no
pescoço, derrubando-a. Deixei Fëna no chão e então sentei na barriga da Gnoma,
segurando seu pescoço com a mão livre, enquanto a ponta de Savën ameaçava-a. O
vendaval se acalmou, enquanto eu chorava e olhava-a com raiva.
− Você a matou,
maldita. – murmurei, pressionando mais a adaga. Ela riu de um modo louco, a mão
tocando o cabo da espada, mas não tentando pegá-la.
− Ela pediu por isso
ao vir sozinha atrás de mim.
Respirei fundo,
controlando aquela voz na minha cabeça que berrava para matá-la naquele
instante. Ainda não. Tinha mais uma coisa que me atormentava, e eu não queria
esperar a boa vontade das visões de novo.
− Como sabia que eu
tinha sobrevivido e acabado de voltar? – ela riu de novo de um modo mais louco
ainda.
− Seu irmão, Fadinha!
Ele foi uma preciosa aquisição! – Mentira. Mentira. Devon jamais me trairia. –
Nunca vi alguém com tanta inveja. Só porque você é mais poderosa que ele. Tsc
tsc... Nem o sangue impede mais as pessoas hoje...
− Pára de falar do
Devon... O Devon nunca me trairia... Ele é meu irmão mais velho... Meu primeiro
amigo... MEU IRMÃO NUNCA ME TRAIRIA, SUA VÍBORA MENTIROSA! – eu podia ter
acabado com ela com Savën. Mas não. Ela não merecia essa honra.
Larguei minha adaga e
arranquei o que restara da máscara de Adriane, contemplando seu rosto ensanguentado.
− DEVON JAMAIS ME TRAIRIA, ADRIANE! ELE NÃO É COMO O MALDITO ÍNCUBUS QUE TE USOU
E DEPOIS USOU VOVÓ! ELE NÃO É UM TRAIDOR!
E não me controlei
mais.
A voz em minha cabeça
assumiu o controle de meus atos, de minha boca, de meu corpo.
Soquei o rosto da Gnoma infinitas vezes, xingando-a, em
português e na Língua da Teia, de nomes que vovó teria me beliscado a orelha e
mamãe me teria feito lavar a boca com sabão, literalmente.
Não importava que ela já não respirasse há muito. Não
importava que seu rosto já estivesse deformado e que meus punhos estivessem ensanguentados
com o meu sangue e com o dela.
Minha mente chutara a dor física para longe. Só o que me
tomava era a dor psicológica por tudo que Adriane me fez. Pela pessoa tão
querida que ela me arrancou.
Eu sequer pensava em outras coisas. Só o que importava
era socá-la mais e mais.
Esperneei de raiva quando senti alguém me abraçar pelas
costas e me tirar de cima do corpo sem vida da Gnoma.
Ainda tentei gritar uma maldição para a alma de Adriane,
mas a mesma pessoa que me tirara de cima dela me tampou a boca. Falava algo
como “Fadas não foram feitas para amaldiçoar”, enquanto uma maldita aura de paz
tentava se infiltrar para meu corpo.
Eu só queria externar meu ódio por Adriane, por isso
mordi com força a mão que tampara minha boca, sinalizando que eu queria que
tirasse aquela maldita mão dali. Mas a pessoa não obedeceu, e o sangue escorreu
para dentro da minha boca.
E eu gostei.
E comecei a querer mais.
Eu já provara sangue outras vezes... Cortes no dedo e
ralados nos joelhos após um tombo. Mas nunca gostei.
Mas, naquele momento, me pareceu a coisa mais deliciosa
do mundo. Segurei a mão de quem quer que fosse contra a minha boca, querendo
mais.
Uma voz longínqua gritava algo, mas eu não entendia.
Era o meu nome?
E a voz me parecia tão familiar...
A voz de repente
conseguiu perfurar a névoa de ódio e raiva que me nublava os sentidos, e
entendi meu nome.
Ao mesmo tempo, eu
começava a acordar.
Acordar para me
perguntar por que minha boca estava cheia de algo de gosto tão horrível. Era...
Sangue? Minha boca estava cheia de sangue?
E eu tinha certeza
que não era meu sangue. Nem Kai nem Adriane me atingiram de forma a ferir minha
boca por dentro ou fazer verter sangue pela minha garganta. Não mesmo. Só um
corte no lábio que já não sangrava.
Era da mão que eu
ainda segurava contra a minha boca.
Soltei-a e fiquei estática
por um instante, sentindo que lágrimas escorriam por meu rosto e o abraço
afrouxar.
Alguém me virou
lentamente, e vi os olhos preocupados de Rashne. Ele segurou meu rosto entre
suas mãos, enquanto eu lentamente sentia que havia mais pessoas atrás dele.
− Não deixe ninguém
ver seu rosto. – Ele disse carinhosamente, como se eu não tivesse acabado de sugar o seu sangue, me abraçando e me
fazendo encostar a cabeça em seu peito.
E eu me deixei levar,
escondendo meu rosto em sua blusa, abraçando-o pela cintura e chorando.
Chorando tudo que aquela voz na minha cabeça não me deixara chorar.
Ouvi vagamente Rashne
pedir para que nos abrissem caminho, enquanto ele me guiava para fora do
galpão, mantendo meu rosto escondido em sua blusa. Porque ele não quer que
vejam meu rosto?
E então notei do que
o lugar estava cheio. Fadas. Muitas Fadas.
Pensando bem, não
quero que elas me vejam com a boca toda suja com o sangue do meu namorado...
Já do lado de fora,
meu namorado me fez olhá-lo, depois de ele apoiar as costas na parede. Beijou
levemente meus lábios como se eles não estivessem sujos com o sangue dele,
antes de me abraçar com força. Eu o abracei de volta, escondendo meu rosto em
sua blusa. A aura de paz me invadiu, e agora que era completamente eu, não houve
resistência.
− Sinto muito por
Eurídice. – ele murmurou no meu ouvido, e me entreguei a chorar.
De novo.
Por que quase sempre
que nos abraçamos um chora no peito do outro?
Capítulo Anterior Próximo Capítulo
Capítulo Anterior Próximo Capítulo
Céus o.o
ResponderExcluirkrig: mais ou menos uns 6 meses sem ler teorias, acho que vou começar tudo de novo agora, há!
ResponderExcluir