Durante TODO o almoço, Rashne ficou me olhando. Às vezes franzia as sobrancelhas, mas parecia muito interessado na minha pessoa. O que, obviamente, não passou despercebido por Devon, papai, Sammuel ou Eshe.
Papai e Devon cortaram um pedaço da carne como se estivessem cortando o pescoço de alguém – Sério. Sammuel mastigava algo crocante como se fosse um orc mastigando os ossos da última vítima. Aquilo tudo me deu medo.
E Eshe olhava para Sammuel como se estivesse tentando entender onde tinha errado – talvez ele achasse que agora o Sammuel ia me deixar em paz depois do fora.
Sério, o jeito como Rashne me olhava me incomodava. Afinal, o que chamara a atenção dele? Será que ele também tinha tido alguma visão comi-go? Nããããooo... Seria coincidência DEMAIS.
Assim que fiquei satisfeita, pedi licença para Alessa – ela era a dona da casa – e fui até o quarto onde tinha dormido, pegar as adagas.
Fiquei sentada na cama, com as adagas no meu colo, admirando-as. Não era sempre que eu as pegava e tinha uma visão, isso já estava óbvio. Talvez elas só mostrassem o que era necessário... Ou sei lá, depende de como os feitiços foram tecidos durante a forja – eu lera que, para uma arma ser encantada, era necessário que os feitiços fossem tecidos durante a forja, nunca antes ou depois.
Mas eu realmente quero saber por que Savën fez questão de me mostrar Rashne. Ela podia só ter me mostrado Sammuel e Hadassa casando. Só mostrar o “tio” dela com uma cara de quem chupou limão.
Mas nãããoooo. Tinha que me mostrar Rashne e me deixar mais confusa do que jamais estive.
Despertador pulou na cama e deitou do meu lado. Me olhava como se soubesse a confusão que me dominava e soubesse como acabar com ela, mas não tinha como me falar.
Abracei Despertador, afundando minha cara na juba dele. Eu amo fazer isso! Me anima!
Alguém bateu na porta e franzi a sobrancelha, antes de falar um “entre”.
Devo destacar que meu coração ficou descompassado sem um motivo exato quando Rashne apareceu? Tipo assim, como se eu já estivesse me recuperando de ter de dar um fora no Sammuel?
− Posso falar com você? – ele perguntou e parecia um tanto sem jeito, mexendo na franja o tempo todo. E eu achei o gesto fofo. Sei lá, parecia combinar com ele.
Ok, comentário idiota. Só balancei a cabeça afirmativamente, sem voz. Quer dizer... Acabamos de nos conhecer, o que cargas d’água ele quer falar comigo?
Despertador, de repente, para meu horror, se levantou da cama e saiu do quarto assim que Rashne entrou. Murmurei um desesperado “Não me deixa sozinha!”, mas minha Mantícora fez um som como que rindo e ignorou meu pedido! Tipo assim, com o Sammuel era tanto ciúmes que me fazia ter vontade de bater nela de vez em quando, mas com um cara que eu nunca tinha visto na vida, ela me deixa sozinha e ainda ri!
I Hate Him. (Eu o odeio)
Rashne apenas encostou a porta e sentou no chão, as costas apoiadas na parede e os braços apoiados nos joelhos.
− Como você se chama? – ele perguntou, e só então lembrei que Alessa o apresentara, mas não nos apresentara, e que fiquei quieta todo o almoço, sendo impossível que eu fosse apresentada, como foi com os demais. Burra! Bem, é uma forma de começar um diálogo, certo?
− Stacy. – eu respondi, olhando para um canto da parede. O que é aquilo? Uma aranha-marrom?
− Bem... Pode olhar pra mim, por favor? – ele disse de um jeito que me lembrou eu mesma quando pequena fazendo birra por que queria um bonequinho do Saga de Gêmeos, sabe, daquele com armadura de ferro mesmo, de aniversário, mas tinha ganho uma Barbie sereia ou qualquer outra. Eu sei que é estranho, mas sempre gostei mais dos bonequinhos que os meninos ganhavam! Meu sonho era ter a coleção completa dos bonequinhos de Cavaleiros do Zodíaco! Ok, voltemos ao assunto inicial...
Eu olhei para Rashne, e ele estava com uma sobrancelha levantada, e sorriu levemente quando olhei para ele. E que sorriso lindo! Tipo, não era per-feito ou algo assim, mas continuava sendo lindo, ainda mais porque combinava com seu rosto expressivo! Ok, pára de taradice, Stacy!
− “Alguns Santos são de Vidro e outros são de Papel. Ambos, uma hora quebram ou rasgam e precisam ser transformados para que se façam inteiros de novo. A diferença é que um deles te corta quando quebrado... E o outro é facilmente manipulável”. – eu senti um arrepio percorrer minha coluna quando ele falou aquilo. Tipo... Percebi porque tinha achado a voz dele familiar. Além disso, eu não comentei com ninguém sobre o conselho que o cara do sonho que eu tinha invadido – pelo jeito, o Rashne – tinha me dado, o que indica que só o próprio saberia.
− Foi você... – murmurei, surpresa demais pra falar mais alguma coisa. – Foi o seu sonho que eu invadi... – em seguida, senti meu rosto ficar muito vermelho. Até aquele momento, eu não tinha reconhecido sua voz. Mas o principal é que eu imaginava alguém de aparência mais velha. E não tão gato. Lindo. Maravilhoso. Gostoso. O que eu podia esperar de um Celestial, mesmo que Persa?
Não adiantava eu falar pra mim mesma que não, que eu estava deliran-do, porque eu estaria mentindo. Rashne era lindo, muito, por sinal. Não aquela beleza, vamos dizer, “safada” de Sammuel, nem uma carinha de bebê como o americano do Il Divo, nem de certinho do sueco do Il Divo, e nem de CDF do francês do Il Divo. É, meus parâmetros de beleza para homens são eles, e Sammuel só substituiu o espanhol do grupo. Mas isso não importa. Importa que eu não conseguia encaixar o tipo de beleza de Rashne em nenhum deles. Algumas meninas provavelmente taxariam de “celestial”, mas influenciadas pela aura de paz que ele emanava – e, bem, ele ERA um Celestial. Não, a beleza dele não era celestial. Ah, desisto de tentar classificar a beleza dele! Não conheço a palavra pra isso! Mas que ele era lindo, ele era!
Ele riu antes de falar de novo. E vou admitir: gostei do som do riso dele. Sei lá, me lembra uma garoa fina de verão durante a noite que sempre me ajuda à dormir... Eu gostaria de dormir ouvindo esse riso do meu lado...
Oh My God, estou tendo muitos momentos tarada hoje!
− Sim, foi o meu sonho que você invadiu... Admito que fiquei muito surpreso quando você apareceu, sendo uma Fada, e bem naquele sonho... E não sei por que te dei esse conselho, só achei que devia te dar... Estranho não? – ele riu de um jeito nervoso. Começo a achar que ele está tão nervoso quanto eu com essa conversa...
Não, ele não vai estar nervoso, Stacy. Só está falando cara a cara com a Fada que invadiu seu sonho, provavelmente pensando que nunca a veria.
Eu suspirei e acho que minha expressão era bem triste, porque eu me lembrei de mamãe, da ânfora com as cinzas dela, dos Vampiros... E aí, eu acho que fiquei com a expressão zangada.
− Está tudo bem? – ele perguntou, e só então percebi que ele tinha saído do canto da parede e estava sentado do meu lado na cama.
− O conselho que você me deu... Me ajudou a superar a morte da minha mãe pouco tempo depois... – eu disse, suspirando, sentindo uma vontade quase incontrolável de chorar, mas engoli esse choro. Fala sério, pagar esse mico na primeira conversa com alguém é o fim do mundo! Mas eu tinha vontade de chorar porque não tinha de fato superado a morte de mamãe. Eu tinha dito uma meia-verdade.
Percebi ele ficar um pouco mais sério.
− Não falo da tristeza... Falo da raiva que vi nos seus olhos. – ele disse, e acho que ele queria uma resposta e não aceitaria que eu desviasse o assun-to... Ai ai... Por que minha vida é tão complicada? Na próxima encarnação, quero nascer totalmente humana, falou?
− É que minha mãe era uma vampira... Ela me mordeu quando eu era pequena pra saber se eu seria uma Fada, uma Vampira, ou mestiça... Mas não conseguiu definir pelo gosto do meu sangue, e continuou se alimentando de mim. Ela sabia que eu nunca seria o que quer que eu fosse completamente nem usaria magia se isso perdurasse por muito tempo, mas ela preferia isso a me ver uma viciada em sangue, foi o que ela disse. E ela foi expulsa do clã dela por causa disso. No entanto, em julho, quando por causa de alguns acontecimentos, meu poder despertou, ela parou de se alimentar de mim. Tendo menos sangue do que precisava pra sobreviver, ela morreu nesse fim de semana. – caramba... Aconteceu tanta coisa em tão pouco tempo... Só fazem dois meses que meus poderes despertaram... As coisas estão indo rápido demais pro meu gosto. – No sábado... Na segunda, ela foi cremada. Mas o antigo clã dela veio atrás das cinzas dela. Mas não deixei eles pegarem-nas. – senti a raiva se inflamando dentro de mim. Eu tinha ódio deles, vontade de matá-los por terem a audácia de querer as cinzas de mamãe; Rashne deve ter percebido, porque senti os braços dele me envolverem e a aura de paz se intensificar até que penetrou em mim, e senti a raiva se esvair, expulsa pela paz que me invadiu. E admito que fiquei surpresa.
− Calma... Ódio, raiva e todo sentimento maléfico que envenena a mente e o coração não são bons em ninguém, principalmente em Fadas. – ele sussurrou, e não percebi quando o abracei de volta, apoiando minha cabeça no tecido quente e azul da blusa dele, ouvindo seu coração pulsar. Era impressão minha, ou seu coração batia no mesmo ritmo do meu?
E não percebi também que estava chorando. Desde que mamãe morre-ra, eu não chorara. Sério. As lágrimas sempre ficavam presas na garganta, eu as segurava para chorar no meu travesseiro, abraçada com Despertador, antes de dormir, mas eu mal deitava e já adormecia por causa do cansaço, e ficou assim. E eu não tinha chorado ainda.
Mas, naquele momento, toda a paz que Rashne fizera expulsar a raiva e o ódio de mim, agora também estava fazendo com que a tristeza contida escorresse por meus olhos. Ele não falou nada, só apertou mais o abraço em torno dos meus ombros, esfregando um dos meus braços com as mãos.
Acho que ele sabia por que eu chorava. Acho que ele entendia. Não sei por que, mas eu sentia que ele entendia...
Nem sei por quanto tempo fiquei chorando, só sei que chorei até sentir que meus olhos tinham secado e não importava o quanto eu piscasse, eles continuavam secos.
Soltei Rashne lentamente, um tanto encabulada pela cena. Oieee, foi um King Kong, não um simples mico! Mas... Eu me sentia bem mais leve. Parecia que um peso enorme tinha saído dos meus ombros.
Ele me sorriu e esfregou uma das minhas bochechas, tentando apagar o rastro de lágrimas. Achei o gesto fofo e tipo assim, ninguém do sexo oposto tinha feito isso comigo. Devon e Sammuel nunca me viram chorar, e papai não tinha vez por causa de vovó ou de Despertador.
− Melhor? – ele perguntou de um modo gentil, e eu balancei a cabeça afirmativamente, sorrindo como um reflexo do sorriso dele. – Que bom. – o sorriso dele se abriu mais – e ele parecia até brilhar, mas acho que era coisa da minha cabeça –, mas então ele ficou sério e o brilho se apagou. Essa não. Aí vem coisa. – Quando você invadiu meu sonho, você não viu meu rosto. Mas ainda assim, ficou muito surpresa quando abriu a porta e me viu. Por quê? Me achou muito lindo? – então, ele disse debochado, fazendo pose e cara de safado – sinceramente, to começando a achar que ele é bipolar... Numa hora é todo carinhoso e cara de inocente, no outro é todo safado... Sei não, viu...
Aquilo me fez rir por um instante, mas então me lembrei de uma coisa que mamãe me disse antes de morrer.
− Contar visões é perigoso, Stacy. Você pode mudar o futuro. E se o que vem é feliz, pode se tornar triste. E às vezes, contar faz justamente que aquilo aconteça. Tenha cuidado com o que e a quem revela.
E ela tinha toda a razão. Bastava lembrar da história de Perseu: o vô de-le só morreu pelas mãos dele – acidental, mas pelas mãos dele – porque lhe disseram que o neto dele lhe mataria. E tentar evitar isso só fez que a ocasião chegasse.
Eu tinha de responder. O olhar de Rashne intimava uma resposta. Mas eu não sabia quanto podia revelar.
Minha mão tocou o cabo de Savën, e à essa altura eu já sabia que, mesmo sem dar visões completas, a adaga me fazia sentir o que era certo, qual ação faria que o futuro fosse pelos caminhos corretos na teia de possibili-dades que é o futuro e o destino.
As palavras da Fada me voltaram à memória.
“Só é preciso que você faças as escolhas certas...”
E eu já sabia o que dizer.
− Uma visão que tive pouco antes de você chegar, por causa dessa a-daga, Savën, que meu professor Aaron, e um Lobisomem, me deu ontem a noite, junto com esse colar, Anoen, e essa outra adaga, Fëna, numa caixa chamada Malë. – eu disse, e sabia que era o suficiente para que o futuro continuasse em seus trilhos certos. Não disse como tinha sido a visão, e era assim que devia ser.
Ok, admito, só fui na enrolação, mas era isso que eu podia falar sem trazer algo ruim pro futuro. Era o que eu sentia.
− Posso? – ele perguntou, apontando para as adagas e para o colar. Entendi que ele queria examiná-los melhor. E eu aceitei. To mesmo curiosa pra saber mais sobre eles!
Ia tirar o colar do pescoço, mas no momento que o toquei, senti-me ser arrastada para o passado. Maravilha...
Eu imediatamente reconheci meus pais. O ambiente parecia ser Japão no século passado, talvez antes da Segunda Guerra. Eles riam muito, e mamãe estava linda com um típico penteado de gueixa e com um lindo kimono vermelho com flores azul-elétrico e a faixa de um verde-folha lindo com desenhos em negro indefinidos.
Um homem atrás de uma câmera fotográfica antiga sorria para o casal, e bateu uma foto. Seria em preto e branco e jamais teria as cores daquele dia lindo, com as cerejeiras floridas, a rua coberta de flores rosadas, mas seria uma linda lembrança.
Eu reconheci o homem que tirara a foto. Ele tinha acabado de revelá-la, e mamãe estava linda. Não fazia jus a ela pela falta de cores, mas ainda assim, era linda.
Era uma câmara escura, e detrás da cortina, um homem surgiu de repente. E eu sabia que era um Vampiro. E o reconheci, embora tivesse uma a-parência bem mais nova. Era o Vampiro mais velho do grupo que tentara pegar as cinzas de mamãe.
− Onde está? – ele perguntou para o homem, que se assustou. Era um humano puro. Eu via as Fatum esvoaçando ao redor dele. Ele tinha muito medo do Vampiro, e entregou a foto tremendo.
O Vampiro olhou com raiva para meu pai na foto, mas percebi um amor imenso no olhar dele ao olhar para minha mãe.
Ele amava minha mãe, era isso? Por isso queria tanto as cinzas de mamãe? Não a teve em vida, e agora queria suas cinzas?
− Ah, Diane... Por que preferiu alguém do povo das Fadas? – não havia dúvidas. Ele amava minha mãe. E muito. E pelo jeito tinha muita raiva do meu pai, porque fora ele quem a conquistara.
Eu o vi rasgar a foto, de forma que ficasse apenas minha mãe ali, e amassou a metade onde estava o meu pai.
E saiu, deixando o humano respirar aliviado.
Rashne me olhava de um jeito ansioso.
− Não há mais dúvidas. – ele disse, sorrindo misterioso. Eu ergui uma sobrancelha.
− Dúvidas de que? – eu perguntei. Ele parecia muito feliz. Eu nunca tinha visto alguém tão feliz. Aliás...
Eu tinha dado pistas de que estava numa visão, é isso?
− De que estes são os artefatos do Tempo, forjados e encantados por Anastásia, uma das poucas, de todos que existiram, que tiveram afinidades com todos os tipos de feitiços, e que foram entregues aos NightEyes quando ela morreu. E acho que você é uma desses com afinidades com todos os tipos de feitiços... Só assim poderia ter visões aos tocar os artefatos. – ele sorriu maroto, colocando as adagas em cima da cama e me puxou pela mão para dançar no meio do quarto. No começo fiquei meio... Assustada, mas logo acompanhei a dança, e juro que ouvi uma música alegre com ar irlandês, escocês ou árabe, não sei dizer, parecia misturar os três, tocando ao fundo, acompanhando a dança. Apesar de não ter entendido muito bem o porquê dele me puxar pra dançar, mas tanto faz...
E nós dois riamos feito crianças, e nem percebi quando nossos passos nos levaram para fora do quarto e então para a sala.
Lembrei que mamãe tinha dito que ela e papai tinham se conhecido porque ela acidentalmente invadira os sonhos dele. E que os dois se casaram e viveriam juntos pelo resto de suas vidas se tivesse sido possível.
Talvez certos acontecimentos ao acaso façam uma incrível repercussão.
Mas sei lá.
Só sei que Rashne é muito mais divertido que Sammuel! E que só ele mesmo pra me alegrar tanto!
Além disso... Eu já disse que ele é muito gato?
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Stacy está perdidamente apaixonada, aham. u_u
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