15 fevereiro 2015

Elysium 1: Fenris Fenrir - Capítulo 5

O Sonnenblume se despediu de mim batendo em minhas costas, antes de sumir pelos corredores de metal, me deixando encarar sozinho o que podia ser chamado de primeira “aula”.
“Com medo?”
Que que tu acha? Ontem sequer me viram no refeitório por causa da briga e por causa de Luís... Agora não vou ter essa facilidade. Além disso, é a aula pra aprender a controlar a transformação. Aposto que Davi vai estar lá dentro.
A fera ficou em silêncio, provavelmente lembrando de como o Kupfer nos tratara no dia anterior.

Sinceramente, a ideia de reencontrá-lo não me agradava muito.
Resmungando algo ininteligível, sentindo o estomago roncar porque o professor que me convocara para estar lá às seis da manhã proibira que tomássemos café, encostei a palma da minha mão na interface da porta. Uma luz piscou de azul para verde junto com um aviso para afastar a mão. Assim que o fiz, a porta reflexiva fez um zumbido conforme se afastava para a lateral.
Do outro lado, havia uma sala ampla, com o teto alto, quase vazia, na qual eu pisei devagar, olhando para todos os lados. Ao invés do carpete cinza-chumbo, o chão era de alumínio, com alguma espécie de antiderrapante cobrindo-o em diversos locais. As paredes eram claras, e os únicos móveis, se é que dá pra chamar assim, eram blocos de concreto de diversas alturas e tamanhos; olhei ao redor, encontrando os outros oito Lobisomens com coleiras, Davi e Larissa entre eles, conversando; ele não parecia tão afetado por ela quanto os outros rapazes...
“Lá na enfermaria ela falou como se o conhecesse... Como são os próximos Alfas de seus clãs, é bem capaz...”
Pensando bem, até que a fera tinha razão nisso.
Com um suspiro, comecei a andar na direção do grupo, me preparando psicologicamente para o que quer que fosse acontecer; faltando alguns passos, a parede deslizou num canto e um homem entrou milésimos de segundos depois que o cheiro de couro e tinta.
Ele tinha olhos dourado escuro com gotas de azul, o cabelo cor de areia cortado numa espécie de moicano que era, ao que me parecia, uma pobre tentativa de tentar passar a impressão de altura, já que ele mal chegava aos meus ombros. E ele não era apenas baixo; era tão magro que o uniforme militar ficava um pouco largo nos braços e pernas. Novo ele também não era. Chutava que tinha pelo menos trinta e cinco anos.
Sinceramente, ele parecia qualquer coisa, menos um Lobisomem, mas não deixei essa impressão cegar o que o cheiro de tinta e couro me fazia pensar: em alguém que transformava os inimigos mortos em sapatos.
Ele olhou ao redor com um ar ausente, os olhos parados e frios, focando-os em mim um segundo à mais do que nos outros de modo estranho, provocando um arrepio na minha coluna e um rosnado ameaçador da fera.
- Estão todos aqui... Bom... – ele murmurou, as mãos cruzadas nas costas. Sua voz tinha um tom grave que não combinava muito com sua aparência. – Façam uma fila à minha frente, em posição de sentido.
Resmungando interiormente, me juntei à fila que se formava; notei, de forma quase ausente, que era o último da fila e que a pessoa do meu lado esquerdo tentou ficar um passo mais longe que o ideal.
O homem ergueu uma sobrancelha para o espaço a mais, mas não falou nada, simplesmente começando a andar de um lado para o outro lentamente, como uma onça analisando uma caça presa.
E era exatamente como eu me sentia.
Parou de repente, deslizando novamente o dourado com gotas de azul sobre nós, e então se afastou, nos dando as costas; pude ver a interface espectral do anel dele se expandir pelo braço enquanto ele digitava algum comando, e então parte de uma das paredes se afastou, exibindo exoesqueletos de modelo padrão de corpo inteiro. O militar se apoiou na parede ao lado, os braços cruzados, olhando para nós intensamente; parecia misturar seriedade e raiva.
- Vistam os exoesqueletos, à menos que queiram perder essas roupas. – resmungou, a cabeça inclinada pra um lado e os olhos semicerrados.
Alguns Lobisomens que já eram transformados há mais tempo que eu, Larissa e Davi, não hesitaram em avançar e pegar um dos macacões e começarem a se trocar, ali mesmo, na frente de todos; mesmo as garotas pareciam não ter problema nenhum em ficar de roupa íntima na frente de todo mundo; considerando a briga durante o jantar na noite anterior, isso não me surpreendia de todo. Engolindo em seco, acabei sendo o último a pegar o exoesqueleto.
Particularmente, nunca tinha tocado em um exoesqueleto; não tinha ideia de que lembrava tanto uma espécie de couro exteriormente, enquanto interiormente, parecia um tecido fino de algodão, muito suave ao toque. E também não tinha ideia de que os exoesqueletos dos Lobisomens possuíam o que pareciam fechos estranhos nas laterais e no meio das costas, nem do que pareciam ombreiras nos, bem, ombros; muito menos as placas estranhas do mesmo material das ombreiras na altura das escápulas e descendo ao longo das costas.
Respirando fundo, me despi rapidamente da calça jeans e da camiseta preta e comecei a vestir o macacão, o tecido deslizando facilmente até a gola envolver meu pescoço. Com um pouco de dificuldade, fechei o zíper nas costas, mas ainda não tinha ideia de como os tais fechos funcionavam; tentei fechá-los, mas eles se recusavam a ficar firmes.
“Problemas?”
Cala a boca, resmunguei para a fera, quase arreganhando os dentes de fato.
Senti uma mão tocar com cuidado meu braço, logo se afastando; me virei de repente, vendo uma garota da minha altura, com um rosto rechonchudo e grandes olhos dourado-escuro quase cobre, como Davi, que me passavam gentileza e bondade, algo que eu não esperava, e junto das feições dos rosto, a faziam parecer ter não mais de treze anos. Os cabelos eram pretos, mas o anel cor de cobre não deixava dúvidas de que era uma Kupfer, embora uma longe do ramo principal, com o sangue muito misturado.
- Precisa de ajuda? – a voz era doce e baixa, combinando com o cheiro de terra molhada, lavanda, erva-doce e algo mais que não consegui identificar que vinha da garota; ela como um todo me dava certeza de que ela, provavelmente, não seria uma militar. Muita doçura para estar nesse meio, especialmente considerando a oferta de ajuda, tão fora de lugar dos olhares e reações que eu já tinha despertado.
Soltando um suspiro, acenei em afirmativa. Um sorriso delicado apareceu no rosto da Kupfer, o que me deu mais certeza de que dificilmente nos encontraríamos fora das aulas de controle; as mãos dela se moveram para os estranhos fechos do exoesqueleto. Observei atentamente como ela fez com o fecho na altura da minha cintura: segurou uma das extremidades e puxou-a, e o fecho esticou; empurrou-o contra mim com força, quase me fazendo envergar pela pontada de dor e provocando um som estranho de sucção muito baixo, antes de empurrá-lo para o lugar de antes, fechando-o.
Parecia infinitamente mais firme do que quando eu tinha tentado.
- Os fechos precisam estar bem firmes; se estiverem frouxos, quando você se transformar, eles vão arrebentar e o exoesqueleto também. – ela explicou solicitamente enquanto realizava o mesmo processo nos fechos ao longo da minha coluna, que se fechavam por cima do zíper. – É uma questão de prática. – ela finalizou o último fecho na altura da metade do meu bíceps direito, deslizando um dedo pela região em que os circuitos azul-claro pareciam mais densos; Luís tinha me contado noite passada que os exoesqueletos dos Lobisomens eram feitos de forma que conseguissem acompanhar a transformação sem deixar parte alguma exposta. Ele só não tinha dito como.
- Obrigado. – sem pensar, abri um sorriso para a garota, e quase pulei quando as bochechas dela ficaram vermelhas.
“Você realmente não tinha percebido que ela só te ajudou por que se interessou por você?” eu juro, eu quase vi sobrancelhas se erguendo no rosto da fera.
Não.
“Preciso realmente te ensinar a entender como os cheiros contam tanto quanto as cores para nós...”
Resmunguei algo ininteligível como resposta e desviei o olhar da garota, tentando pensar em como me afastar sem dar bandeira; só então notei que Davi tinha um olhar de aviso no rosto. Cutuquei a Kupfer diante de mim e apontei com o queixo para o rapaz; mal ela virou para olhar e praticamente corri para longe dela.
Já bastava Davi me detestar por ser um mestiço com humano, não preciso que ele me deteste mais ainda por estar “desvirtuando alguém de seu clã”.
Maldita política Lobisomem.
Me virei para o militar baixinho e magrela que não se apresentara, apoiado no mesmo lugar, mas agora também usando um exoesqueleto, com uma expressão de quem chupou limão. Sem nem ele precisar falar, nós fizemos outra vez a fila em posição de sentido.
- Precisam aprender a se trocar mais rápido que isso, filhotes. – disse num tom que pareceu irritadiço, a voz ecoando no ambiente vazio. – Escutem bem, filhotes. – Começou, andando com passos lentos e calculados diante de nós, a coluna reta como um cabo de vassoura. – Se quiserem controlar a transformação e suas feras, vão seguir à risca as minhas instruções. Se eu falar “pulem de um penhasco”, vocês pulam sem reclamar e sem olhar pra baixo. É isso, ou quem vocês são vai morrer, devorado pela fera, e ela vai ter um corpo todinho dela pra matar à torto e a direito. – estremeci com a fala dele, me lembrando do sonho antes de acordar, em que o olhar da fera me dizia que ela queria devorar a minha alma.
“Amadeus...”
Que é?
“Só devoramos aqueles que não se provam merecedores de nos ter como aliados.” Quase pude ouvi-lo suspirar. “Você tem se demonstrado merecedor do meu respeito na maior parte do tempo. Não precisa temer... Muito.”
Não serviu para me acalmar totalmente...
O militar deslizou os olhos pela gente, analisando. Repentinamente, ele parou e sua postura relaxou totalmente, antes dele fechar os olhos.
- À vontade, filhotes.
Com as sobrancelhas franzidas, segui a ordem, mandando um “cala a boca” pra fera, que depois de declarar que eu não precisava temê-la muito, dera pra reclamar por ser chamada de filhote, resmungando coisas que eu não conseguia entender.
Girando os olhos para a reação daquela outra parte de mim, me foquei nas instruções do Lobisomem magrelo.
- Fechem os olhos. – suspirando, fiz como ele disse. Lentamente, comecei a prestar mais atenção ao que minha audição, meu tato e olfato me diziam: o cheiro de Davi parecia transmitir impaciência, enquanto o de Larissa me fazia pensar em tédio. Como eu não prestara atenção ao cheiro dos demais, não sabia dizer o que eles provavelmente sentiam: podia ser o cheiro natural deles. – Eu disse “Fechem os olhos”, senhor Kupfer. – ouvi um rosnado que só podia vir de Davi, e segurei o riso.
Não sei quanto tempo se passou conosco ali, apenas parados de olhos fechados. Meus ouvidos me contaram quando outros mudaram de posição porque estavam cansados da posição anterior, mas nada além disso.
- Acabei de desativar as coleiras de vocês. À partir de agora, você podem se transformar se quiserem. – uma pausa, e ouvi os passos calculados e leves do militar, se aproximando de mim. – Mas vocês não vão se transformar. Isso é uma ordem, filhotes.
De repente, senti um soco no meu estômago; o golpe provocou uma agulhada intensa de dor e acabei abrindo os olhos, enquanto ofegava e me encurvava.
- Vamos começar com o filhote mestiço. Os outros se afastem. – só então consegui perceber o que havia de estranho em seu olhar quando demorou mais em mim: desprezo. A voz dele estava cheia disso agora. Ouvi os outros se afastarem em silêncio enquanto eu virava o rosto para observar o militar. O brilho no dourado-escuro com pontos azuis me dizia que ele pegaria mais pesado comigo que com os outros; isso se confirmou quando ele agarrou meu cabelo, aproveitando que eu ainda estava encurvado com a dor, e puxou minha cabeça para me fitar nos olhos. – Não esqueça a minha ordem, filhote: você não tem permissão para se transformar. Mas você tem permissão para revidar.
Ele soltou meu cabelo e se afastou, antes de se transformar e me fazer estremecer: a sua fera era mais alta que eu, e tinha tantos músculos quanto Davi. E as garras tinham uns quatro centímetros de comprimento.
A fera gemeu quando o viu.
“Você VAI deixar as unhas crescerem...”
Considerando o quão desarmado eu estava, é claro que eu deixaria as malditas unhas crescerem. O que a fera dissesse.
Quando o “professor” terminou de se transformar, ele pulou na minha direção, e teria aterrissado em cima de mim se eu não tivesse me abaixado e rolado, me levantando rapidamente e correndo para longe dos outros. Caso eu perdesse o controle e a fera assumisse, não queria os outros por perto... Tipo, provocaria uma carnificina se eles também perdessem o controle.
O militar transformado uivou de raiva e com um tom de reprovação – incrivelmente – antes de correr na minha direção. Não me movi, sabendo que teria de receber alguns golpes para saber manter a fera sob controle em situações extremas, e voei quando ele agarrou meu braço, girou e me atirou na direção de uma das plataformas de concreto. Uma das mais altas.
Bati a cabeça com força na superfície plana da plataforma e senti um talho se abrir no meio do couro cabeludo, irradiando dor; pelo menos não mordera a língua. Girei, ficando de costas para cima, e embora minha cabeça rodasse, apoiei as mãos no concreto e comecei a me levantar. Piscando, sentindo o sangue escorrer profusamente, ensopando o cabelo e o meu pescoço, se infiltrando por debaixo do exoesqueleto, notei que também ouvia apenas um zumbido, nenhum outro som.
O Lobisomem pulava pelas plataformas para me alcançar. Do outro lado do salão, franzi as sobrancelhas quando vi os outros “filhotes” olhando em minha direção enquanto pareciam gritar uns com os outros; os outros que já estavam nas aulas há mais tempo – ou seja, todos, com exceção de Larissa e Davi – apontavam para o militar e para mim; pareciam irritados.
“Me deixa assumir o controle.”
Tá louco? Não posso me transformar.
“Se você não se transformar, ele vai te matar. É isso que ele quer, Amadeus. Pensa na Eliana.”
“É o que eu to fazendo. Preciso aprender a controlar a transformação se quiser ter alguma chance; se ela se transformar, vai precisar de alguém pra guia-la.”
A fera ficou razoavelmente quieta: ela ainda rosnava no fundo da minha mente, mas não falou de novo. A garota que me ajudara, pelo que percebi, ativara a comunicação da sala usando a interface touchscreen da parede, gritando com alguém que eu não sabia quem era, já que ela estava na frente. Os demais tinham se espalhado pela sala, olhando com atenção o desenrolar dos fatos.
O Lobisomem estava mais próximo, a apenas uma plataforma de distância. Engolindo em seco e adivinhando que ele me atiraria pelo lugar de novo, me levantei, cambaleante, e pulei para a plataforma mais baixa e na direção contrária de onde ele vinha; quase me arrebentei mais ainda quando cai. Quando me levantei de novo, ouvi um rosnado de aviso, como quando minha mãe dizia “se correr, apanha mais”, quando eu aprontava uma das minhas. Mas não tinha nada do carinho escondido de Isabel. Só então percebi que minha audição tinha voltado.
Antes que eu alcançasse a borda do lugar onde eu estava, o militar pousou pesadamente atrás de mim e pulou em minhas costas, me derrubando. Nem meio segundo depois, senti os dentes perfurarem meu ombro – exoesqueleto desativado igual a sem mitril –, os dentes atravessando o tecido como se ele fosse manteiga.
Deus, como doeu. Só não foi pior que a primeira transformação, mas ainda assim, me fez gritar como se o mundo estivesse acabando. Pra mim, estava mesmo.
Me contorci, acertando-o com o cotovelo, mas ele nem percebeu; pelo contrário: soltou um pouco e mordeu de novo, um pouco mais acima, mas mais apertado.
O líquido carmesim começou a se acumular debaixo de mim e minha mente começou a ficar nublada com a falta de sangue; as memórias dos acontecimentos recentes estavam começando a se misturar.
De repente, os dentes saíram e o peso em minhas costas sumiu, enquanto ouvia um ganido de dor e um baque surdo. Sentindo a cabeça rodar mais ainda, virei de costas, olhando para o teto, ofegando e então usando a mão do ombro inteiro para pressionar o ferimento.
O sangue ainda saía aos borbotões.
Reconheci Davi, e isso quase me fez perder o ritmo que eu construíra para aguentar a sensação de que nem todo o ar do planeta seria o suficiente. Era difícil acreditar que fora ele quem me salvara, principalmente porque eu ainda podia enxergar em seu olhar acobreado e brilhante o fato de que ele não gostava de mim.
Ele ajoelhou do meu lado e puxou minha mão para o lado sem se esforçar, abrindo os rasgos no exoesqueleto e analisando as perfurações.
- Vai ficar cicatriz, apesar de não ser prata, mas você vai sobreviver. – a voz tinha um tom quase frio, embora eu conseguisse identificar algo de raiva ao fundo, e então ele se levantou. – Consegue andar? – respirei fundo e me esforcei para ficar de pé, o que foi uma tarefa hercúlea graças ao senso de equilíbrio totalmente bagunçado, e acabei precisando que o Kupfer me puxasse pelo braço intacto.
- O que aconteceu, exatamente, e por que você salvou o meu traseiro? – perguntei enquanto começava a descer pelas plataformas até o chão com a ajuda de Davi, já que o ombro dilacerado, o talho na cabeça e a falta de sangue tinham me deixado zonzo até o último fio de cabelo; era capaz de eu acabar caindo todo o caminho para baixo, e o Kupfer resmungara algo como “não tinha me salvado de um Lobisomem psicótico pra morrer numa estúpida queda”.
- Ele quebrou a lei. Te atacou com a intenção de te matar. – ele parou por um instante, pulando da última plataforma. – Por mais que te detestemos por ser mestiço com humano, você ainda é um Lobisomem, e Lobisomens não matam uns aos outros desde que os acordos de paz dos clãs foram assinados. Qualquer um que mate um semelhante não é digno de ser chamado de Lobisomem. – e então ele se afastou, como se não se importasse mais comigo.
A dor no ombro e na cabeça diminuíra para um latejar constante, mas suportável; olhei ao redor, e vi o militar de novo em sua forma humana, um ombro deslocado, provavelmente pela queda, e com rasgos nas bochechas, provavelmente de quando Davi o forçara a largar meu ombro. Mas ele estava com uma coleira no pescoço, o rosto raivoso, como um cão de rua prestes a atacar, enquanto Joshua estava na frente dele, berrando com raiva, enquanto outros militares estavam parados ao redor, armados e com expressões de desprezo para o que estava ajoelhado no chão entre eles. Davi e Larissa foram os últimos recrutas a saírem.
“Eu sei que conheci Joshua ontem, mas não imaginava que o veria irritado, pelo menos não tão já... Também não esperava que fosse justamente Davi a salvar o nosso rabo.”
Me assustei quando a fera se manifestou; ela tinha ficado tão quieta desde que Davi me salvara o traseiro, sem nem rosnar, que até tinha esquecido que ela pedira para assumir o controle. Com um suspiro, concordei com a fera e então me aproximei do grupo e me concentrei para decifrar o que Joshua berrava.
- O garoto sequer era nascido durante a Ascensão, Ageu, não tem a menor culpa do que seu avô passou nas mãos dos humanos! O que você acha que a Alfa dos Kapuyt, a sua irmã, vai falar quando souber que você foi pro exílio por tentar matar um dos recrutas?!
Ageu virou o rosto, se recusando a olhar Joshua nos olhos e também a falar. O Major respirou fundo, se afastando e olhando com algo que só podia ser nojo pro outro Lobisomem.
- Levem ele para Svart. Que eles decidam o local do exílio. – Svart. Uma das nove cidades Lobisomem; se eu me lembrava bem, localizava-se naquele pedacinho da antiga Turquia que ficava na Europa.
Dois dos Lobisomens agarraram Ageu pelos braços e o arrastaram para fora do salão, os outros escoltando o prisioneiro, atentos. Só depois que a porta se fechou atrás deles que Joshua virou-se para olhar para mim. Havia um olhar estranho em seu rosto quando ele viu o sangue que me cobria, e então balançou a cabeça.
- Sinto muito por isso, Amadeus. Não era pra acontecer. – sua voz ganhara um tom de amargura, antes de erguer o olhar para nenhum lugar em específico. – Muitos não deixam as feridas que ocorreram durante a Ascensão cicatrizarem... Isso não é bom... – ele resmungou, e eu desconfiava que não era para mim, exatamente.
De repente, as portas da sala se abriram, e um Luís quase desesperado entrou e correu na minha direção.
- Eu sabia que Ageu nunca aceitaria ensinar um mestiço a controlar a transformação! Eu sabia! Devia ter vindo com você e esperado um pouco! – ele puxou minha cabeça e afastou o cabelo, observando o talho e fazendo um som estrangulado. – Enfermaria agora mesmo! Obrigado por salvá-lo, Major! – antes de me puxar para fora, parou para bater continência para o Lobisomem, que a dispensou com um sorriso leve.
- Cheguei tarde e só prendi o idiota, quem salvou Amadeus foi Davi. – meu colega veterano pareceu surpreso por um instante, então deu de ombros e começou a me puxar pelo braço bom para fora.
Mal tive tempo de acenar uma despedida para Joshua.


Assobiei de dor quando Tyvan enfiou de novo a agulha curva na pele, juntando os pedaços de couro cabeludo da minha cabeça; o Zuri decidira que, se eu conseguira andar até a enfermaria, não precisava de anestesia, afinal, embora em dois dias eu só fosse ter a cicatriz dos ferimentos, ainda era preciso garantir que tudo estivesse no lugar quando a cicatrização se completasse.
- Ainda bem que não tentou se transformar... Acabei de receber do Major que Ageu não tinha desativado a sua coleira, só a dos outros. – Luís falou da cadeira onde esperava Tyvan terminar de me remendar, segurando as roupas que o militar tinha feito a gente tirar. – Tu teria apagado na hora e seria presa fácil.
Quando eu ia falar, a agulha entrou de novo, e só saiu um resmungo ininteligível antes que eu conseguisse realmente fazer a voz sair.
- Como o Major disse, quem salvou o meu traseiro foi o Davi. Não teria adiantado nada se ele ou se a outra garota Kupfer não tivessem se movido.
Ouvi um bufo vindo do médico, e ergui os olhos para ele; levar minhas íris bicolores tão alto piorou a dor de cabeça que a fera estava provocando com seu discurso de ódio para contra Ageu.
- A lei Lobisomem te salvou, mestiço. Alguns séculos atrás, antes dos acordos de paz entre os clãs, você teria morrido; não por ser mestiço, mas por ser sem-clã: não teria ninguém para te socorrer. – ele terminou os pontos na cabeça, e então limpou ao redor do local onde meu cabelo fora raspado – inferno –, tirando os últimos vestígios de sangue na região, antes de se movimentar para o meu ombro dilacerado; me encolhi instintivamente, adivinhando que doeria mais ainda, considerando a quantidade de perfurações. Tyvan dissera que eu tinha sorte de não ter perfurado o pulmão, embora tenha chegado perto. – Ainda assim, recomendo que você se esforce pra atrair a atenção de algum clã. Os Kapuyt vão ficar malvistos depois disso, mas nenhum clã vai cair em cima deles, então, vai ficar por isso mesmo, e logo todo mundo esquece. – travei o maxilar quando o primeiro ponto foi dado, me segurando para não morder a língua. – Se você tivesse um clã, o seu Alfa teria a obrigação de exigir atitudes severas em relação à Ageu e não deixaria os outros esquecerem facilmente. E também dificultaria a vida dos Kapuyt. Os clãs cuidam dos seus.
Outro ponto, outra travada de maxilar.
- Tyvan tem razão. – Luís resmungou, num tom de quem não gostava de concordar. – Detesto admitir, mas ele tem razão. Você precisa chamar a atenção de um clã. É inclusive o melhor pro caso da sua irmã caçula se transformar. – olhei na direção do Sonnenblume, semicerrando os olhos quando a agulha entrou de novo, metodicamente. Ele sorriu de leve, perdendo algo da seriedade e mau-humor que concordar com Tyvan tinha lhe dado. – Mas não precisa ter pressa. Pelo que sei, o último sem-clã que apareceu só conseguiu demonstrar algo que atraísse os Gisher depois de quase dois anos de treinamento. – o Lobisomem então reclinou a cadeira nas pernas traseiras, as mãos batendo de forma ritmada no alumínio. – Aliás, imagino que quem vai acabar te reclamando serão eles... A maior parte dos órfãos que resultaram da Ascensão, com pais desconhecidos, foram acolhidos por eles. Faz sentido eles escolherem mestiços inesperados também...
Engoli em seco, mal reparando no próximo ponto, enquanto pensava na palavra “órfãos” e “Gisher”. O clã de Joshua. Até que seria legal ser do mesmo clã dele...

Mas, afinal, aquela palavra confirmava o que minha mãe sempre dissera: a Queda foi para os humanos, mas no final, todos perderam.

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