16 junho 2017

Alanna: Os Sem Pele - Capítulo 10: De Materializações e Consciências

O espírito observou o Bruxo Branco — Abel, se ele lembrava corretamente dos pensamentos superficiais de Alanna sobre ele — pegar o corpo adormecido da garota do veículo estranho, e seguiu-o quando ele a levou para o interior da construção, passando por um cômodo onde a única coisa que ele conhecia era um tapete colorido, até alcançar o que ele deduziu ser um quarto, embora muito diferente do que o espírito conseguia se lembrar; o rapaz colocou a Shaman na cama, tirou os calçados estranhos dos pés dela e então a cobriu com um lençol fino.

— Seu pai vai me matar quando souber tudo que aconteceu... — Jaguar o ouviu resmungar enquanto fechava as cortinas, deixando o quarto escuro. O Bruxo Branco ainda verificou a temperatura da garota com as costas das mãos contra a testa dela antes de sair, resmungando algo como “Ainda bem que não está com febre”.

Jaguar pensou em seguir Abel quando ele saiu do quarto, mas aquela sensação estranha de reconhecimento e de amarra o impediu. Ele não sabia explicar direito, mas no momento que Alanna aparecera na sala onde ele tinha estado desde quando ele se lembrava, era como se um nó firme e final tivesse sido feito na ponta de duas cordas, uma amarrada a ele e outra amarrada a ela, unindo-as. Um estalo em sua consciência sinalizando que o tempo havia passado e a hora de alguma coisa que ele não sabia o que era chegara. Aquela sensação tinha começado antes da garota aparecer, algo brilhando próximo e se aproximando e que o tirou de um longo torpor e espera. Uma mudança. E então aquela amarra. Ele não entendia, mas esperava que Alanna sim e pudesse explicar.

E até entender, zelaria pela segurança dela.

Talvez o fizesse mesmo depois, ou mesmo que não houvesse o que entender. Algo em sua mente, do pouco que lembrava, falava que era sempre bom ajudar Shamans.

Sentou-se na cama, apoiando as costas na cabeceira, e observou o rosto adormecido da garota. A ponta de uma mecha de cabelo, uma dentre muitas que se soltaram da trança, encontrara de alguma forma a boca da Shaman, sendo mastigada. O espírito por um momento seguiu o impulso de afastar a mecha, mas os dedos apenas afundaram na carne da bochecha.

Jaguar franziu as sobrancelhas, afastando a mão e observando o rosto de Alanna se contorcer, como se tivesse sentido aquela tentativa de toque, antes de voltar a relaxar. Cruzou os braços e reclinou a cabeça, encarando o teto escuro. Como ele pudera esquecer, mesmo que por apenas um momento, que estava morto, era apenas um espírito e, portanto, incapaz de tocar nos vivos sem reunir uma grande dose de vontade? Devia ser efeito dos longos minutos que passara ocupando o corpo da Shaman, manejando suas armas para acabar com os malditos filhotes de Tzitzimime. O desacostumara com a realidade de sua existência.



O espírito não sabia dizer quanto tempo exatamente tinha se passado desde o momento que haviam chegado quando ouviu um som que ele desconhecia ecoar pela casa, brevemente, com um fim abrupto. Era estridente e incomodo e o fez ficar curioso o suficiente para levantar da cama e atravessar as paredes desprotegidas.

— Senhora Ravi, obrigado por retornar a ligação. — o homem estava sentado num dos móveis estranhos no cômodo do tapete e segurando algo contra a lateral do rosto. Jaguar se aproximou com cuidado, consciente da possibilidade do Bruxo Branco ser capaz de sentir espíritos. — Sim, logo devo terminar o relatório e enviar, mas antes tem algo que aconteceu e queria notificar logo.

O Bruxo Branco se levantou repentinamente e começou a andar pela casa. O espírito o seguiu, tanto pela curiosidade do que era o objeto nas mãos do homem, como pelo interesse no que ele falava. Especialmente pelo tom de voz que parecia ficar cada vez mais nervoso

— Então... Nós fomos atacados por Sem-Peles ao chegarmos às ruínas. Consegui fazer Alanna entrar usando um elemental do ar e fiquei na porta para atrasá-los. Nisso o grilhão do elemental acabou se quebrando e fui nocauteado. Acordei com Alanna me chutando, sendo hóspede para algum espírito que estava na ruína. — nesse ponto o homem sentou numa cadeira simples diante de uma mesa num cômodo cheio de coisas estranhas que fizeram Jaguar torcer o nariz. — Ela realizou materialização, senhora.

A voz, de nervosa, passou para preocupada, o que fez a atenção do espírito voltar rapidamente para o homem vivo.

— Armas e armadura de Guerreiro-Jaguar, sólidas o suficiente para nos dar uma chance, espirituais o bastante para saber que eram de outra frequência.

Jaguar rolou a palavra em sua mente. Materialização. Carregava peso, importância. Parecia algo que ele deveria saber. Ou Alanna: se era algo que se referia ao que acontecera no templo, com os objetos que ele usava, e ela tinha conhecimento, a palavra deveria ter surgido nos pensamentos superficiais da Shaman, um reconhecimento. Não era esse o caso; pelo contrário, ela tinha estado tão surpresa quanto ele.

— Tenho certeza do que vi, senhora Ravi. Era materialização. Foi a única coisa que feriu os Sem-Pele. — uma pausa. Jaguar começava a desconfiar que aquilo era algum tipo de aparelho de comunicação. Como o tempo passara. — Por isso que liguei. Não havia nada do tipo nos arquivos dela, e a base de dados da Stella Bianca fala que os Espirituais que sabiam como realizar materialização morreram há mais de dois séculos.

Outra pausa, essa mais longa. O espírito começou a recuar lentamente, cuidadosamente gravando as informações. Não sabia se o Bruxo Branco diria tudo aquilo e mais à Shaman responsável por sua “liberdade”, e queria garantir que pudesse falar caso ele ficasse calado sobre.

— Sim senhora. Vou providenciar. — o homem riu de leve de um jeito que fez o espírito pensar em “amargura”. — Pelo menos agora sabemos do que precisamos para lutar contra os Sem-Pele. Não vou esquecer. Até mais.

Jaguar viu o homem colocar sobre a mesa o que tinha segurado contra o rosto — um objeto retangular cheio de pequenos quadrados que pareciam botões com coisas desenhadas e que ele não entendia —, antes de afinal voltar para o quarto onde Alanna estava.



Perdeu novamente a noção de tempo. Não havia muito que ele pudesse fazer, como espírito, além de observar, e foi o que ele fez: observou a Shaman adormecida, atento aos possíveis sinais de que o sono não era tranquilo.

A única interrupção foi o Bruxo Branco entrar no quarto, deixar um pedaço de algo cheio de rabiscos na mesinha ao lado da cama, acrescentar um cobertor por cima do lençol e então sair do cômodo. Não muito depois Jaguar ouviu o barulho do estranho veículo que tinham usado para se afastar do templo, partindo e partindo.

Depois da saída do homem, a casa ficou silenciosa, apenas o barulho da cama rangendo quando Alanna se mexia interrompendo a quietude. Percebeu o dia terminar e a noite começar quando grilos e outros animais noturnos passaram a dar sinais de existência do lado de fora, o silêncio deixando de imperar.

Pouco tempo depois, o espírito notou algo de diferente. Não era o retorno do Bruxo Branco — cuja demora estava começando a cutucar sua mente —, nem algo mais material, mas sim... Uma sensação familiar de poder, tão próxima que parecia deslizar contra ele, pinicar, sugar.

Saltou de sua posição com a súbita pontada de dor, como se algo houvesse tentado beber de sua energia e apaga-lo da existência.

A sensação veio de novo, dessa vez mais aguda, e o fez chiar com a súbita e estranha dor tomando seu ser. Ele sequer conseguia lembrar a última vez que sentira dor, o que indicava que ainda era vivo quando ocorrera.

A atenção foi atraída para a Shaman, quando a dor aliviou. O sono tranquilo havia partido; ela se remexia na cama, a cabeça indo de um lado para o outro, os olhos girando loucamente debaixo das pálpebras, a respiração rápida como a de alguém fugindo.

E o medalhão dourado que tinha estado no templo havia dissolvido o tecido debaixo dele até alcançar pele, se fincando com tanta força a ponto de fazer verter sangue; parecia pulsar com cada batida do coração da garota.

A agonia de algo sugando sua energia veio de novo, mais desesperada, mais esfomeada, e a amarra que o ligava à Shaman se esticou com uma sensação de urgência, como que tentando arrastá-lo em direção à Alanna. Resistiu àquilo, desnorteado quanto ao que estava acontecendo e ao que devia fazer. Era difícil pensar, com as duas sensações puxando-o cada uma numa direção — a amarra para possuir o corpo da Shaman sem permissão, o poder para ser sugado e servir de... Alimento? Era o que parecia.

O medalhão brilhou em tom vermelho, o que deveria ser impossível. E então as linhas do desenho do sol asteca, de simples entalhes, passaram a se tingir de sangue.

De uma forma que não devia ser possível, afinal estava morto, Jaguar sentiu a garganta se fechar. A amarra agora era um berro de desespero contra ele, sobrepujando brevemente a agonia de energia sugada, e sua mente enevoada conseguiu raciocinar que o medalhão devia parar de ter contato com Alanna.

Juntou o máximo de vontade que conseguia e estendeu a mão para a peça de ouro, mas só conseguiu afundá-la no peito da garota. Um grito de raiva rasgou caminho através de seu peito; o que quer que estivesse sugando sua energia o deixara fraco demais para conseguir interagir a tal nível com o plano físico.

A amarra puxou de novo, dessa vez mais fraca e ecoando o frio que parecia ter começado a tomar o quarto.

Estava ficando sem tempo.

Trincando os dentes, se rendeu ao puxão da amarra.



A primeira coisa que Jaguar notou na mente da Shaman foi o estado deplorável do labirinto, com buracos nas paredes e escombros dificultando o caminho. Como se algum monstro gigantesco estivesse andando por entre os corredores sem muito cuidado. Armadilhas haviam sido ativadas aqui e ali, mas não pareciam ter ajudado muito.

Andou a esmo pelo labirinto em ruínas, preocupação por Alanna o cutucando cada vez que o chão tremia como se um terremoto houvesse atingido o labirinto. Esses tremores pareciam ficar mais fortes, e o espírito engoliu em seco com a possiblidade muito real de que, o que quer que fosse, acabasse esmagando a mente da Shaman.

Pouco tempo devia ter se passado até Alanna aparecer, o cabelo preso firmemente, armas penduradas nas costas e braços e usando roupas que não prendiam o movimento. Vestida para guerra. O rosto, carregando tensão e raiva, o encarou com o que parecia uma pontada de medo.

— O que está fazendo aqui?! Como entrou?! — o espírito notou ela erguer a mão e se preparar para expulsá-lo, e recuou um passo, recusando-se a parecer fraco.

— Fui arrastado por...! Eu não sei o quê, para cá! — sons possantes e que tomavam todo o labirinto começaram a preencher o ar, forçando-o a gritar. Pareciam trovões, mas muito mais altos e intensos. — Tem algo errado com o medalhão que você achou no templo!

Alanna semicerrou os olhos cinzentos na direção dele, empunhando uma das armas longas e estranhas facilmente; a ponta estava na direção dele casualmente, e Jaguar mordeu o interior da bochecha, impaciente com a demora dela em decidir.

Outro estrondo, mais próximo que os outros; o olhar da Shaman se desviou na direção do chão por um segundo, acompanhado de uma maldição dita de forma entrecortada pela jovem. A mão livre sinalizou para ele segui-la, e então ela deu as costas para ele e começou a correr.

A corrida através do labirinto e de portas ocultas foi seguida de perto por terremotos e trovões. Algo definitivamente querendo destruir a Shaman.

— O que é isso?! — Jaguar perguntou, mergulhando num prédio estranho e cinza e sem vida logo atrás de Alanna.

— Eu não sei, mas está passando pelas minhas defesas como se elas fossem manteiga! — o grito resposta acompanhou o fechar da porta por onde tinham entrado logo atrás dele. Estavam num cômodo vazio e praticamente fechado, apenas finas e longas janelas cortando as paredes. Ali, os trovões e terremotos estavam mais abafados. —Você disse que tem algo de errado com o medalhão. Descreva.

Por um momento, o foco e o modo sucinto em alguém tão novo o surpreendeu. Não parecia correto que ela tivesse tanto controle sobre si mesma quanto ele, um guerreiro de outro tempo que lutara em guerras e morrera com pelo menos o dobro da idade da garota. Ao menos era o que os fragmentos nebulosos de memória diziam. Então ele fez como ela: empurrou a surpresa e confusão e todo o mais para longe e se focou.

— O medalhão dissolveu o tecido da roupa que você usava e afundou na pele, fundo o suficiente para verter sangue. Então ele brilhou vermelho e as linhas do entalhe começaram a se encher de sangue. Começou depois que anoiteceu. Tentei arrancá-lo, mas algo está sugando minha energia e não consegui me materializar o suficiente para isso. — respondeu e se juntou a ela para espiar o exterior por entre as janelas estreitas.

Percebeu os lábios da garota se franzirem e se torcerem numa expressão estranha e, ele tinha quase certeza, raivosa.

— Sabia que aquilo era perigoso. Muita burrice minha continuar usando depois de sair das ruínas. Certeza de que algum tipo de consciência foi imbuída no medalhão e é isso que está me atacando. — o tom era mal humorado, quase grunhido.

— É possível isso? — o espírito perguntou, ainda espiando pelas frestas, esperando algum vislumbre do responsável pela devastação do labirinto.

— E como. Alguns dos itens mágicos mais perigosos já registrados só o são por isso, pelas consciências imbuídas e aprisionadas serem dos tipos mais deturpados existentes e que sempre procuram tomar controle do usuário, muitas vezes destruindo completamente a mente original. — a resposta tinha um tom amargo, e Jaguar sentiu um calafrio subir por sua coluna. Definitivamente não queria ver o que quer que fosse tomando controle da Shaman. — E não é apenas isso. É a consciência me atacando aqui e alguma outra coisa sugando a minha vida. Preciso acordar e tirar o medalhão. — ela olhou por mais um instante para fora e então virou para ele.

— Imaginei. — Jaguar resmungou, e testou sutilmente o peso do chimalli. — Como?

— Primeiro tenho de expulsar essa consciência, depois acordar e arrancar o colar. Se acordar com a consciência aqui, não vou ter chance alguma, vou ser totalmente apagada. Tive muita sorte de estar dormindo, ou não teria tido chance de lutar. — Alanna pausou após a declaração, e algo no olhar cinzento o fez imaginar que ela estava considerando alguma outra coisa.

Um mapa em relevo do labirinto se ergueu no chão entre eles, incluindo as paredes e prédios destruídos. Uma das poucas construções de pé estava marcada em vermelho, quase colada na parede exterior. Presumiu que era onde se encontravam.

— A consciência tem rasgado o labirinto tentando me encontrar, mas parece que perdeu a paciência de vagar a esmo e decidiu destruir seção por seção até não sobrar nada. O que está funcionando, porque dá pra sentir minhas forças mentais se esgotando. Não vai demorar muito até meu cérebro desligar.

— Ou agimos agora, ou você morre. — o espírito forneceu em voz plana, e ganhou um olhar atravessado da Shaman.

— Sim. — a voz soou ligeiramente irritada, mas controlada. Alguém com a cabeça no lugar e capaz de ser focar. — Preciso me aproximar para conseguir expulsá-lo, sem ser apagada no processo.
— Vou distraí-lo. Mais alguma coisa que precisa que eu faça?

Alanna balançou a cabeça em negativa e bateu um dedo contra o material brilhante da arma.

— Basta mantê-lo distraído. — ela se aproximou do mapa e observou as paredes que desmoronavam em tempo real por alguns segundos. — A consciência está avançando do norte. As portas do labirinto vão se abrir conforme você precisar. Vou chegar pelo leste. — A Shaman mal terminou de falar antes de abrir a porta e sair do cômodo.

Jaguar seguiu a garota, e assim que estava de volta no labirinto, um leve empurrão surgiu em suas costas. A mente da Shaman, indicando onde o Norte se encontrava em seu subconsciente. Soltou um suspiro e aceitou o empurrão, realizando alguns golpes experimentais e amplos com o maquauhuitl.

Quanto mais para o norte ia, mais o labirinto parecia se desmoronar ao redor dele apenas do impacto do que quer que a consciência estava fazendo. Esperou que a Shaman pudesse reconstituir as proteções mentais facilmente.

E então as paredes sumiram, uma clareira de escombros no labirinto. Não sabia o que esperar aao alcançar o responsável pela destruição, mas definitivamente não era parecido com a sombra dourada de formato humanoide, se transformando em névoa e atacando as paredes e chão, então voltando para a forma humanoide.

Agora mais perto da consciência, Jaguar conseguia ouvir uma espécie de grito rouco e agudo ecoar cada vez que o invasor era barrado ou no mínimo atrasado na busca.

Jaguar inspirou fundo, mesmo não precisando, e avançou na direção da sombra fazendo o máximo de barulho possível.

Levou alguns segundos para a consciência o notar, mas quanto o fez, imediatamente avançou na direção do espírito em saltos nevoentos, o grito agudo alto o suficiente para ofuscar os demais sons.

Jaguar fez uma careta, incomodado com o barulho, mas manteve o avanço, erguendo o chimalli. Quando a sombra estava perto o bastante, desviou para o lado, realizando um arco amplo com o maquauhuitl e cortando a névoa dourada.



Não demorou para eu alcançar o rombo que a consciência estranha abrira nas defesas de minha mente. Por alguma razão além de ter certeza de me encontrar eventualmente, o invasor parara de vagar pelos corredores e focara em destruir tudo. Imaginava que talvez fosse uma tentativa de me atrair para campo aberto.

Enxerguei uma sombra, dourada e humanoide e sem traços definidos, determinada a destruir tudo. Jaguar apareceu pouco depois, e logo atraiu toda a atenção da consciência.

Dei alguns segundos, trincando os dentes para não reagir ao som agudo do grito da consciência invasora. Infelizmente não havia nada a ser feito pelo barulho que já estava em minha mente.

Enquanto esperava para garantir que a consciência estava totalmente focada na luta, aproveitei para admirar a fluidez dos movimentos de saltos e desvios de Jaguar por entre os escombros; às vezes ele parecia virar tão névoa quanto o invasor, tão veloz eram os ataques.

Molhei os lábios e não me dei tempo para repensar na insanidade, avançando rapidamente e garantindo que os escombros abrissem caminho.

Quando a consciência invasora notou a minha proximidade, já era tarde: agarrei a forma de sombras e impus a minha vontade, expulsando-a.



Sentei na cama num impulso ao acordar, a força de Jaguar me ajudando. Meu peito queimava e doía e eu sentia minha camiseta se grudar ao meu corpo e o cheiro férrico de sangue inundando meu nariz. Meu sangue. O sentia escorrendo do corte circular entre os meus seios enviando mensagens de dor ao meu cérebro. Onde o medalhão afundara, como que tentando se incrustar a mim.

Puxei o ar com certa dificuldade para os meus pulmões e levei minhas mãos, geladas e tremendo, até a peça de ouro. Sentia meu corpo dolorido e cansado e gelado e querendo desistir. Querendo aceitar o abraço da morte.

Trinquei os dentes e comecei a tentar arrancar o medalhão, as pontas dos meus dedos grudando no sangue, coagulado e fresco, envolvendo a peça. Meus braços tremeram com o esforço, mas o medalhão não deu a mínima mostra de ter afrouxado. Apenas pareceu se fincar com mais força e provocar um novo fluxo de sangue.

Jaguar, ainda dividindo o corpo comigo, veio à superfície. A energia sugada causara um cansaço nele que era estranho e intenso e que provocava uma sensação aguda e incômoda no fundo do meu cérebro. Como se a morte estivesse mais perto do que nunca de nós dois, em busca do meu corpo e do espírito dele.

Apesar disso, o Guerreiro me emprestou a força que carregava, tanto a que se concentrara em seus músculos até o momento de sua morte e fora passada para o espírito, como a sobrenatural que o imbuía e lhe permitia existir. Ambas muito mais limitadas comparado ao que ele fizera nas ruínas, mas era ajuda, ainda assim.

Juntos, eu e Jaguar puxamos a peça; senti cortes se abrirem nos meus dedos e travei o maxilar, ignorando a nova onda de dor. Lâminas pareciam se estender do medalhão, tentando mantê-lo ancorado ao meu peito.

E então, numa espécie de pico de força, conseguimos. O medalhão se soltou de minha carne, parecendo rasgar a pele, mas saiu. Depois, Jaguar foi o único que conseguiu ter forças para conseguir puxar a peça, o cordão de couro arrebentando num estalo contra meu pescoço, e o jogar contra o chão inerte.

Apoiei as mãos no colchão e por um instante achei que meus braços não conseguiriam me manter sentada, de tanto que tremiam. E então eu e Jaguar encaramos o medalhão.

O outro estava praticamente todo coberto pelo tom vermelho-escuro e marrom-preto de sangue venal tanto fresco como coagulado, indicando quanto tempo eu ficara presa em minha mente. Lâminas minúsculas, triângulos pontiagudos, envolviam toda a circunferência. Não apenas uma impressão então.

E o entalhe do sol asteca provocou um arrepio de assombro.

Sangue preenchia as linhas num tom vívido e brilhante de sangue arterial não-coagulado, o que não fazia o melhor sentido, e que fazia a peça parecer esfomeada.

Engoli em seco e pedi para Jaguar nos fazer ir até o medalhão. O espírito cumpriu minha vontade, os pensamentos dele de que ele não concordava com aquilo e que eu devia me manter longe da joia pesando em meu consciente.

Peguei o medalhão pelo cordão e o ergui; por um instante, ele pareceu tentar se esticar na minha direção, atraído pelo sangue quente correndo em meu corpo, e estiquei o braço até afastá-lo o máximo possível.

Soltei um suspiro esgotado — qualquer sono que eu tivera mais cedo para me recuperar da fuga tinha sido inutilizado pela batalha contra o medalhão. Minha única vontade era dormir por uma semana e acordar apenas ocasionalmente para comer até explodir.

O último favor que pedi a Jaguar antes de liberá-lo foi ser deixada em minha cadeira de rodas. Os sentimentos e pensamentos que o espírito deixou em minha mente, antes de sair, foram de preocupação e pedidos para que eu tivesse cuidado.



Alanna molhou os lábios e precisou se esforçar para erguer o braço para a maçaneta da porta; o membro estremecia e parecia mais pesado do que nunca. O recado deixado por Abel ao lado da cama confirmava suas suspeitas de que ele não apareceria tão cedo e que ela teria que se virar para notificar o que acabara de acontecer para Miranda e Annanda.

Jaguar a acompanhou, parecendo menos matéria e mais espírito que nunca, considerando que ele não estava apenas levemente transparente, mas sim era quase que apenas uma impressão contra o fundo, uma silhueta; até os olhos pareciam expressar mais cansaço que qualquer outro sentimento. A Shaman desconfiava que o medalhão se aproveitara da estranha conexão que ligara o espírito a ela e o fizera ajuda-la para sugar energia de Jaguar. Se fosse o caso, não tinha dúvidas de que só conseguira resistir e lutar tanto por conta disso.

Empurrou o joystick da cadeira, e o objeto moveu-se pela casa até alcançar a cozinha. Colocou o medalhão sobre a mesa, tendo cuidado para não tocá-lo.

Puxou o celular do bolso da calça e, lutando contra os tremores e o peso em sua mão, fotografou a peça. Gravou um áudio contando tudo que acontecera, a voz cansada e rouca e velha aos seus ouvidos, e mandou os dois arquivos pelo email da Ordem para a comandante e para a Fada Madrinha. Acabou enviando um segundo email pedindo para que não contassem a Nilton, que o faria ela mesma ao fim da missão.

Mal tinha clicado em “enviar”, ouviu a porta da frente se abrir. Abel devia ter acabado de chegar.

Não conseguiu reunir energia o suficiente para chamá-lo antes dos passos dele ecoarem na direção dos quartos e então a voz dele chamar o nome dela num tom meio desesperado.

— Na cozinha. — conseguiu grasnar após juntar forças, e torceu para ele ter escutado.

O mexicano logo surgiu no cômodo. Um palavrão soou em seguida.

Alanna apenas suspirou, e antes de deixar a exaustão alcança-la e dominá-la, colocou o áudio gravado para rodar. Então apoiou os braços cruzados sobre a mesa, a cabeça neles, e dormiu.

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